Trechos do romance de Ana Paula Moreira
Doutora em Psicologia, Ana Paula Moreira já lecionou no Curso de Pedagogia da UMC e no Curso de Psicologia da Unesp-Assis. Atualmente é professora no curso de pós graduação latu sensu em Psicologia Escolar na PUC de Campinas. Trabalha também como psicóloga clínica. Já publicou dois livros infantis e em 2021 publicou seu primeiro romance independente, o Respire o Instante de uma Linha. O Instante está na sua segunda edição e atualmente está sendo distribuído pela Marisco Edições.
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Aliás, outro dia, vi deus escorrendo do mel da flor de laranjeira. E ele, minha gente, é o contrário do medo. Corre cotia, acende lamparina com o resto de certeza e inaugura ano novo toda quarta-feira.
Foi assim que, à certa altura do meu desvario, entreguei o fundo daquele pacto nas mãos dele. De deus. Não do amor. Mas é impossível que haja diferença.
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Observando o amor, assim, lembrei de um causo que ouvi há muito, não sei onde nem quando. Tradição oral caminhando pelo mundo. Abrindo as portas em casas esquecidas. Contando para o Sol sobre as janelas.
Diz-se que no início dos tempos não havia histórias, tampouco, sabedoria. Por causa disso, as festas eram tristes. A vastidão era solidão. Cansado daquela tristeza, um homem decidiu sair estrada afora, buscando histórias.
O primeiro contador seria também um buscador. E, para acompanhá-lo naquele desbravar, escolheu um pássaro chamado Marabu, o pássaro escrivão. Juntos, atra- vessando recantos e esquinas, prados e ventanias, ouviram todas as histórias que encontraram, dobrada em papel de
lembrança, jogando amarelinha e até escondida em cader- no de receitas.
O homem se angustiava ao imaginar que sua memória não seria funda o suficiente para tanta lembrança, mas o pássaro escrevia tudo. Palavras rabiscadas com uma pena que sempre fora sua.
Depois de muito caminhar, homem e pássaro voltaram para casa. E, Marabu, olhos profundos, adivinhando a angústia do homem, encheu de água uma enorme cabaça e lá dentro mergulhou todas as histórias escritas. A noite passou na cabaça adormecida, sonho de história, palavra molhada e dissolvida. Na manhã seguinte, o pássaro pediu que o homem bebesse aquela água, acordada de escrita. E, assim, todas as histórias bebidas tornaram-se histórias inesquecíveis.
Beber memórias é despertar futuros e, tenho cá comigo, que o primeiro contador de histórias não foi um homem; foi, na verdade, uma mulher.
Pensando bem, imagino que o amor também seja mulher e sopre os ventos, acenda a lua, dirija os barcos e ofereça motivos para ir ou para ficar. Uma mulher que também habita o corpo de homens, quando eles sabem que o céu é o mar que aprendeu a voar.
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Creia-me. O inusitado lhe prefere assim, descabelada, calçando tênis e sorrindo enquanto chora. Nonada, lembra? Feito embaúba brotando no cerrado. Embaúba. Até o nome é bonito. Não é difícil encontrá-la. Suas folhas verde-brancas brilham mesmo à luz do dia. Parece que estão molhadas porque choveu só para elas. Parece toalha de afagar rosto cansado. É árvore que realiza tarefa nobre, convidando a existência de florestas. Então, fica existindo, rodeada de outras espécies. Tanto que, se você aparece por lá, mal repara na embaúba. E ela não se importa com isso. O que importa é a floresta. Acontece que ver uma floresta crescer também é um espetáculo para poucos olhos. Ela vê. E basta.