Trechos do romance “Teu sangue vermelho na minha parede verde” de Baga Defente
Baga Defente é pai, poeta e artista-etc. que utiliza as poéticas do acaso em diversos suportes e linguagens para criar obras experimentais explorando as fronteiras e interseções entre registro, memória e ficção. Em quinze anos de trajetória, teve seus trabalhos — em especial, obras audiovisuais — premiados e exibidos em mais de 10 países. É fundador, diretor e editor no NADA∴Studio Criativo, um híbrido de ateliê multimídia e micro-editora independente sediado desde 2012 em Botucatu/SP, que possui em seu catálogo cerca de 25 publicações, incluindo “Pra estancar essa sangria”, livro de poemas publicado em 2021 através da Lei Aldir Blanc. “Teu sangue vermelho na minha parede verde”, seu primeiro romance, contemplado pelo Proac Editais, será lançado no final de 2023.
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Trechos do romance Teu sangue vermelho na minha parede verde de Baga Defente
=^..^=
(na mesa da cozinha ficamos somente
a Manteiga de Primeira Qualidade com Sal Taubaté™ & eu)
é tão mais fácil ser um gato
ficar deitado ronronando no sofá
aconchegado entre pessoas que
conversam sobre caminhos escolhas
& sobre como será daqui pra frente
juno & vênus saindo de escorpião
hoje o que eu mais vi foram
chapas de raios x fotografadas
contra o sol durante o eclipse
me lembrei da última aparição
do cometa halley mas em 1986
eu era muito pequeno então essa
deve ser uma memória criada
uma mariposa me encara na escada
enquanto diante do fogão você espera
o queijo derreter sobre uma massinha de
pão semipronta feita com farinha de trigo
eu faço piadas ruins
pra enganar minha tristeza
a ironia me faz atravessar os dias
aí você vai embora
e agora
falta pouco mais de uma hora
pra lua nova entrar em sagitário
e agora
ainda que você não aguentasse
mais do que treze minutos antes
de começar a roncar sobre meu peito
penso em como será daqui a uns meses
quando uma nova temporada de
alguma das nossas séries estrear
hoje a chuva invadiu meu coração
me lembrei de que a tempestade
é inimiga dos piratas
& o pé na bunda
o melhor amigo dos poetas
(é tão mais fácil ser um gato)
15 de dezembro, 2020
*
24.04.2021
mais de quatro meses desde a última entrada neste documento. exatos 135 dias desde que você me deixou. nesse curto período de tempo parece que já morri mil vezes, sem ainda ter conseguido renascer nenhuma. mas foda-se o tempo. não, foda-se não — é justamente sua aceitação que eu preciso trabalhar. afinal, tudo que é delimitado pelo espaço tem começo, meio & fim. a teoria é algo simples de ser compreendida, mas quase impossível, ao menos nesse momento, de ser sentida. dias atrás decidi que, além dos poemas deste suposto livro, manterei em paralelo algumas notas sobre o processo. um espaço neutro, longe da fantasia das redes sociais, onde posso vomitar o meu chorume em estado bruto, sem me preocupar com ritmo, rimas e demais poréns da poesia. um espaço somente meu, onde posso ser (ainda mais) tosco e vulnerável. afinal, eu me tornei tudo que eu mais temia ser: uma pessoa fraca, ressentida e incômoda. no fundo sei que não sou nada disso, mas tb sei que momentaneamente estou fraco, ressentido e incômodo.
hoje é sábado e mais uma vez, como quase todos os dias após abrir os olhos, a primeira coisa que pensei e senti no curto percurso entre esticar o braço e pegar o celular ao lado da cama para ver as horas foi um misto de desejo doentio e esperança estúpida de ter uma mensagem sua no meu telefone. o fato de já acordar com vontade de cagar é algo ao qual devo ser grato, pois é essa força instintiva que me tira da cama todas as manhãs desde que você me deixou. tomo café da manhã com R, confinando em mim a tristeza de mais um dia sem sua presença. eu estou doente da cabeça, mas a minha terapeuta não vê as coisas assim. estou tão besta, que às vezes desejo ser diagnosticado e receber uma receita para tomar qualquer coisa que me amorteça o peito e me faça crer que está tudo bem. sei que não sentir está longe de ser ideal, assim como sei que está tudo bem, mas é isso: eu sei, eu sinto muita coisa, inclusive que tá tudo bem.
a casa precisa ser faxinada. eu, minha mente, também precisamos de faxina, preciso abrir portas e janelas para poder arejar ideias e sentimentos. eu sei disso, eu tento isso, eu até me esforço pra isso, mas tudo é vão. a terapia, os exercícios físicos, a poesia, as conversas, os afagos e os chamegos que obtive não amenizam a dor de não ter você comigo. “ter” não no sentido de posse, mas no sentido de estar junto, de pertencer e ser pertencido, cuidar e ser cuidado — ainda que em muitos desses aspectos eu tenha sido falho com você. conserto um interruptor e tiro o miolo da fechadura para o chaveiro da esquina arrumar. vejo o que preciso do mercado além de cerveja. lavo bem forte o rosto com o sabonete de argila que você fez e me deu, passo o desodorante 100% natural com aroma de manjericão que você fez e me deu, aperto bem forte meus olhos para tentar estancar a constante torrente de lágrimas e saio de casa.
mas tá tudo bem. afinal, como me disse Pai Benedito, nada se cura na seca.
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28.04.2021
nas últimas semanas, meio que por necessidade, espalhei papéis e canetas pelos principais cômodos da casa. assim, quando as frases e ideias aparecem, muitas vezes quando o desconforto transborda, tenho onde anotá-las antes que se percam na volatilidade das horas. nas ruas e rodovias, todo carro branco me dá gatilho; assim, é constante o fluxo de ideias melancólicas e poéticas em potencial. se existe algo evidentemente positivo nesse estado merda no qual me encontro, é que pela primeira vez minha produção espontânea se manifesta dentro de uma proposta consciente, um “projeto literário”. se eu tivesse essa escolha para fazer: ficar sem escrever e estar contigo, ou escrever pra caralho, vender livros e não ter você comigo, sem pestanejar eu escolheria a primeira opção. eu sei que uma coisa não exclui a outra, e que eu preciso romper esse padrão de só escrever quando estou emocionalmente destruído, na bosta, como agora. você mesma me disse isso recentemente e eu concordo em absoluto. assim como tenho pensando na origem dessa visão romântica da vida, dessa colonização do meu imaginário por uma mentalidade europeia, burguesa, cristã. como você me disse num áudio dias atrás, talvez as mulheres que me abandonaram antes de você nem tenham sido tão cuzonas assim, e a grande questão seja eu. nessa ideia, quase todo poema que eu escrevi até hoje é puro mimimi narcisista travestido de autoficção ou qualquer outro discurso ou desculpa literária.
o lance é que no meu atual momento lidar com toda essa matéria-prima que venho produzindo é dolorido. por mais que na segunda etapa deste livro eu esteja disposto a construir uma poética mais solar, sua essência é noturna, lunar, romântica. eu passo os dias dopado de haxixe e um floral amazônico de emergência, composto por quatro plantas: flor-de-pau amarela, japana roxa, benguê e jagube. a indicação inicial eram cinco gotas em meio litro de água por dia. hoje estou tomando cerca de 20, divididas em doses de 3 a 7 gotas, a depender da minha demanda emocional naquele momento. o haxixe me embriaga, me dá um cansaço, que, associado à culpa, me permite e obriga a cumprir os afazeres do dia a dia: acordar, trabalhar, semana sim semana não organizar o ritmo das crianças com escola, alimentação e afeto, pois eles também me fazem superar os dias com um mínimo de integridade funcional.
são quase uma da manhã, daqui a cinco horas preciso acordar. tomei três cervejas, estou no segundo cigarro, meu corpo dói e eu escrevo essas linhas que ninguém lê. antes, eu iniciei a escrita do poema “Memorabilia”, cuja proposta inicial era funcionar como uma espécie de lista dos momentos felizes da nossa relação. percebo agora que nessas notas paralelas preservo o hábito de escrever em diálogo especificamente com você, ainda que eventualmente eu me refira às pessoas em geral que possam vir a ler estas páginas. mas deixo isso para ser pensado depois, num possível processo de edição e revisão. o ponto aqui é que, após recolher todas as anotações pertencentes a essa ideia e começar a organizá-las num poema, num determinado momento a dor ficou muito grande, me vi num vulcão de lágrimas e inconformidade, gritando sozinho em voz baixa, na tentativa desesperada de saber por que você se afastou bruscamente de mim e não me dá a chance de termos uma simples conversa. eu entendo que a escolha é sua, que você está no seu direito de não querer lidar com essas questões, com as minhas questões — ainda mais com esse meu comportamento obsessivo, te bombardeando com mensagens, cartas, fotos e até mesmo um pedido de abraço surpresa em local público no meio de uma pandemia. ainda assim, me soa cruel demais negar uma conversa, uma chamada de vídeo, um telefonema.
e como me parece que às vezes nem o poema comporta esse desconforto — ao menos não sem comprometer sua potência artística — eu volto pra essas notas paralelas, pra esse meu chorume subjetivo em estado bruto, quase tóxico. passa da uma. ainda que o cansaço seja uma constante, estou esgotado. vou dormir, boa noite.
*
06.10.2021 — 1ª sessão de regressão
(…)
volto para a festa no povoado do deserto, estou naquela feira, ouço as vozes, há um clima de celebração, com brindes sendo feitos ao meu redor. o eu beduíno caminha por ali, parece estar procurando algo ou alguém por entre as tendas. há um macaquinho na cena, que vai se tornando algo muito parecido com o desenho aladdin, da disney. é noite, tendas, música, pessoas, bebidas, risadas, clima de celebração
o eu beduíno continua procurando algo ou alguém, talvez a mesma mulher negra da fogueira. ela está servindo um ponche, entregando para as outras pessoas. vejo cenas de um filme que talvez eu já tenha visto, ainda num contexto indiano, mas agora num ambiente fechado, como o salão de uma mansão indiana, com elefantes sendo regados, como que sendo banhados por pessoas em um cenário rico e luxuoso. sinto-me um pouco distante, sem nenhuma emoção predominante, como se estivesse ali apenas vendo, sem ser afetado
sinto que essa coisa branca é uma espécie de barreira que minha mente levanta, um falso vazio criado para dificultar meu acesso a algo. minha mente é criativa, mas, quando é explorada, ela se recusa a entregar algo. percebo repetições, como girafas e cachorros-quentes aparecendo e sumindo
vejo um homem negro, alto, velho e forte, me lembra o pinhé, uma figura real que acompanhou meus primeiros passos. ele trabalhava para o meu pai quando eu nasci e se afeiçoou muito a mim. várias vezes na semana ele vinha me visitar, era um senhor bem humilde, e ficava um tempo comigo. anos atrás, quando eu fiz uma sessão de thetahealing com uma amiga, ela vislumbrou uma pessoa, me descreveu e eu me lembrei dele, nem lembrava que ele existia. na visão dela, esse homem negro, alto, velho e forte gostava tanto de mim, que me auxiliava a atravessar caminhos cheios de cacos. ele colocava meus pés de criança sobre os dele para eu não me machucar. naquele dia, depois da sessão, ligue para minha mãe, perguntei quem havia sido o pinhé, ela me respondeu que foi uma figura da minha infância, que passava em casa quase todo dia pra tomar um café; depois ficava comigo no quintal e, literalmente falando, acompanhou meus primeiros passos
ele está ali, com roupa branca, pele escura, alto contraste. e eu me vejo ali, bebê, segurando as suas mãos e dando os meus primeiros passos. e isso está me emocionando muito [emocionado]. ele está me acolhendo num abraço, já sou um pouco maior, quase pré-adolescente. ele não fala nada, mas uma voz silenciosa me diz “tudo vai ficar bem”. não tenho ideia do que é esse “tudo”. estou ficando mais velho, gradualmente, dentro dessa cena. minha vontade é de não soltar ele, é ficar ali. ele se transforma, agora eu estou abraçando o meu pai [eu estava pensando exatamente nisso] é um abraço bom, mas sinto uma saudade muito grande. e ele também me diz “tudo vai ficar bem!”
tudo some mais uma vez. vejo a esfera-aranha metálica de antes, girando em torno de seu próprio eixo, mas logo ela vira uma laranja. pego a laranja, corto em 4 pedaços, me sento no chão do vazio branco e começo a comer a laranja. ela está doce, suculenta e sacia minha fome. a laranja acaba, a música acaba e eu permaneço lá, incomodado com esse branco todo sabendo que há muitas coisas a serem exploradas. tento encontrar uma porta, uma saída. um polvo aparece, vem se movendo em minha direção, como estando na água. aproxima e se afasta. “ei, seu polvo, vem me dar uma ajuda”. então, ele me pega com alguns tentáculos, como se estivesse me soltando do papel, e no meu lugar fica um buraco, uma indicação… entro nessa passagem
parece sacanagem: saio de um lugar todo branco para um todo preto. vejo uma tocha, pego ela e eu começo a caminhar. procuro uma passagem nas paredes, mas acho que ainda não há paredes. então aparece o tio chico, da família addams, parece o nosferatu, mas deve ser por conta da série que estou assistindo. tem um clima meio vampiresco no ar, mas acho que ele está mais assustado do que eu. eu não vou em sua direção, ele está acuado. ele é careca, tem um queixo pontiagudo, parece um roedor, um “nosferrato”, veste um sobretudo e tem a pele pálida. ele pega algo do bolso e come, parece ainda mais um roedor. eu o deixo para trás e continuo andando com a tocha em mãos. surge uma mulher loira, vestida de branco. ela me lembra muito uma antiga amiga, gravamos um curta juntos. na verdade, estou vendo a reprodução de uma cena gravada, na qual ela brilhava. preciso fazer alguma coisa para meus censores baixarem a guarda, continuo caminhando com a tocha, sem muitos indícios do que fazer. tem uma espécie de lingueta, uma abinha. puxo e isso cria um rasgo no preto, semelhante ao que eu usei para entrar, da mesma forma que eu entrei, eu saio, estou de volta a essa brancura
sequência rápida de imagens bregas. fixa-se em cena um cavalo branco, que me olha e pergunta: “e aí, vamos?”. e eu respondo: “vamos”. eu monto na sela e saímos cavalgando; começamos a subir, em volta tudo segue branco. chegamos a um lugar que parece ser um deserto, ou melhor, um oásis, pois há água. desço do cavalo, ele bebe água e eu entro no lago. há outras pessoas na sua beira, mas elas não parecem se importar com a nossa chegada. olho para o céu e vejo uma pipa voando, provavelmente porque daqui a uns dias tem festa da pipa na escola do Ravi. uma das pessoas na beira do lago, uma mulher, me pergunta “você vem sempre aqui?”. dou risada e respondo que gostaria de vir mais vezes. ela mergulha na água e se transforma em um peixe, numa sereia. começo a me banhar, esfregando o corpo com sabão. escovo os dentes, penduro a toalha, vou para o quarto, coloco minha roupa e me deito para dormir. me sinto cansado
*
eu escrevo pois é a linguagem que dá forma à vida
(poema natalino nº2)
1.
a era de aquário começa cheirando a lixo de bar
então eu sinto que é preciso sofrer o caos
& vivenciar o cosmos
por isso eu canto minha dor
em acorde maior
pois a força de um rio
não cabe na imagem
ou mesmo na palavra rio
mas cabe num verbo:
eu rio
2.
muitas barbaridades foram feitas
em nome do amor &
talvez a maior delas
seja amar
repetição é uma forma de não dizer adeus
nostalgia é uma saudade idealizada
no infinito show do eu
a subjetividade é um sujeito imenso
atravessando corpos fósseis
teleguiados por algoritmos
pois se toda emoção é uma interpretação
o amor é sublime grotesco & ridículo
é a criança chutando a bola pela primeira vez
é química sentimento & ação
na granularidade das emoções
amar é sair da passividade
para a atividade
& (re)encontrar o mundo pela primeira vez
*
22.02.2023
encontro outro confuso bloco com anotações de fala-para-texto tentando registrar minhas percepções carnavalescas. buscarei manter e sintetizar somente o mais importante, afinal, tenho um livro para terminar.
nessas notas, digo que poderia relatar como transcorreu a mudança e o primeiro Carnaval que Raquel e eu passamos juntos, incluindo também nossa primeira conversa sobre como imaginamos e queremos viver um relacionamento — foi quando percebi que temos visões e desejos aparentemente distintos e talvez até contraditórios —, mas não quero entrar em detalhes sobre isso, ao menos não agora. isso foi na véspera da Quarta-feira de Cinzas e, depois dessa conversa, já perto das onze da noite, passei na festa dançante organizada por alguns amigos, antes de ir pra casa. antes disso — e do que aconteceu quando saí da festa —, preciso voltar para a manhã desse dia, onde mais uma vez a dupla Universo & Acaso tiraram onda com a minha cara.
na terça-feira de Carnaval acordamos cedo, como costumamos acordar quando dormimos juntos, por conta dos hábitos de sono de Raquel. talvez tenhamos transado — sexo matinal, meu favorito —, tomado café da manhã e, por volta das nove, saído para comprar coisas para a nova casa dela. primeiro fomos a uma loja no centro, dessas que tem todo tipo de acessórios para o lar. depois a levei no atacarejo — “a ilusão do atacado unida ao pesadelo do varejo”, segundo Meu Editor —, situado no shopping da cidade. lá ela comprou o que faltava, e eu aproveitei para pegar alguns mantimentos para casa. guardamos as compras no carro e já estávamos de saída quando ela se lembrou de que precisava comprar uma lembrancinha, pois as aulas na escola da filha dela começariam na semana seguinte e já teria um aniversário na sala.
a maioria das lojas estavam fechadas, então nos demos conta de que era feriado e elas só começariam a funcionar a partir do meio-dia, ainda faltava cerca de meia hora. sugeri darmos uma passeada para já identificar as lojas onde ela poderia encontrar o que precisava. durante o passeio, segurei a mão dela e, no tom jocoso que costumo usar mais do que deveria, disse que o negócio estava ficando sério muito rápido: pouco mais de um mês depois do nosso primeiro encontro já estávamos passeando no shopping de mãos dadas, o que é praticamente “assumir a relação”. rimos, continuamos fazendo piadas com isso e outras coisas até encontrarmos uma “livraria” aberta. uso aspas, pois não é bem uma livraria, mas sim um lugar que vende livros genéricos, provavelmente montada por alguma editora que publica obras em domínio público com qualidade editorial duvidosa e preços baixos, transformando aquele box num emaranhado de ilhas de livros parecidos, em sua maioria voltados para o público infantil ou infantojuvenil. fiquei avaliando os títulos e deduzindo o possível modelo de negócios da editora responsável por publicar quase todos as obras ali disponíveis. fiquei uns dez minutos olhando cada agrupamento de livros sem encontrar nada que me atraísse, enquanto a vendedora se esforçava mais em converter Raquel à sua religião do que vender livros. ainda assim, ela conseguiu encontrar e comprar um livro sobre dinossauros.
ela pergunta se quero comer algo, ao que respondo que não. eu estava sem fome, ela também, então caminhamos de mãos dadas rumo à saída do shopping. e, mais uma vez, numa sincronia perfeita entre os diversos elementos que constituem os diferentes níveis da realidade, mesmo sendo feriado, as lojas ainda estarem fechadas e eu não ter costume de frequentar aquele lugar, no exato momento em que as portas automáticas se abrem para sairmos, elas também se abrem para que LL, suas filhas, mãe e namorado adentrem o shopping — local que, conhecendo ela como conheci, sei que também não costuma frequentar.
cara leitora, caro leitor: após mais de 300 páginas juntos acompanhando esta história, me permito evidenciar o quão estatisticamente improvável é esse encontro ter ocorrido. o shopping fica bem distante de onde moramos, tanto LL quanto eu; reforço que nenhum dos dois tem o hábito de ir ao shopping — menos ainda numa manhã de feriado, estando as lojas fechadas —, além de avessos ao ambiente e luzes e modelo de shopping que todo mundo sabe o saco que é. enfim, sob meu ponto de vista, eu esperava encontrar LL em qualquer lugar, menos ali. e, se eu tivesse ido ao banheiro, decidido comer algo, enrolado um pouquinho na cama; ou se, da parte dela, LL tivesse acordado três minutos mais tarde, uma das meninas tivesse pedido para esperar um pouco, pois não encontrava seus sapatos, enfim, se qualquer coisa naquela manhã tivesse sido minimamente diferente, talvez aquele encontro não tivesse ocorrido. mas não, tudo foi mínima e espantosamente cronometrado para que nós sete nos encontrássemos ali, na porta do shopping, naquela manhã de carnaval.
imediatamente, LL e eu começamos a rir, cientes mais do que as outras cinco pessoas presentes do elevado grau de improbabilidade daquele encontro. nos cumprimentamos com um beijo, eu ainda num pequeno estado de tilt, não por incômodo ou desconforto, mas talvez por conta do “susto”. me ajoelhei e dei um abraço forte nas suas duas filhas, que estavam fantasiadas de gatas ou outro animal; dei um beijo em sua mãe e pela primeira vez apertei as mãos e olhei nos olhos do (agora sem mais dúvidas) namorado dela, (creio que) o mesmo desde que ela terminou comigo, visto que ele era mesmo bem parecido com ela. naquele breve instante, de maneira automática e imediata, senti como se eu tivesse feito o download de um pacote de informações através das quais ficava claro que ela o tinha conhecido nas aulas de kung fu, se interessado por ele, e, como nossa relação já vinha num momento de baixa, decidiu terminar comigo para poder ficar com ele. todo esse processo não durou mais do que cinco segundos de processamento, então me dei conta de que deveria apresentar Raquel. todos se cumprimentaram, trocamos duas ou três frases incluindo o fato de somente a “livraria” já estar aberta, ao que o namorado dela me perguntou se havia bons livros lá. respondi que não. nos despedimos, e os cinco seguiram shopping adentro enquanto Raquel e eu saímos para o estacionamento.
lá fora, diante da provável expressão de espanto ainda existente em mim, tentei comentar com ela o que havia acontecido, e só depois de algumas falas talvez um pouco desconexas ela compreendeu que aquela mulher recém-encontrada era minha ex-namorada e o cara com ela era o seu atual namorado, e não um irmão ou primo, como Raquel havia previamente imaginado. “eu saquei que havia algo algo entre vocês; ela me olhou de cima a baixo, mas não imaginava que era a ex da sua relação anterior”, disse ela.
depois disso, falei rapidamente ou me encontrei por acaso com LL, mas nunca tocamos no assunto, ainda que fosse para compartilharmos nosso espanto mútuo.
tudo isso dito, passadas mais de doze horas daquele mesmo dia, agora já na madrugada do seguinte, saí da festinha dançante e estava dentro do carro conectando meu telefone ao rádio, quando surge ao lado da minha janela um homem de vinte e poucos anos, de moletom, shorts e chinelo me perguntando se eu tinha algum dinheiro para lhe dar, ou se eu poderia lhe dar carona até a rodoviária, pois precisava pegar um ônibus para voltar à sua cidade. ligeiramente bêbado, eu disse que seria sincero: não iria em direção à rodoviária, mas, mesmo se fosse, não daria carona para um desconhecido surgido no meio da madrugada. talvez ciente do seu perfil de “noia”, ele levantou a blusa e deu uma volta, mostrando que não estava armado nem nada do tipo, ao que eu disse tudo bem, mas mesmo assim não vou arriscar, foi mal. disse que tinha, sim, algumas moedas para lhe dar, que era um valor pequeno, mas aquelas eram moedas mágicas, pois no ano-novo eu havia feito um ritual para atrair prosperidade, abundância, e que faltava concluir a parte final: dar para alguém na rua as dez moedas douradas utilizadas no ritual. de certa forma a situação se invertera e agora era o cara que me olhava desconfiado. percebi isso e disse pra ele ficar tranquilo, que não era macumba nem nada do tipo, mas sim um lance pra trazer coisas boas tanto pra mim quanto pra ele, caso ele aceitasse ao moedas. ele me disse “beleza”. peguei o saquinho de camurça que estava desde o início do ano no porta-luvas do carro com as moedas e as entreguei para ele, desejando boa-sorte e indo embora para casa.