Trechos do romance “Depois que a vida chegou” de Mariana Torres
Após trabalhar como advogada e empreendedora, Mariana Torres encontrou nas palavras sua verdadeira paixão. Descobriu-se escritora em meio a uma pandemia e um puerpério. Entre uma mamada e outra, escreveu seu primeiro livro (além de primeiro escrito), Clube do Abacate. Durante o segundo puerpério, escreveu seu segundo romance, Depois que a vida chegou (Caravana Editorial). Mariana mora em São Paulo e passa os seus dias criando histórias, além de dois meninos e dois gatos.
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Trechos do romance Depois que a vida chegou de Mariana Torres
“Brigamos. Eu me exaltei. Bastante. Ele reclamou estar cansado. Cansado? Ao menos, ele estava cansado no corpo dele. Eu vivia cansada num corpo que já não era mais o meu. Num corpo tomado por hormônios delirantes condenando minha mente à estafa constante. Num corpo alargado, esticado e deformado pela maternidade, feito para jorrar leite. Num corpo em estado de alerta ininterrupto, sempre atento aos mínimos sinais de choro de um bebê. Ele diz precisar de um tempo para ele e eu digo ser o meu maior desejo para mim. Decidimos fazer atividades separados com mais frequência. A fralda chegou junto com seu avô, o pai lhe deu banho e entrei no quarto para descansar. Em posição fetal. Estranhamente me sinto mais confortável dessa maneira. Talvez se me curvar o suficiente, torno-me uma bolinha bem pequena que pode rolar pra qualquer canto e sumir pra sempre. Me sinto um pouco melhor.”
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“Ouvi sobre a importância do grupo de apoio. Avós, amigos, familiares. Aquela história da aldeia criar uma criança. Mas o dinheiro parece ter comprado a aldeia e a transformado num shopping center. Os avós ficam cansados, já têm idade e podem finalmente aproveitar a vida. Os amigos e familiares mandam mensagem dizendo que estão aí pra você, mas não estão tão aí quando você manda mensagem solicitando apoio. Eles também têm vida e seu chamado não pode coincidir com o horário do ganha-pão. Vez ou outra vêm te visitar, pegam o bebê no colo por quinze minutos, apontam seu abatimento, aconselham o óbvio, precisa descansar. Sugerem o que o pai prático e os avós fatigados já sugeriram: contratar uma babá. Uma aldeia na forma de uma pessoa paga para isso. Num piscar de olhos imaginam resolver seus problemas. E parte dos deles.”
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“Hoje tive vontade de agredir o seu irmão. Agredir mesmo. Fisicamente. E ele não estava fazendo nada demais. Nunca faz nada demais. Dorme três sonecas durante o dia e vira a noite toda. Um espetáculo de bebê, diriam. Mas hoje não queria dormir a soneca da manhã. Ninar, cantar, conversar. Nada adiantava. E precisava dormir para que eu pudesse ser eu no tempo contado em que ele dormia. Tempo esse que diminuía com seus protestos. Junto com minhas energias. Não tiro as três sonecas do dia e nem viro a noite. Não sou um espetáculo de mãe. Aquela cujas outras mães apontariam ter sorte. E ele lutava e chorava. Sacudi. Muito. Chacoalhei. Balancei. Nada. Comecei a encarar a orelhinha tão pequena e que em outros momentos tanto admirei. Senti ódio. Vontade de morder pra lhe dar um motivo pra chorar. Me ensinaram assim, precisa ter um motivo aceitável pra chorar. Contive meus impulsos. Agredi a mim mesma. Tapas na cara. Minha mãe sempre me acusou de ter problemas de temperamento. De repente, dei-me conta de que o tempo de ser eu tinha acabado de verdade. Já não tinha mais energias para ser eu. Deixei o bebê com a ajuda que o pai gentilmente contratou para arrumar a casa. Voltei pro quarto. Tentei dormir, mas não consegui. E chorei. A raiva dele passou e só sobrou a raiva de mim. Imagina se as outras mães incondicionais me vissem naquele estado. Queria não ser um monstro de mãe. Chorei. E deixei chorar. Seria um motivo legítimo.
Talvez seja eu quem precise de ajuda.”
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“Minha mãe e meu companheiro (?) têm certeza de que estou com uma doença. Meu pai também, mas ele deixa a parte de falar para a minha mãe. Ele não se dá muito bem com conflitos e minha mãe é mestre nessa arte. A doença é comum, longe de ser culpa minha, e acomete muitas mulheres no meu estado. Depressão pós-parto, um desbalanço entre os hormônios e as sinapses e sei lá mais quantas palavras os médicos usam para explicar o meu sentir. Acho uma grande coincidência o fato da minha instabilidade na saúde física surgir ao mesmo tempo em que experimento a solidão. Não fosse esse diagnóstico certeiro do meu entorno, poderia achar ter algo a ver com a ausência. Física, emocional. Ausência de um entorno com menos certezas e mais abraços. Au- sência de parceria. Ausência de vida. Ausência de mim. Choro e pouco quero fazer. Um looping de amarguras. Não há folgas para as repetidas negligências sofridas. Então, surgem para me salvar e patologizar o meu sentir. E de tantas outras como eu. Aí, é mais fácil de lidar. Remédio vai resolver e ninguém precisa mais se preo-cupar. Lavam-se as mãos alheias. Volta-se à vida dita normal, num cotidiano com esperança de uma mãe menos rancorosa. Bom vê-los buscando maneiras de resolver os problemas decorrentes da desarmonia da parcela feminina da população. Torço pelo mesmo esforço para fabricar o remédio que trata dos desbalanços relacionados ao abandono masculino. Talvez até ajude nas patologias femininas. Quem sabe um dia.”
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“Tive vergonha. E raiva. Vergonha de mim por não compreender as tentativas dela de atender as cobranças, principalmente as minhas excessivas. Mamãe falhou em muitas tentativas de resolução. Tenho raiva de mim, do meu pai, do seu pai, de vocês. Que nunca tentaram tanto. E nem sei se vão. Que nunca vão precisar responder à pergunta de onde está a criança, quando saírem de casa desacompanhados. Que recebem elogios só por estarem juntos, lado a lado.
Queria dizer a ela obrigada. Ao invés disso, esbravejei você não entende nada. Na verdade, ela entendia tudo.”
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“Você me admira. Mais do que qualquer pessoa no mundo. Olha para mim em busca de todas as respostas. Para você, sou invencível. Sei tudo. Sou perfeita. O propagado amor de mãe é incondicional, insuperável. Não é verdade. O amor de uma criança pela mãe é verdadeiramente incondicional. Não pairam dúvidas momentâneas de como seria a sua vida sem essa figura. Ou arrependimentos relativos à relação quando a mãe está num dia ruim, ou reclama. A mãe não importuna. Não atrapalha. A mãe é o que a criança quer. A existência da mãe é o maior presente. Amor incondicional.
Não sou tudo isso. Nada sei. Torço pela adolescência, quando você vai finalmente descobrir a verdade. Quando se verá sabendo mais que eu. Quando romperá comigo e seguirá seu caminho conhecendo as suas verdades. Como talvez eu mesma nunca tenha feito. E você vai conhecer a liberdade. Eu te desejo liberdade.
Mas também temo pela adolescência. Quero me agarrar para sempre a esse momento de ser uma sábia aos olhos do meu filho. Um alento pensar que em algum momento fui boa, mesmo por equívoco de uma cabecinha que pouco sabe.”
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“Sim, às vezes acho que me arrependi. Da única coisa que ninguém pode se arrepender. Ou pelo menos falar. Fica comigo apenas a esperança de que vocês sejam melhores. E seguirei tentando ser também. Por vocês. Pra vocês. Mesmo quando num dia desses eu odiar de novo.”
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“Às vezes, entro em casa e me perco. Vejo a casa de um estranho. Espero um momento para me acostumar, assim como quan-do deixo meus olhos se habituarem à escuridão de um novo ambiente, e aos pouquinhos vai ficando um pouco familiar. Móveis bonitos e caros, dignos de revistas de decoração, cuidadosamente escolhidos por meu marido. E por mim. Cômodos um pouco bagunçados, mais ainda lá. Obras de arte dignas de revista também, selecionadas por um arquiteto de bom gosto. O escritório do meu marido com sua mesa bagunçada de papéis, seu computador. E os filhos, que são o motivo de já não dar mais para sair nas páginas de uma revista. A sala, ou o que restou dela, tomada pelos brin- quedos mais variados, desde carrinhos a bonecos de super-heróis estereotipados, que evitei comprar, mas os avós e amigos esque- ceram de evitar também, até mordedores, tapetinhos de ativida-de e brinquedos tecnológicos capazes de hipnotizar os bebês, ao torná-los incapazes de sentir por alguns minutos. Houve tentativas de arrumação. Mas nunca funcionaram. As crianças habitam todos os cantos da casa. Habitam mais do que eu. Comprei uma mesa na tentativa de fazer algo parecido com trabalhar. Combina com a casa. Distribuí em cima dela objetos de decoração também combinando com a casa. Mas não consigo ocupá-la. Talvez eu não combine com a casa.”
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“Você me perguntou sobre a morte. Deu-se conta de que as coisas precisam morrer pra viver. Olhos cheios d’água por uma au- sência futura de mim. Um dia não estaria. Nem mágica salva? Não, nem mágica. Queria poder te dizer já naquela hora que dá pra ter ausência enquanto se respira. Ausência de si. Do outro. E que a morte pode não ser tão ruim assim. Bonita até? Mas você ainda não sabia entender. Uma grande questão existencial de cada vez. Choramos abraçados pensando na minha morte. Cada um com suas lágrimas. De tristeza e felicidade.”
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“Eu já tive estagiário. Alguns. Também já fui uma. No primeiro dia de trabalho, minha chefe logo disse que um estagiário arruinaria a sua vida para depois torná-la maravilhosa. Aprendi. Leva tempo. Dá trabalho. Cansa. Atrapalha. Pode dar certo. E como é bom, então. Como desafoga. Mas a gente tem de tomar cuidado.
Ensinar sem cair na tentação. Sem criar estratégias pra facilitar a vida dele, o coitado. Quem precisa facilitar é ele mesmo. Pra isso que ele está lá. Quanto tempo? Não dá pra saber exatamente. Alguns meses, um ano, anos? Eu, há tanto tempo em casa, volto a me lembrar daquela vida com estagiário. Sinto-me como a chefe. Soo como a chefe. Dou ordens, organizo, digo o que tem de ser feito. Arrumo as coisas quando vou sair. Arrumo também quando o outro vai sair. Não adianta, sempre caio na tentação. De facilitar.
Ajudo a alavancar as funções que criei pra ele quando não percebeu que precisavam ser criadas.
Enquanto minha vida vai sendo arruinada, sigo tentando ensinar alguém que talvez já pudesse ter entrado sênior. E permane-ce a esperança. A expectativa de ele surpreender. De aparecer. E facilitar meu trabalho. Nossa, como será bom. Mas que seja rápido. Porque já estou muito cansada. E quero saber se ainda invisto meu tempo e minha esperança. Não é sempre que dá pra efetivar.”