Trecho do romance “Salitre” de Danielle Sousa
Danielle Sousa é potiguar, nasceu em Natal (1985). É graduada em História, especialista em História do Brasil e mestre em Ciências Sociais. Em 2020, lançou seu primeiro livro, No horizonte, a Terra (Escaleras), de contos. Salitre (Editora Penalux, Selo Auroras) é sua estreia como romancista.
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Trecho do romance Salitre de Danielle Sousa
2008-2021
Me avisaram que um homem havia sido morto com um tiro em frente a uma parada de ônibus, bem no meio da manhã de Natal. Valério tinha ido almoçar, aí disseram: Manda Clara, só para registrar o início. Casualidade.
Junto comigo foi a Mariana, fotógrafa novata. Nós duas então, assustadas com a quantidade de gente, com o rabecão estacionado próximo ao homem, com a poça de sangue.
Para o único policial que vi, perguntei, completamente perdida: Identificaram o corpo?
Ele disse: Não. Perguntei: Alguém viu o atirador de perto? Ele disse: Não. Perguntei: Tem ideia da linha de investigação? Aí ele me olhou por detrás de uma cara debochada: Devia tá devendo droga, né, minha filha!
É, devia. Morte assim não é novidade.
Permaneci até o Valério chegar. Ele foi rápido em pegar minhas anotações, não agradeceu como de costume e fiquei enojada ao perceber que ele limpava a boca do almoço interrompido.
Não olhou mais para mim, devia estar com raiva por não ter chegado ao local a tempo, da estagiária tapa-buracos ter entrado em seu habitat, devo ter estragado alguma coisa importante, alguma informação deve ter se perdido enquanto eu, não ele, fazia as perguntas, foi o que pensei na época.
Então voltei para o carro com a imagem do homem de cabeça estourada no meio do calor da Salgado Filho.
Naquele fim de tarde, Valério Peixoto já havia escrito sobre o assassinato no portal de notícias do jornal, basicamente, sem mudar nada da minha apuração. As fotos da Mari não entraram na matéria. Tudo foi creditado à violência entre gangues barra drogas barra dívidas que parece ser tudo a mesma coisa hoje em dia.
Talvez seja.
Mas aí, dois dias depois, outro homem foi morto com um tiro em uma parada de ônibus, próxima daquela primeira, e eu nem sequer pedi autorização para ir até lá, já fui pegando minhas coisas e indo. Mari me viu e foi junto. Dei de cara com o mesmo policial, o que me chamou de “minha filha”, mas o percebi menos solícito em me responder e gritou que eu obedecesse ao perímetro de trabalho dos legistas. Tentei sair das vistas do Valério, dessa vez já farejando sem perder tempo em cima do corpo (ele não obedecia ao perímetro).
Foi uma mulher quem atirou.
Uma senhora de vestido florido, cabelo preso com frisos, um de cada lado da cabeça, quase infantil. Não usava óculos. Seu rosto enrugado em mil dobras de pele que se seguiam, uma atrás da outra, simetricamente. Repetiu:
Foi uma mulher quem atirou. Cabelo curto. Não levantou a viseira, nem cantou pneu.
Fiquei surpresa com a informação solta, ali, sem muito medo. Aí, na mesma noite, depois do expediente, fui até o departamento de homicídios e solicitei uma conversa com o delegado responsável pela investigação. Causei certo desconforto.
Imagino.
Eu ainda não era uma jornalista, entende? Mas já era teimosa, por isso me ofereceram uma cadeira, apontaram a máquina de café e eu fiquei na espera por uns bons quarenta minutos em estado de contenção. Só inércia.
Então, depois do que pareceu uma eternidade, um senhor franzino abriu uma porta no fim do corredor e me pediu para entrar. Improvisei um Os corpos já foram identificados? Ele disse Sim e remexeu em uma das gavetas tirando dois papéis com o logo da polícia, jogou na mesa e entendi que os dois homens já tinham sido presos. Uma foto 3×4 dos mortos estampava as fichas. As feições borradas, podendo ser qualquer um ali, eu fico pensando, podia ser qualquer um do lado dos nomes e do número do RG. Me detive um pouco na leitura. A polícia trabalha com a hipótese de ligação entre as duas mortes porque essa é uma pergunta que pode começar alguma coisa, me levar a informações importantes, me fazer ter uma história a ser escrita. É muito sobre o que você pode tirar da fonte, mas o delegado respondeu que era uma informação sigilosa. Insisti com um Pode ser uma mulher a pessoa que atirou? e ele monótono: Informação sigilosa. Foi horrível. Ele queria me colocar no lugar.
E qual era teu lugar, Clara?
Não sei.
O que eu sei:
Joguei as cópias das fichas criminais dentro da bolsa e fiz meu caminho de volta para casa. Dias depois recebemos um e-mail estranho, uma confissão, assinado Diana, a Caçadora [1].
Lembro que os telefones não pararam de tocar porque o mesmo e-mail havia sido enviado para vários veículos de comunicação e isso gerou uma descrença geral, um pouco de troça, mas também muita expectativa. Você se lembra disso?
Do quê?
Da cidade emanando uma vibração; umas ondas que eu podia captar nos meus brincos, podia sentir na ponta dos meus dentes. Meu jornal, nenhum jornal, avisou à polícia de imediato, eles se trancaram naquela saleta nojenta que não via uma demão de tinta há eras, eles venderam toda a edição impressa do dia seguinte, com manchete sensacionalista, o e-mail em letras garrafais, o assunto como o mais comentado nas trends, sabe, tudo naquela redação era mofo e infiltração e eu senti medo e desci para a lanchonete, pedi um pedaço de bolo, assim, meio no automático e a Mariana estava lá.
Hoje não sei dizer se ela estava lá ou me acompanhou até lá, aí eu comi um pedaço e inventei que não gostava de chocolate, eu disse assim: Não gosto de chocolate, você quer?
Ela fez um sim com a cabeça e pensamos a mesma coisa: tinha uma mulher por aí, caçando homens em paradas de ônibus com uma .42.
A lanchonete como uma adjacência malfeita da redação do jornal ficava em uma rua coroada de casas abatidas, parcialmente abandonadas. O sinal da rua, o único, é de três tempos. Tempo perdido porque quase não passam carros por ali. E teve isso: o cano de escape de uma moto atravessando a rua em alta velocidade, rompeu o presente e ofereceu um lapso interno como se, por meio segundo, tivéssemos sido arrancadas de nós mesmas.
O bolo desceu quadrado pelo esôfago da Mari. A bolota de saliva parecia parada no meio do caminho para o estômago. Sei como é essa sensação, gosto de chocolate, mas foi só começar a comer aquele pedaço que a fome passou porque tive esse pensamento perturbador de que ia morrer engasgada com o granulado.
[tenho uma visão. Diana na gruta]
[1] Não que mulheres violentadas tenham importância na superfície do dia a dia de quem não experimenta o sentimento de ser arrancada de si. Somos jogadas ao Érebo. Empurradas no Cócito. Tragadas pelo Flegetone. Fui EU quem os matou. Minha pistola é uma .42 e meu alvo sempre será entre os olhos. Não me orgulho, mas não me culpo. Se não há meios de sair do Hades, que eu mesma possa carregá-los até lá.
Peço que publiquem esta carta para que saibam, agora, existe eu: a caçadora.
A.,
Diana