Trechos do romance “Caparaó” de Ricardo Pecego
Ricardo Pecego (@ricpecego) atua na área cultural desde os anos 2000 como produtor cultural. Mudou-se para o interior em 2010 se fixando em Itapira mantendo-se atuante na Cultura e no terceiro setor. Escreveu mais de trinta projetos culturais, produziu mais de 100 shows com artistas nacionais e internacionais. Em paralelo a estas atividades foi desenvolvendo a escrita. Escreveu para jornais e sites regionais entre 2015 e 2019 quando passou a dedicar-se apenas à literatura. Lançou em agosto de 2020 seu primeiro livro, Caparaó, pela Editora Giostri. Colabora com São Paulo Review, Jornal Tribuna de Itapira e Portal Sententia. Em 2021 lançou o Diversidades Podcast (@diversidadespodcast) onde conversa com diversas personalidades sobre o Brasil.
***
Trechos do romance Caparaó de Ricardo Pecego
A fuga da realidade naquele canto onde a vida acontecia
da mesma forma há séculos. Aquela troca lhes dava a vitalidade
que precisavam para continuar suas aventuras e vez
ou outra retornar.
Porém, num dia onde a fuga os levou à Praia Vermelha,
os acontecimentos que seguiram quebraram a rotina dos
rapazes para sempre. Depois de ter tomado banho de mar,
pois era um dia bem quente, seguiram na trilha do morro
da urca e subiram na pedra, até uma altura intermediária.
Lá no alto se acomodaram e ficaram se entretendo com a
rocha e os lagartos, quando perceberam uma movimentação
diferente. Testemunharam uma transação entre bandidos
que acontecia lá no final da trilha. De um lado os bandidos
de farda, de outro os bandidos do morro, trocavam dinheiro
por armas na discrição daquele reduto natural.
Moisés, que estava numa posição pouco favorável para
enxergar o acontecimento e tenta esticar o corpo quando de
repente, num deslize de seu pé na pedra escorregou, caindo
próximo daquele pessoal no chão.
Foi como num piscar de olhos, o rapaz não teve tempo
nem de se levantar. Kiko então assistiu a execução de seu
amigo ao vivo. O pobre menino teve seu corpo todo furado
por balas, ficou deitado no chão sobre uma poça de sangue
que se formava ao seu redor, crescendo lentamente, como
se fosse num filme.
(Páginas 51/52)
*
Kiko teve de passar diversas noites ao relento, depender
da caridade e dos restos de alimentos das lixeiras, bares
e lanchonetes. Ter fome era algo novo. Ele nunca havia
passado um dia sem comer. Na sua nova realidade chegou a
passar quase dois. Apesar da pobreza da família e da pouca
fartura, nunca havia deixado de fazer uma refeição pelo
menos, mesmo que ela fosse um simples arroz com ovo.
Claro que tiveram dias que a janta era uma xícara de mingau
bem ralo, teve época de faltar mistura quase que todo dia,
mas nada de ficar a míngua.
A fome é cruel, dói no corpo. Primeiro enfraquece, nos
deixa lentos e depois de um tempo parece que nosso corpo
direciona toda força que nos resta em busca de algo para
comer. É como se concentrássemos toda nossa energia com
esse único objetivo. Tudo aquilo que encontramos e comemos
então não tem sabor, não nos dá prazer nenhum, apenas é
engolido com todas as forças para sanar a dor. Caso não seja
o suficiente continua doendo até que o corpo passa ignorar
a dor, já crônica e vamos desfalecendo, consumindo todo
nosso organismo como canibais de nós mesmos até a morte.
(Página 75).
*
Naquele fim de semana, ela foi para Guaçuí, a uma clínica que
fazia o procedimento, mas o valor estava fora do seu alcance. O
local era bem discreto, quase que escondido, sem nenhuma
fachada de clínica. Na recepção o que se via além das jovens
ali era a expressão de decepção que elas carregavam. Cada
qual com a sua história e dificuldades que de alguma forma a
gravidez só complicou. Antes de ser atendida a recepcionista
pede que pague pela consulta e pelo procedimento que seria feito.
Sem nenhum recurso a mão ela pede para conversar com
o médico. A recepcionista então de forma nada educada,
se levanta e vai até o consultório.
Logo depois chama Andrielly, que entra no consultório,
ela aguarda a moça na porta e depois volta para seu posto.
O médico sem muito interesse escuta a moça falar, mas fica
apenas observando seu corpo e propõe, antes de terminar sua
história, que Andrielly transasse com ele.
Espantada com a proposta do médico ela sai
esbaforida pela clínica, passa pela recepcionista que sarcasticamente lhe sugeriu utilizar uma estaca de mamona, rindo
do desespero da moça.
Transtornada, volta para casa. No caminho
chora desolada com a sua situação. Em casa ela se isola e
não quer conversa nem com a mãe que bate à sua porta
preocupada com a tristeza da filha. A senhora não insiste
muito, pois pensa que é briga de namoro.
No domingo decide dar a notícia a Kiko, para que ele
ajude a custear o procedimento, mas não encontra o rapaz.
Anda até pelas trilhas que costumavam fazer, pois sabia que era sua
folga na venda. Ali no meio do mato se depara com uma
mamoneira e as palavras da recepcionista novamente lhe
vem à mente perturbada. Ela retorna para casa
pega um canivete na gaveta da sua cômoda, duas toalhas e se envereda na
Mata novamente para fazer duas estacas de mamona.
Passa o canivete com cuidado para que a ponta da estaca fique fina e afiada.
Depois vai até um pequeno poço, num riacho ali perto, se
despe, entra na água, se mutila. Infelizmente não se levanta
mais. Seu sangue tinge a água do pequeno riacho que perde
a transparência.
(Páginas 116/117).
[Foto de Ricardo Pecego: crédito de Fabio Zang).