Trechos do romance “Dharma” de Carolina Magaldi
Carolina Magaldi é professora de tradução literária (inglês/português) na Universidade Federal de Juiz de Fora, lecionando e orientando no âmbito da graduação, mestrado e doutorado. Trabalha também com educação intercultural e bilíngue na graduação e em mestrado profissional em educação. Atua como tradutora há cerca de 20 anos e começou a escrever, publicar contos e seu primeiro romance durante a pandemia, seguindo o conselho que sempre dá aos seus alunos: não deixar os sonhos na gaveta. Seu livro Dharma, publicado pela Editora Paratexto, é o primeiro livro de uma trilogia.
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Trechos do romance Dharma de Carolina Magaldi
Pelas conversas, olhares e risos compartilhados no bistrô, ninguém poderia imaginar que uma onda estava se formando. Não era nada excepcional ou inesperado. Cada gesto, pensamento e ação tem consequências, e essas se acumulam em ondas, com consequências normalmente esperadas, às vezes inusitadas e, em algumas poucas vezes, catastróficas.
Jade era uma das pessoas capazes de ver essas ondulações. Seu nome enquanto agente catalista era exatamente derivado da forma como as captava, como ondulações de tom esverdeado, pairando entre as pessoas tal como a luz submersa. Era melhor agir do que se arrepender mais tarde. Captou a onda e guardou no camafeu preso ao colo.
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– Bom dia, Jade. – Outros mentores tinham apelidos ou nomes afetuosos para se referirem a seus pupilos, mas Penélope considerava tudo muito desnecessário, já que tinham o nome Dharma para utilizarem.
– Meus olhos continuam a mudar de cor.
– Isso é natural e esperado. Quanto mais você evoluir, mais esverdeados eles ficarão. Seu crescimento não é somente uma transformação. É um retorno à sua forma essencial.
Jade assentiu, porque tudo aquilo fazia extremo sentido. Ela não sentia como se estivesse se transformando em uma outra pessoa, embora tenha sido essa a sua motivação para ser parte da instituição. Sentia mais como si mesma, ainda que com um novo nome. No entanto, tinha um medo infantil de se tornar menos parecida com as pessoas que encontrava em lugares como o bistrô e eventualmente virar um personagem de conto de fadas.
– Você não vai virar um personagem de mangá, nem em imagem, nem em essência. Então não se preocupe.
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Se alguém perguntasse diretamente a Jade, ela diria que a parte mais interessante de seu treinamento era como suas ideias passaram a fluir. Não que ela não tivesse muitas ideias antes, ou que elas não se tornassem decisões e projetos. A questão é que, antes de se tornar sunya e eventualmente catalista, seus pensamentos eram como micos selvagens que tinham encontrado um reservatório de doces. Todos tentavam fluir ao mesmo tempo, e muitos acabavam presos tentando passar pela mesma porta, ou se perdiam tentando dar a volta em torno de outras ideias que tinham surgido no meio do nada.
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No dia seguinte colocou o conselho de Bit em prática e sugeriu que Dalí desenhasse as ondas de que se lembrava. O resultado não foi exatamente inspirador, mas eles não desanimaram. Tudo na vida gera ondas kármicas, seja por ações, pensamentos, palavras ou sentimentos. Membros da Dharma não estavam imunes às ondas só por conseguirem percebê-las e, com a quantidade de ações significativas que estavam realizando em treinamento, uma onda iria eventualmente se manifestar, para que ele pudesse desenhar em tempo real.
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A célula de Bit ainda estava em formação, mas já contava com uma catalista e um sunya. Ambos pareciam ser muito talentosos e extremamente leais a Bit, apesar de suas marcantes diferenças. A catalista da célula se chamava Lullaby – pelo menos entre os muros e jardins da Dharma – o que certamente tinha a ver com a forma como percebia as ondas. A conexão com a musicalidade de canções de ninar deveria ser reconfortante.
Seu visual, no entanto, não trazia essa mensagem, necessariamente. Ela tinha cabelo com uma mecha cor de rosa, que cascateava em cachos bem formados pelos seus ombros estreitos. Jade quase conseguia sentir o cheiro de chiclete quanto a via, ou talvez o cheiro de boneca nova. Seus olhos aumentavam a sensação de estar em contato com uma boneca, com cílios que pareciam ser a razão pela qual criaram delineadores, criando uma composição que quase impedia de reconhecer a cor de sua íris. O restante da apresentação física da garota era absolutamente corriqueiro. Usava vestidos simples, normalmente azuis, quando estava no mundo lá fora, e parecia extraordinariamente tranquila em usar os uniformes da Dharma.
Ela também parecia se dar bem com o sunya do grupo, Takeshi. Ele tinha um perfil étnico tão obscuro quanto seu líder, mas era possível identificar algo de oriental em suas feições. Ou talvez fosse em sua expressão. Por vezes, Jade achava que o menino não tinha conexão alguma com a denominação nipônica, e que seria tudo parte da expectativa criada pela alcunha. Ela só conhecia um Takeshi histórico, e esse tinha crescido para se tornar o maior dos samurais, então talvez fosse melhor não perguntar.
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– O treinamento da Dharma tem raízes há milhares de anos. Existe um motivo para cada aula, cada palestra. Acho que é hora de confiarmos nos caminhos que muitos mestres já traçaram antes de nós.
– Super concordo. – Jade disse, com um jeito juvenil que ela mesma achava que já tinha deixado para trás. – Além disso, eles precisam confiar na formação que receberam, para que toda a missão seja viável. “Acelerar não significa avançar”. – Jade finalizou com o bordão de sua professora preferida de yoga.