Trechos do livro Antes que eu me esqueça por Miría Moraes
Míria Moraes é poeta, escritora e psicóloga, nasceu na Fazenda Bom Será, comunidade rural pertencente ao município de Monte Santo, sertão da Bahia. Escreve livros e projetos a partir de uma abordagem, literária, psicossocial e educativa.
É autora dos livros: Pai, não grite com a sua filha (independente, 2018); Sem Poemas (independente, 2019); Antes que eu me esqueça (independente, 2021). Participou das antologias Corpo que Queima (Appaloosa Books, 2019) e Escritoras Sertanejas (Editora Studio, 2021). Também é idealizadora do projeto socioeducativo Ruralidade Universitária e do podcast poético Minha Cadeira Vazia.
Possui graduação (UFBA) e mestrado (UFMG) em Psicologia, participando de pesquisas que se dedicam aos estudos de gênero, mulheres e ruralidades. Atualmente trabalha como psicóloga clínica, atuando na psicoterapia infanto-juvenil e adulta; na educação parental; e na intervenção precoce e tardia no Transtorno do Espectro
Autista (TEA). Mora em Belo Horizonte, Minas Gerais.
***
um dia você me disse
que eu saberia o quanto você é ruim.
…
e precisa?
Alguns homens parecem gostar de usar capa. Você me disse que eu ia saber o quanto você é ruim quando percebeu que eu estava sendo verdadeiramente feliz ao seu lado e você do meu. Eu achei curiosa essa tática, me assustou um pouco. Mas, quem me assustou mesmo foi o seu melhor amigo também ter me dito isso sobre você, em um outro momento. O seu melhor amigo. Em ambas as situações, eu só havia comentado que confiava em você. Refletindo sobre isso, percebo que essa estratégia parece funcionar como uma espécie de pacto simbólico para proteger egos machistas, uma afirmação de que vocês homens estão apaixonados, mas quem está entregue mesmo somos nós mulheres, vocês são inatingíveis, são maus, ruins. Oh!
A definição da palavra ruim pode ser encontrada facilmente na internet como algo inútil e insatisfatório, mas, se você digita pessoa ruim, as definições mudam para pessoa que não se importa com o outro, fria, sem afeto, que só tira vantagens. Não acho que você seja tudo isso, mas acho que aprendeu que tem que ter um pouco de cada para ser um “homem de verdade”, talvez por acreditar no discurso hegemônico de que homens são “fortes” e não devem se submeter ao amor ou aos “caprichos femininos”. Quando você disse estar apaixonado por mim, eu também estava, eu só não imaginei que eu tivesse de esperar o seu “tempo de homem”, de abandonar as suas estratégias de conquista e entrega para poder viver o que sentíamos. Achei que éramos duas pessoas que se amavam e estavam dispostas a isso. Deve ser horrível aprisionar os sentimentos desse jeito para se encaixar em um modelo de super-homem, forte e imbatível, mas, que quando está consigo mesmo, deve perder a sua força para a realidade dos fatos. A masculinidade foi construída em Hollywood?
Se você parar para pensar, isso é muito triste, porque toda essa alienação tem adoecido vocês, criando uma energia que vai passando adiante e tomando outras formas, até adoecer a nós mulheres e, por fim, a todos/as, adoece a nossa relação como pessoas humanas. Não deve ser bom usar capa, não deve ser bom se proteger o tempo todo. Se a vida nos machuca ou nos faz feliz, significa que estamos crescendo, e só podemos sentir isso através do contato. Parece-me que nada pode ser mais inútil, in satisfatório e sem afeto do que não sentir as pessoas e a si mesmo verdadeiramente.
você me deu mais silêncio
do que amor
agora
o meu coração
está entupido de vazio.
Uma vez você me disse gostar de um filósofo grego, acho que o Epicuro. Se eu não me engano, você me disse que ele está na sua parede.
Não sou filósofa ainda, mas o pouco que eu entendo da filosofia de Epicuro é que ele nos ensina a necessidade da libertação das preocupações, o que ele chamou de ataraxia. Lembro que uma das formas de entender o prazer para ele é pela ausência da dor. Tenho uma leve desconfiança de que você se apegou bastante a essa filosofia quando o assunto era nós dois.
Voltemos a falar de dar e receber:
Não tenho dúvidas de que você me deu amor. Mas o silêncio foi a coisa que mais recebi de você. E, embora seja bastante complexo escrever ou falar via internet, isso não justifica a falta de posicionamento e as outras oportunidades presenciais que você teve e não fez nada, tampouco justifica a sua falta de coerência ao dizer me amar e sentir saudades, mas me deixar sozinha, a ver navios em uma cidade que não tem praia. O silêncio tem o poder de trazer tanto tranquilidade quanto perturbação na vida de uma pessoa. Se você quer descansar em seu quarto, depois de um dia inteiro de trabalho, o silêncio pode ser uma coisa maravilhosa. Mas, se você quer conversar com alguém sobre algo que está te machucando e essa pessoa se cala, ele é ensurdecedor. Eu conseguia ouvir o barulho do seu silêncio. Talvez tenha sido mais fácil para você se afastar e buscar prazeres e alegrias para se sentir melhor. Ignorando que estava em uma relação e que suas ações tinham consequências sobre ela. Tudo que você pôde fazer para não sentir dor nesse relacionamento você fez.
Eu, como a única tradutora discursiva desse sentimento, me enchi de palavras e de silêncio, algo que me possibilitou escrever sobre nós dois de forma tão intensa. Enquanto você se manteve como espectador passivo e se encheu de tanta coisa que eu jamais pude saber ou ouvir completamente. Foi sua posição, e ela foi egoísta. Eu entendo que ela pode ter sido a forma que você pôde lidar com as coisas, mas ela foi terrível para mim. Tivemos uma pausa longa e muito dura. Reconheço que o meu jeito (livre) deve ter feito você sofrer, mas o seu (ausente) me fez da mesma forma. Fomos vencidos por nós dois. Como seria o nosso beijo e o nosso sexo se tivéssemos sido vencedores?
Às vezes penso nisso.
de onde vem o que oferecemos?
Jacques Lacan é aquele tipo de autor com estilo rebuscado, mas tão rebuscado que nem todo mundo consegue se aproximar. E foi isso que aconteceu comigo durante a minha graduação em Psicologia. Famoso por sua complexidade, o psicanalista francês é, sem dúvida, uma leitura importante na carreira de muitos e muitas psicanalistas. Eu não trabalho com essa abordagem terapêutica, mas, há uma frase célebre de Lacan que eu gostei muito de conhecer. Como eu não sou especialista nessa abordagem, a interpretei de forma livre e poética, sem amarrações teóricas, que é como eu gosto mais. A teoria é de extrema importância, só que às vezes não combina com poesia.
“Amar é dar o que não se tem”.
Eu não preciso falar absolutamente nada depois dessa frase. É um pensamento que não precisa ser explicado, fala por si só.
Você por acaso já fez isso? Deu a alguém aquilo que você não tinha? Coube nela ou em você? Ou você não deu?
“Amar é dar o que não se tem”.
Recentemente, quando assisti ao filme Boemian Rhapsody, pude sentir que o amor de Freddie Mercury por Mary Austin era algo realmente sublime, estava acima de todas as outras coisas naquele contexto entre os dois, e falo de amor na forma mais única possível, como é o amor de todo mundo. Eles dois pareciam ligados para além. Em uma cena, Freddie diz a Mary que escreveu love of my life para ela, que ela iria ouvir milhares e milhares de pessoas cantando aquele amor que ele sentia, eu mesma já cantei.
Dramas sempre me deixam impressionada! Não sei o quanto é ficção e o quanto é realidade, mas achei a coisa mais linda! Fiquei tão encantada, que desejei sentir aquilo também, desejei que alguém me dedicasse algo único, feito só para mim.
Alguém já fez algo único para você? Depois que acabou o filme e que eu repeti love of my life e bohemian rhapsody umas 87 vezes no Youtube, acabei me lembrando de uma coisa maravilhosa: lembrei que já me dedicaram algo. Uma vez, um rapaz me confessou ter escrito um poema para mim, e você deve saber que poema é simplesmente uma das coisas que eu mais amo. Entretanto, nem eu e nem milhares de pessoas vão recitá-lo, porque ele não me mostrou o poema, eu nunca o li,não faço ideia do que dizia. Ele também me fez prometer que eu nunca falaria isso para ninguém, e eu cumpro essa promessa até hoje, nem nos meus melhores sonhos eu se quer mencionei esse fato. Jamais eu contei para qualquer pessoa sobre isso. Não contei nem a mim mesma, tanto que esqueci, mas agora lembrei. Acho que ele me deu o que não tinha. E como isso não é possível, eu fiquei sem nada.
meu melhor amigo me questionou um dia:
– amiga, você ama demais
onde que dói esse sofrimento?
– dói no corpo inteiro.
eu respondi.
o meu melhor amigo então continuou:
– amiga, seu corpo está quebrado.
– é verdade.
eu me dei conta.