Três contos de Jenny Rugeroni
Jenny Rugeroni é autora dos romances “A Herdeira do Silêncio”, “Um Céu de Estrelas Curiosas” e “O Ano em que não Choveu”, além de diversos contos e crônicas. Vive com a família e catorze gatos em São João da Boa Vista – SP, na região da Serra da Mantiqueira, onde a natureza é uma fonte de inspiração. Vencedora de mais de quarenta prêmios literários, apresenta um olhar lírico sobre o cotidiano, convidando à reflexão sobre a desigualdade social e os dilemas enfrentados pelas mulheres contemporâneas.
Gabrielle Andersen, Rudyard Kipling e minha mãe
Numa manhã de domingo, vi na televisão a maratonista suíça Gabrielle Andersen-Schiess, hoje com mais de setenta anos, relembrando sua marcante participação nas Olimpíadas de Los Angeles em 1984. Através do relato carregado de emoção, fiquei sabendo de vários detalhes que não conhecíamos na época. O desespero do marido, procurando-a com o olhar, aflito porque ela demorava a chegar. A explicação médica do quadro grave de desidratação que causou na atleta dores lancinantes e confusão mental. E o seu depoimento, contando que no final da prova mal tinha consciência do que estava fazendo, mas sabia que precisava chegar de qualquer jeito.
Recuando no tempo, me vi de novo com oito anos. Parece que foi ontem que assisti com assombro, ao lado de minha mãe, a atleta cambalear pelos últimos metros da corrida com o corpo retorcido pelas cãibras, e desabar exausta ao cruzar a linha de chegada. Se a televisão não mencionasse, eu nem me lembraria de que a vencedora da prova foi a americana Joan Benoit. Mas a imagem de Gabrielle continuou me assombrando, e me impressiona até hoje.
Minha mãe havia sido bibliotecária, e foi dela que herdei a paixão pela literatura. Eu era uma garota séria e introvertida, com a cabeça cheia de citações e trechos de livros, mas com pouquíssimo conhecimento do “mundo lá fora”. Sendo filha de imigrantes, meu vocabulário em português era bem limitado quando entrei na escola, o que só fazia aumentar minha timidez. Na sala espaçosa da casa do sítio, apinhada de objetos antigos, minha mãe e eu passávamos horas conversando sobre coisas tão diversas como a possibilidade de uma terceira guerra mundial e as mudanças que aconteceriam em meu corpo num futuro próximo. Pela porta que se abria para a varanda, via-se a estrada e os bosques de eucaliptos. Na estante de madeira, entre os livros que eu conhecia e aqueles que era proibida de ler, havia um fichário preto cheio de poemas e textos que minha mãe copiara com sua letra cursiva perfeita, ilustrados com desenhos contornados com caneta hidrocor. Logo depois da transmissão da fatídica maratona, ela apanhou o fichário e leu um trecho do famoso poema “Se”, escrito no final do século XIX pelo britânico Rudyard Kipling, também criador de Mogli, o Menino Lobo.
(Abaixo, o trecho na versão traduzida por Guilherme de Almeida. Para conservar o sentido do poema, a tradução sacrifica muito da musicalidade. Mas a versão original pode ser facilmente encontrada na Internet…)
“Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida
E perder, e ao perder, sem nunca dizer nada
Resignado, tornar ao ponto de partida
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: Persiste!”
– Está vendo? – disse minha mãe, emocionada – Foi isso que ela fez.
Depois de tantos anos, em minha memória tudo se confunde. Recordo vários incidentes difusos, sem conseguir colocá-los em ordem cronológica. Naquela época, minha mãe ainda não sabia que estava com câncer. E eu não sabia que, em pouco tempo, não teria mais as tardes tranquilas em meio aos livros e às nossas intermináveis conversas.
Assim como a atleta, minha mãe lutou até onde pôde. Lembro-me dela alguns meses depois, no início de 1985, pálida, fragilizada, com olheiras, dizendo em seu português limitado: a minha meta é conseguir ir a pé até o supermercado em julho. Dizia isso olhando pela janela para os eucaliptos na serra. Eram dias longos, com muito calor, sol e chuva. O sítio ficava a alguns quilômetros da cidade, e a caminhada morro acima para chegar ao supermercado mais próximo exigia bastante resistência.
Não conseguiu. Em maio, quando as noites se tornaram longas e as geadas branqueavam as plantações, acabou cruzando outra linha de chegada. A maratona estava no final; sua missão fora cumprida. A ausência permanece com os netos que ela não conheceu, com as alegrias e tristezas que não pudemos compartilhar. Hoje, mais velha do que ela era na época, olho a mesma paisagem de uma janela diferente, e me pego imaginando quais seriam os assuntos de nossas conversas agora. Junto com a saudade, fica aquela perplexidade que se sente em relação às coisas que não podemos entender.
*
Memória
Lentamente, saio do quarto do hotel e desço para o saguão, de onde posso ver a praia. Será uma leve tristeza que paira no ar? Não, não é bem tristeza, é diferente. Eu diria um presságio, uma sensação de assombro, de que algo está para acontecer. Deslizo pelo restaurante com pé direito alto revestido de madeira, as grandes janelas com vista para o mar. Tenho feito tudo lentamente, quase sem perceber, sem sequer tentar me apressar; para quê? Agora que sou dona do meu tempo, sinto que ele me escapa. Da última vez que vim aqui, você estava comigo. Está me ouvindo, Mário? Sinto sua falta. Ainda carrego a sensação de que não te amei o bastante. De que não desfrutei o suficiente da sua companhia. Junto com os dias bons e ruins que permanecem na memória, tivemos muitos dias indiferentes, o tempo jogado fora como se fosse infinito, um ao lado do outro sem nada a dizer.
Será a paisagem que me torna melancólica? Me vem novamente a sensação de assombro, uma batida do coração que se sobressalta e se aquieta. Por um instante, não me lembro de como vim parar aqui, nem por quê. Foi a Karina que pagou a viagem. Cismou que eu precisava me distrair, que estava enfurnada dentro de casa e isso faz mal para a saúde. Eu me lembro, Mário, do medo que você sentia quando a Karina entrou na adolescência e começou a contestar a gente. Eu vivia tensa, tentando conciliar as opiniões dos dois, ambos inflexíveis e se achando os donos da verdade. Sabia que ela era uma boa menina, apenas um pouco rebelde porque precisava abrir caminho, descobrir quem era separada de nós. Ela fez tudo que você temia. E sobreviveu. Mais do que isso, tornou-se admirável com a força de tantas vivências.
Junto com o cheiro do mar, sinto o teu cheiro. Me lembra café, grama cortada, a cama quente e as manhãs de domingo. Você está aí, Mário? Está me ouvindo? Queria encontrar aquele bar com o deck de madeira onde passamos a tarde ouvindo música. Lá morava um gato gordo, que passava por entre as mesas quando sentia cheiro de peixe, e tirei uma foto sua brincando com ele. Você estava tão feliz naquele dia que eu fiquei feliz também, esquecida de nossas preocupações cotidianas, me desmanchando de prazer enquanto flutuava através das ondas.
Você foi perdendo a memória antes de mim, aos poucos. Esquecendo onde tinha deixado a carteira, as chaves. Eu anotava tudo na agenda. Você nunca criou esse hábito. Não tinha paciência, era mais fácil mandar a Karina procurar. Isso me aborrecia. Por que a menina tinha que dar conta das suas coisas, se não foi ela que perdeu? Mas você sempre foi assim, meio autoritário, mesmo quando ela se tornou mais forte do que nós.
E agora é a minha memória que vai me deixando.
O que vai acontecer quando eu deixar este mundo? Vou te encontrar? Ou tudo irá cair no esquecimento? Engraçado que não tenho mais medo. É inevitável, igual a dormir quando temos sono. Pensar que isso me deixava em pânico, alguns anos atrás… Houve uma época em que eu tinha receio de dormir e não acordar. Tinha pavor de cirurgia por causa da anestesia; como iria perder a consciência e não saber o que estavam fazendo comigo? Queria estar no controle. Não conseguia deixar fluir a vida, como um rio de águas tranquilas. O que ela nunca foi, aliás. Sempre houve um ou outro conflito, problemas financeiros, a filha ou os sobrinhos dando trabalho, a desconfiança de que você me traía. Agora tudo vai se dissolvendo. Por que perdi tanto tempo sofrendo por essas coisas? Tudo vai se desintegrando…
Mas o que tenho hoje, agora, é o mar debaixo dos pés, o sabor da comida, aspargos frescos e camarão no almoço. Ah, você iria gostar, Mário… A água da piscina, as luzes noturnas festivas. Ontem até me misturei aos jovens e ensaiei uns passos de dança no luau. Não consigo ficar até tarde. Tomo um espumante e volto para o quarto. Acordo assim que o dia clareia. Quero caminhar, rever os lugares por onde passamos. A carne é fraca, mas o espírito está disposto. Me demoro nas espreguiçadeiras ao redor da piscina. Depois da mureta revestida de pedras, está o mar. O coração se acalma um pouco com o ritmo das ondas.
Tenho apenas o dia de hoje. Farei o melhor com o que me cabe. Até onde tiver forças, quero aproveitar o que a vida proporciona. É o que posso oferecer ao mundo. O meu prazer. Minha alegria. Me recuso a ser uma velha resmungona. Se a coluna dói, tomo um analgésico. Sou uma pessoa essencialmente feliz. E a sua ausência não mudou isso, Mário, pelo menos não de todo. Penso que você não gostaria que eu fosse uma viúva amargurada. Foi um privilégio, sabe? Viver ao seu lado todos esses anos. Sinto teu cheiro, café e grama cortada. Talvez você esteja mesmo por perto. Gosto de pensar que sim.
Atravesso a pequena passagem de madeira. O cheiro do mar me atinge em cheio. Você está aqui, Mário. Tenho certeza. Você me pega pela mão, sinto-me segura e protegida. Estou pronta para ir? Vou caminhando, caminhando ao seu lado, as ondas do mar lambendo meus pés, e tudo se dissolve na névoa.
O fantasma na janela
A vista do quarto do hospital dava para um jardim interno, com um pequeno lago de carpas rodeado por alguns pés de bambu decorativo. Olhando para fora, tive um desejo de estar ali, sentada no único banco de madeira, deliciando-me com a sensação do sol na pele. As paredes brancas e impessoais tornavam o quarto ainda mais gélido. Senti um calafrio ao tentar amarrar os cordões de minha camisola. Então vi de relance, no vidro da janela, o rosto de minha avó entre as nuances de verde no jardim.
Olhando com mais atenção, percebi o equívoco. A imagem era de meu próprio rosto pálido, os lábios sem cor, um fantasma. Sem dúvida, os olhos dela haviam sido idênticos aos meus, mas a semelhança agora era ainda maior. Seriam os óculos novos de aro de tartaruga que mandei fazer, tão parecidos com os que ela usava? Há dois anos, quando cortei os cabelos, minha filha comentou que ficaram iguais aos da avó Anna. Até mesmo isso nós tínhamos em comum – o nome Anna Beatriz, que me foi dado em homenagem a ela. Para a família ela era Anna; eu era Bia.
Fazia agora seis anos que a avó nos deixara. Meu avô faleceu um ano e meio depois, sem coragem para suportar a ausência. As lembranças me chegam de forma desconexa. O cheiro do bolo de cenoura assando no forno, as folhas de outono na praça em frente ao apartamento e as crianças uniformizadas saindo da escola, do outro lado da rua. As roupas de boneca que minha avó me ensinava a fazer com linha e agulha, sentada no chão ao lado da mesa de canto, sob a luz do abajur com desenhos orientais. Eu sempre associava os ladrilhos retangulares do templo budista representado no abajur com barras de chocolate. Hoje penso que deveria haver muitas falhas nos vestidos de festa que eu confeccionava para minhas bonecas. Mas na época, me sentia maravilhada com o que era capaz de criar. Cheguei mesmo a fazer um vestido de noiva com os restos de uma cortina branca de renda. Eu tinha oito anos, e minhas amigas mais próximas pediam roupas para suas bonecas também. Mas copiar uma peça que eu já tinha feito antes era um trabalho entediante. Minha avó me incentivava: a segunda vez é sempre mais fácil. E a tarde calma caía sobre nós, como as folhas alaranjadas que forravam os canteiros da praça.
Não consigo me lembrar de nenhum defeito que minha avó tivesse. Exceto, quem sabe, as mentiras brancas que ela contava ao meu pai para me proteger. Ainda assim, havia amor por trás de suas histórias inventadas, e ríamos juntas da sensação de viver perigosamente. Quando engravidei e decidi me casar, ela foi a única que me apoiou, enquanto o resto da família se escandalizava. Agora já está feito, dizia ela, e ficar discutindo não vai mudar os fatos.
– Vou ser realista – alertou o médico ontem à tarde, depois de instruir meu marido sobre o procedimento para a internação. – Mesmo com a cirurgia, as chances de cura não são de cem por cento. O câncer é uma doença imprevisível, não se sabe como cada paciente irá reagir.
Vi o pânico mudo nos olhos de meu marido, e apertei sua mão enquanto caminhávamos pelo corredor do hospital. Na rua estava chovendo, e meus pés tinham se molhado ao sair do carro; em meio a toda a confusão de minha mente, esse detalhe se afigurava estranhamente incômodo. Eu tinha lido tudo que pude encontrar a respeito da doença: histórias tenebrosas de morte inevitável depois de um longo sofrimento, e também os relatos edificantes de sobreviventes. Dizem que o pensamento positivo ajuda. Na dúvida, era melhor me manter calma, sem revolta. Mas a vida permanecia desconexa, como num sonho em que eu era outra pessoa.
Ele me deixou às nove da noite, quando terminou o horário de visitas. Então o desespero anoiteceu sobre mim, no ambiente claustrofóbico do quarto fechado. Minha sensibilidade estava tão aguçada que a agulha do soro em minha mão esquerda começou a arder. Chamei a enfermeira, que olhou para minha mão e disse que estava tudo em ordem. Porque eu não podia comer ou beber água, a fome e a sede me atormentavam. Um livro me fez companhia nas horas da madrugada, distraindo minha mente do tempo que demorava a passar.
Sinto um enorme impulso de viver. Ainda não tenho cinquenta anos. Quero o sol na minha pele. Quero os risos de minha filha e o mau humor de meu cachorro bravo. Quero dançar com meu marido sob o luar nas noites amenas. Quero as tardes de outono para ensinar minhas futuras netas a costurar roupinhas de boneca. Tenho que fazer valer a pena, que o sacrifício não seja em vão.
E se eu não resistir, o que será de meu marido e de minha filha? De alguma maneira, eles sobreviverão sem mim. Terão um ao outro. Com o passar dos dias, a dor será menos intensa, até se tornar a doce melancolia que me vem quando penso em meus avós. Eventualmente meu marido terá outra mulher. Isso me dá náuseas. Mas estou sendo egoísta. Vou querer que ele seja infeliz e sozinho para sempre?
Meu marido, minha filha, sentirei tanta saudade, será que vou poder ver vocês? Eu sempre tive um monte de dúvidas, a minha fé é uma semente de mostarda. Mas acho que estou em paz com Deus, porque sempre procurei fazer o que era certo. Tenho até um pouco de curiosidade de saber como é o outro lado, se vou me lembrar de tudo que aconteceu aqui, e se vou poder voar como fazia em meus sonhos de criança.
O cansaço vai me dominando. Tem sido assim; desde que iniciei o tratamento, minhas forças se esgotam muito depressa. Na semi-inconsciência que precede o sono, me vem o cheiro do bolo de cenoura e das folhas caídas na praça. O sofá de minha avó Anna era macio; ela me abraçava enquanto conversava com as visitas, e a fumaça subia das xícaras de café na mesa. Posso perceber nitidamente o seu perfume de lavanda. Sinto-me em paz. Não me apavora mais a ideia da morte. Se ela tiver que vir, que seja como uma amiga que me beija o rosto.
Eu me lembro de um dia, saindo do trabalho com pressa, numa tarde nublada em que ameaçava chover. Cheguei ao alto do morro e fiquei olhando o céu lá longe, onde as nuvens se fundiam no horizonte. De onde estava, podia ver uma baixada e depois outro aclive, onde ficava o bairro onde moro. Senti o vento em meu rosto e fui tomada por uma indescritível sensação de leveza, como se nada pudesse limitar a liberdade de meus movimentos. Por um instante pareceu-me muito fácil chegar em casa. Bastava tirar os pés do chão e me deixar levar pelo vento.
Talvez seja assim tão simples.