Três contos de José Pedro Brombim
José, 25 anos, é formado em Letras (Português e Inglês) pela Universidade de São Paulo. Atua como Copywriter e, nas horas vagas, escreve algumas coisas que talvez possam ser chamadas de Literatura – talvez, somente, essas coisas. O “L” maiúsculo o incomoda. É calvo e rói as unhas compulsivamente (está tentando parar). Nasceu em Amparo (SP), e sente que de lá nunca saiu.
Os contos são parte de seu primeiro livro, intitulado diálogos humanos, a ser publicado pela Editora Folheando.
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nuvens não têm forma
Esqueça. Esqueça tudo que lhe falei até agora; acho que me engano, inutilmente. Ou não, estive desde o princípio no proceder correto. Ou mesmo não disse nada, ainda. De qualquer modo, sinto que preciso recontar a história. Mais uma vez. Peço desculpas, mas você há de entender minha aparente confusão: faz tempo, um tempo imemorável, desde que relatei o caso dela por completo, desnudado. Faz anos desde que a última pessoa perguntou sobre ela, se compadeceu de sua situação. É solitária, sozinha. Abandonou a si própria? Um dia já me afirmaram isso, desse mesmo banco em que você está sentado agora, quieto. Não sei… Não sei. De fato, você há de concluir; a mim resta contar. Você é observador, não é?… Me desculpe a aparente confusão. E agradeço, de coração, o seu interesse, os seus olhos atentos e curiosos. Aqui, neste manicômio, veja você mesmo, o tempo e as coisas se desdobram e contraem em ondas incompreensíveis – como se as pudéssemos apenas sentir, impotentes, sem conseguir parar por um segundo sequer a observar e refletir, com a paciência devida, sobre sua magnitude. Ou sua insignificante pequenez… Neste local, é uma memória inalcançável, a realidade, de tempos que um dia poderiam ter sido algo. Mas vamos nos levantar. Vejo nos seus olhos uma curiosidade que brilha e transluz. Obrigado novamente por estar ao meu lado. Espero que desta vez cheguemos a algum lugar. Sim, ela, a mulher: era isto mesmo. Caminhe comigo por aqui – cuidado, muitas pedras soltas neste chão simples de estilo português. Faz tempo que não colocam as coisas em ordem neste velho local, mesmo no jardim. Você nota como parece que ele está abandonado, como se nenhum ser vivo colocasse seus pés neste chão imundo. Mas isso realmente importa? Sim, sobre a mulher: ela ficou louca de uma hora para outra. Era uma pessoa normal, de convivência social comum, e sem mais nem menos enlouqueceu. É claro, há um motivo – ou o que acreditam ser o motivo, aqueles que afirmam ter ela entrado em estado de psicose. Eu vou lhe contar o que se sucedeu no detalhe, fique tranquilo; porém, seu rosto entrega tudo. Sim, eu não posso afirmar com toda certeza deste universo que ela ficou louca. Ou simplesmente prefiro, sobre este único ponto tão delicado, não afirmar nada conclusivo, como fazem. Sem conflitos nem problemas pessoais, você me entende, é só uma questão de perspectiva. Não sei: há nela algo que me parece diferente dos outros casos… Cansei de a observar, intrigado, por horas e horas. Ela lá, tão distante de tudo, de mim. Olhe calmamente ao seu redor – cuidado com as pedrinhas soltas, por favor –, o que você vê? Não parecem, cada uma das pessoas que caminham por aqui, lunáticas? Desconfio, do fundo da minha capacidade de compreensão das coisas, que até os médicos, digo, nós, somos poucos sãos. Mas veja, veja bem: os pacientes, as pulseiras nos braços, eles se movem como zumbis. Sabe, de filme? Zumbis, mortos-vivos sem direção; os olhares, é isso que mais me cativa – talvez seja isso mesmo que tenha me trazido até aqui, no fim do dia –, são olhares perdidos, sem foco, sem direção, como se não importasse o que estiverem vendo. Só andam, dispersos, desinteressados e ao mesmo tempo sedentos por algo inexplicável. Pode ser, pode ser o medicamento, realmente as doses aplicadas são fortes – mas há uma exceção. A esta altura, acredito que você já deve ter sacado a pessoa… Isso mesmo – veja, estamos chegando –, ali está ela. Cruze por aqui, por cima deste murinho, isso mesmo… Sente-se, quero ficar um tempo aqui. Sinto saudades deste lugar. Ela, ela é diferente. Ela é a exceção. Há a consumação dos remédios, já antecipo sua pergunta – ou assim suponho, afinal, não moro dentro do corpo de ninguém. Mas, no fim das contas, isso realmente importa? Eu sei, estou sendo repetitivo. Me desculpe novamente a aparente confusão. O que importa, para mim: o olhar dela é diferente dos olhares dos outros. Ela tem um olhar focado, interessado, brilhante – eu diria, até mesmo, um olhar curioso, exatamente como o seu, sabia? Talvez por isso eu me interesse tanto por você. Você me lembra muito ela… Acalme-se, por favor, vamos chegar lá. Você quer muito saber mesmo o que se sucedeu, não é? Talvez por ser novato; ou talvez por ser experiente demais e entender exatamente como as coisas se dão. Mas saiba que nem tudo na vida das pessoas é igual – esta é uma lição que tento relembrar em todos os dias dos quais me restam. Percebemos as coisas diferentes, as sentimos de maneira diferente – como se fossem as nossas sensações chaves que se encaixam unicamente no cadeado da alma perdida de cada um de nós. Talvez seja realmente assim… Não sei. No fundo, não sei. Observe-a, ela, a mulher, lá longe, distante – não chamemos a sua atenção, por favor: ela olha o céu, quieta, e sussurra algo. Ela passa todo o seu dia, do amanhecer ao anoitecer, olhando o céu. Curiosa, enérgica, animada – ela se movimenta, se contrai, se esbanja e se deita, largada, na grama verde, só e somente a olhar o céu. O céu parece ser seu lugar. Você já deve ter ouvido, por aqui, a fatídica frase que ela murmura: “Nuvens não têm forma…” Ela murmura isso há anos para si própria, incansavelmente. Não tira os olhos do céu, mesmo que não haja nele nuvem nenhuma. Ela fica lá, sozinha, as roupas sempre as mesmas – rasgadas, desbotadas, ela não liga –, olhando para cima e falando sem parar, como se no fundo estivesse fitando o espelho da sua existência, esperando alguma resposta que há muito se perdeu. Na terrível existência. Curioso, não é mesmo? Mas não é só isso. Não, não é só isso. Tem mais em seu dizer… Palavras, mais palavras – e no fim é tudo que resta, para ela e para nós. Poucos sabem; ninguém sabe, na verdade, quais são essas palavras, que julgariam inofensivas. Sim, acalme-se, eu vou lhe contar. Você gosta mesmo de apressar as coisas. Me permita, antes, lhe relatar o caso dela, a mulher, no proceder. Como realmente aconteceu – ou dizem que… Ouvidos atentos: foi assim: ela, moça do interior, se casou muito jovem com um rapaz da capital que conheceu durante a faculdade de Medicina, já morando e estudando na cidade grande. Ela parece ter se apaixonado por esse rapaz à primeira vista, e assim se sucedeu com ele, pois logo no primeiro ano de namoro resolveram morar juntos e firmar as coisas de vez. Como casal casado, unidos. Por questões da vida, você com certeza há de entender, uma das pessoas da relação teve de abrir mão de seus sonhos para que a outra pudesse prosperar e se dedicar integralmente aos estudos – nada me tira a ideia de que, de vez em quando, há de necessariamente ser assim para a maior parte de nós, infelizmente –, e ela foi a pessoa que fez isso. De bom grado, ela fez isso. E o fez, dizem, por acreditar que esse rapaz, seu querido companheiro, fosse alguém brilhante e genial, alguém que muito poderia contribuir para a sociedade com suas ideias e serviços. Ela sempre teve esse coração tão voltado aos outros… Logo vieram filhos, logo aumentaram os afazeres domésticos, logo as promoções e oportunidades foram se esgotando pela falta de estudo, logo ela foi sendo deixada de lado; e afirmam que ela viu tudo isso passar bem diante de seus olhos, cada vez mais isolada e perdida, enquanto seus companheiros de estudo se tornavam vencedores em tudo. Felizes, dizem. Mas ela nunca sentiu genuinamente raiva ou tristeza verdadeiras durante todo esse tempo – acreditava que sua abdicação havia sido feita por uma boa causa. Ela observava contente, sim, seu companheiro a se dedicar totalmente às leituras e escritas complexas após o trabalho. Ou mesmo nos dias de folga. Ela torcia para que ele também se tornasse um vencedor. Ela acreditava, dizem, que ele estava sempre com uma ideia genial a ponto de ser geminada; e ele estudava mesmo, lia assiduamente, mas… Me desculpe, falta-me fôlego às vezes. Mas por ser quieto e introvertido, até enigmático – afirmam ter sido por esse motivo que ela lhe tinha tanta esperança, desde o começo –, não dizia nunca algo que justificasse o ânimo dela. Mesmo assim, relatam que ela tinha fé: ele estava planejando alguma coisa. E desse modo os anos passaram, voaram, dispersos e irresolutos. O tempo sempre passa diferente para as pessoas, assim como os sentimentos – nunca se esqueça disso. E ela foi aos poucos se isolando mais e mais. Dizem, até mesmo, que se perdeu em um marasmo de não personalidade, que teve seu ego diluído nesse desejo pelo sucesso daquele que amava; se tornou, já ouvi muitas vezes, a sua própria obsessão estrangeira, rio inesgotável. Porém, nunca, nem diante de períodos em que a dúvida lhe batia à cabeça com força, incômoda, ela parece ter perdido as esperanças de ouvir de suas bocas, as do companheiro, o anúncio de que, finalmente, X ou Y ou Z estaria por vir. Você sabe: projetos, ideias, revelações. Nunca… A não ser quando tudo parece ter desabado sobre sua cabeça, numa noite qualquer de um dia qualquer, que seria somente mais um dia em sua existência se algo nela não tivesse estalado inesperadamente, como um raio que ricocheteia na alma e deixa sua eterna marca incurável. Afirmam ter sido exatamente assim. Eu não sei. É tudo muito confuso. Mas, enfim, você me entende: já errei tanto, tanto… Afirmam que ela surtou, que seu mundo virou de cabeça para baixo, na mesa de jantar com a família, logo após um dia completamente normal, quando seu companheiro, depois de horas e horas quieto, disse a todos que “nuvens não têm forma…” Eu prefiro acreditar que seu mundo virou de fora para dentro. Não sei. Na verdade, seu companheiro estava há muito mais tempo quieto e recluso, isolado em seus próprios pensamentos. Semanas, até. Talvez ela acreditasse que finalmente havia chegado a hora da revelação genial, e que a partir dali tudo seria diferente – que, a partir do momento em que ele despretensiosamente abriu a boca naquele jantar, ela poderia olhar para si própria; e nesse choque de expectativas, você me acompanha, a frase a pegou desprevenida, diante do mais simples e monótono dizer de seu companheiro mudo. Ou talvez, pelo contrário, ela nada aguardava de especial, e aquela frase, solta e incompreensível, a acertou de ricochete, como um disparo imprudente no espelho da realidade, destruindo todo o seu castelo de areia abruptamente. Não sei. Só sei, quero dizer, somente afirmam que a partir do momento em que ela ouviu a frase ela nunca mais foi a mesma. Saiu pela porta da frente, deixou a comida em cima da mesa, foi ao jardim de sua casa e, com todos a observarem-na confusos, se pôs a olhar o céu, deitada. Ela repetia: “nuvens não têm forma…”, e nunca mais parou. Naquele dia, não havia nuvem alguma. Mas ela falou a frase; sim, ela a falou, pela primeira vez… Hoje, veja você, o dia está uma maravilha: céu azul brilhante e nuvens espaçadas. Esse ventinho. Eu acredito que é o tempo preferido dela, sabia? São em dias como este que ela se movimenta mais na grama. Deita e rola, ri alto. Gosto de imaginá-la assim. São raros os momentos assim neste local. Mas no fundo não temos como saber se ela gosta mais desse tempo ou daquele outro. Outrora, parece que é para lá que ela não quer mais voltar. O dia está realmente lindo… Não, não pergunte sobre mim, por favor; eu entendo sua curiosidade, gosto disso, mas já errei tanto. Não tenho nada de valor para contar sobre a minha vida miserável – acredite em mim. Mas confesso que estou mais aliviado agora que lhe disse tudo isso, estava engasgado na garganta, sabe? O que importa, realmente, é que eu possa vir aqui, com você, e ficar a observando em seu momento de mais tenro êxtase e felicidade. O céu é o seu lugar. Você enxerga como seus lábios se mexem? Veja, veja, não perca um segundo sequer disso – os seus olhos, foque-os, isso, destreza, feche as pálpebras um pouco, agora sim: os seus olhos, como brilham! Você vê? É realmente bom tê-lo aqui, ao meu lado. Sim, sim, claro: vou lhe contar o resto da frase. Você é curioso mesmo, não é? Você lembra muito ela… Só não sei se, no fundo, algo vai mudar com essas palavras que restam. A gota que escorre da calha em dia de temporal, ela faz alguma diferença? Ou talvez seja ela a única coisa que importa, por tão insignificante? Me desculpe a confusão. Enfim, o resumo da ópera: é o que se tem para acreditar, o que eu relatei por miúdos agora. No proceder. É o que se pode supor, na verdade, com base no que dizem. Eu? Eu já tive meus tempos de discordância. Já procurei outras respostas; lhe garanto: você não faz ideia do quanto cavei nas tumbas deste solo infértil outras inúmeras e inconclusivas saídas para o caso dela. Na verdade, você faz ideia; sim, eu sei que faz, o seu sorriso entrega. Mas nunca, nunca nada pareceu palpável: tudo é sempre misterioso, uma teia de aranha sem começo nem fim. Vamos indo? Sinto, a cada dia que passa, que me resta apenas contar essa mesma história repetidas vezes, incansavelmente, da mesma maneira como ela olha o céu. “Nuvens não têm forma…”, não é mesmo? E há, afinal, o que fazer diante disso? “Ser ou não ser”, disse um homem comum certa vez, e a decisão que tomou foi ficar parado, extático. Eu faria diferente, por um acaso? Ou melhor, você me diga: é possível fazer diferente? Ah, se pudéssemos desvendar a cabeça das outras pessoas. Ir lá dentro, como um homem desbravando com sua lanterna a caverna imponente da existência, e cutucar bem fundo nos mais soturnos pensamentos, nas mais desinteressadas reflexões. Aí as coisas seriam outras. Mas talvez, aí mesmo, deixaríamos de ser quem somos. Bom, como eu disse, é o que se pode supor… Ela nunca, nem uma vez, nem por um instante, nem para mim, jamais revelou nada. Fica apenas olhando para cima, braços nus ao céu inalcançável, e murmurando para si mesma que nuvens não têm forma…
– Somos nós que temos.
*
carta sobre o concreto em queda livre
Eu tenho a impressão de que a qualquer momento qualquer coisa concreta pode desabar de uma construção qualquer e me matar. O imponente prédio de incontáveis andares, a torre de vidros espelhados, inundada de gente comum a trabalhar, o andar superior de um restaurante, o sobrado da casa de uma senhora – que tudo isso desmorone inadvertidamente enquanto caminho desatento, com pressa ou tranquilidade, por uma rua, deserta ou lotada de gente, e me cesse a existência como num piscar de olhos é o que me assombra. Ou melhor: vem me assombrando terrivelmente nos últimos anos. As pessoas – olhe ao seu redor – têm medo do imaterial: a ira divina, a má sorte, um olho gordo, um processo enganoso, uma falsa acusação, um cancelamento em rede social, um erro judicial, uma calúnia… Também já sofri com esse sentimento de perseguição constante, e talvez essa condição seja um mal necessário da sociedade do nosso tempo. Viver é muito perigoso, certa vez alguém disse sabiamente; por isso, devemos estar sempre atentos – levo essa máxima comigo desde que me entendo por gente, posso lhe garantir. Mas nunca, nunca imaginei que, de uma hora para a outra (sem explicação!), o que condenaria meu livre ir e vir pelas ruas seria justamente um pedaço de cimento. É o concreto – que vejo e cheiro e sinto – que me perturba.
Acredito que você deva achar que estou louco, perdido. Eu já pensei isso seguidas vezes sobre minha condição atual. Você não faz ideia de quantas vezes já me chamei, em frente ao espelho, trêmulo depois de uma insignificante tentativa de caminhada, prestes a vomitar de tão ansioso, de louco… “Louco, louco: você está louco!” – ah, não consigo contar nos dedos das mãos (nem dos pés) as vezes em que gritei isso para mim mesmo, em desespero. Mas peço, primeiro, que você acredite em mim: o medo é verdadeiro. Antes deste contato, fui a uma série de psiquiatras, na capital e no interior, para tentar entender o que se passava, para buscar uma resposta apaziguadora. Porém, além do fato de eu estar com a condição absurda de não mais conseguir transitar em paz pelas ruas da cidade por medo de ser soterrado e morto, nada indicou qualquer traço de doença mental. Eu lhe juro de mãos juntas: ser diagnosticado com uma psicopatologia me daria esperança, tão desesperado estou. Pois, daí, teria tratamento. Mas não… No fim do dia, nada adiantou. A única coisa que esses profissionais (se é que assim posso chamá-los) fizeram foi rir. Rir ou fazer perguntas sobre o passado, como se quisessem abrir minhas memórias e buscar, lá dentro, alguma solução. Mas não havia mais volta – mesmo àquela época, somente a minha condição miserável importava; somente ela me valia a saliva. Além disso, mesmo que tentasse contar a eles uma história de infância, um trauma, qualquer que fosse, eu não conseguiria. Pensar – relembrar, rememorar (comunicar) – outra coisa já havia se tornado uma tarefa incompreensivelmente difícil. É por isso que estou, neste exato momento, após dias em claro, sentado sob a bancada do rancho (de teto de madeira e PVC, materiais não fatais em situação de desabamento) da minha casa alugada há poucos meses no interior, lhe escrevendo esta singela carta. Estava indo tudo tão bem… Enfim, este é um pedido de ajuda. Você é minha última alternativa.
Não, não irei me suicidar. Acho importante esclarecer este ponto, para evitar qualquer desespero desnecessário da sua parte. Sou medroso demais para me matar – e, além disso, já estou condenado por todas as partes, novamente. Cercado pelo risco constante de ter minha existência jogada no lixo por um deslize de algo que não está sob meu controle, que foge aos meus desejos – que é, em última instância, estrangeiro a mim. Um material visível, cheirável, tocável que grita sua indiferença. O concreto é meu estrangeiro. Talvez o que aconteça, se você não puder me ajudar, é eu abdicar de tudo: sim, ficarei então aqui, sentado sob o teto (seguro, minimamente seguro) deste rancho a observar o horizonte tomado pela matéria em dolorosa transformação, até que meu último suspiro cesse. Pensar nisso me deixa aliviado; me traz segurança e conforto, e parece uma maneira digna de gastar meu tempo restante, deixando que o fio da vida escorra, com calma, na frente dos meus olhos cansados. Portanto, lhe faço um segundo pedido: que você tome o tempo que for necessário para ler (e reler, se necessário) esta carta. Não tenho mais pressa. Você pode me ajudar.
Inclusive, me desculpo imensamente por atrapalhar seu dia tranquilo (ou sua semana, ou seu mês, o que for) com essas palavras confusas e desconexas, com essa história tão absurda à primeira vista; lhe garanto: se houvesse outra saída sob meu conhecimento, eu evitaria incomodá-lo com todas as minhas forças. É por isso que demorei tanto desde que me abateu a paranoia para lhe escrever – você sempre esteve em minha mente, eu só não queria gastar seu tempo. Mas você sabe daquilo, da coisa, e por isso recorro à sua pessoa. Eu sei que você sabe da coisa… Você sempre soube! Então, de olhos marejados e extremamente envergonhado, lhe faço meu último pedido de forma clara e objetiva (como você gostaria que fosse): que você me ajude a encontrar a verdade por trás desta minha condição miserável.
O que se segue está separado em duas partes, inicialmente desconexas, mas que, após tanto tempo de reflexão, me parecem conter o material necessário para que você desnude a chave da questão em seu processo de análise. Esse é o quadro (eu suponho, e no fundo é tudo que posso fazer) de fatos, percepções e considerações que podem, se tudo caminhar bem, elucidar a realidade das circunstâncias que me trouxeram até aqui. Na primeira parte, lhe contarei brevemente como tudo se deu, do primeiro arrepio de medo ao ver o concreto reluzir seu perigo indecifrável sobre mim até minha mudança da capital para o interior. Na segunda parte, você lerá uma sequência de fragmentos de momentos marcantes, ou tremendamente insignificantes, não sei dizer, pelos quais passei em minha vida e que podem (assim suponho, mais uma vez) elucidar a possível causa da minha condição. São as gotas que consigo coletar no mar da minha perturbada consciência.
A verdade, estou certo disso, você me ajudará a encontrar. Ela chegará, sim. No fundo, ela talvez sempre esteve aqui comigo, do meu lado, companheira de dolorosos disfarces.
Nesse caso eu a evito, esperando por ela.
primeira parte: sobre o concreto e as medidas preventivas
Quem lhe provou, por A + B, que um prédio em construção (ou já sedimentado) não vai cair sobre sua cabeça? Desabar, assim de repente, sem aviso prévio, e esmagar a sua existência em pedaços de massa orgânica… Este foi meu primeiro pensamento perturbador. Fiz a pergunta a mim mesmo enquanto observava, despretensiosamente, um prédio gigantesco de cinquenta andares encostado na garagem da minha antiga casa. Na capital, as construções cercam o humano a cada esquina – não, a cada passo; como num passeio junto a Caronte caminham todos os dias milhares de pessoas, rodeadas pelos espetos arcados de odiosos demônios, indiferentes aos perigos de cada respiro dado, alienadas dentro suas miseráveis ilusões. Preocupações, dizem, como se isso – o ato de se ocupar inutilmente de supostas complicações do cotidiano e do (sic) “espírito” – as tornasse imunes à realidade material que as oprimem; ao concreto, bicho imortal e apático. Zumbis, hoje sei: são todos zumbis. Se olham ao redor, se veem o arranha-céu a lhes impor, impunemente, sua superioridade física, aí sentem vertigem: “Imagine só estar lá em cima!” Pois imagine, então, ele em cima de você. Mas o humano vive recluso em sua própria casca de noz, em seu infindável marejar; vai e vem, vai e vem, vivendo e vivendo somente, e a reflexão sobre o mundo externo se torna, quando não insuportável, inalcançável – a verdade, você sabe bem, é fugitiva impalpável em nossos tempos. Dela, só nos restam as migalhas que buscamos, não, que somos obrigados a agarrar no ar. É por isso que preciso de você. Mas confesso que, até olhar imprudentemente para aquela merda daquele prédio, era eu como os outros são outros para si próprios – não havia mirado o demônio no olho. Foi a partir de então, do primeiro arrepio de medo e insegurança na espinha, que tudo mudou.
Aconteceu algo naquele dia. Eu sei, eu consigo me lembrar do sentimento que me levou a encostar na parede embolorada da garagem da minha antiga casa e acender um cigarro, mesmo após meses de vitória (sem fumar). Eu estava desanimado, impaciente, confuso. Desesperado? Só não consigo lembrar exatamente o que aconteceu, nem se foi em casa. No trabalho, provavelmente? Não sei… Eu vou, eu vou me lembrar – é a última peça do labirinto que construo, gentilmente, para você. Mas, como estava lhe dizendo, tudo mudou após a visão inoportuna: isto eu posso lhe garantir. Fiz-me a pergunta, e então me condenei para sempre. Imaginei, num primeiro momento, toda aquela animosidade de concreto e ferro e vidro e cimento e os móveis e pessoas e tudo e todos desabando, sem mais nem menos, e soterrando minha cabeça abaixo do solo. Assim, de repente mesmo, fui tomado por uma ansiedade inexplicável. Ouvi as ranhuras, os andares rachando, o remexer do vento, a estrutura toda gemendo incansavelmente, e depois o desabar: numa só tacada, tudo vindo abaixo, o berro de milhares de almas (mortas?) oprimindo minha face, enquanto eu encostava a cabeça, com mais pesar, na parede embolorada. Sim, tudo isso eu vi, eu ouvi. Eu senti. Foi como se, ali, olhando como um larápio inútil o prédio vizinho, minha existência convergisse ao tamanho de um átomo, e minha alma e meu corpo – e eu! – escorressem ao esquecimento…. Eu morri, e só após horas – o dia já caía – ressuscitei a mim, ao sentir o gosto de sangue na boca por tê-la mordido forte demais. Fazia um silêncio ensurdecedor, nenhum carro nem pedestre passavam na rua, e eu suava; minhas mãos estavam pálidas, e o cigarro se encontrava no chão, abandonado e apagado. Pela metade. O choque foi intenso, e nessas poucas e míseras palavras, tenho certeza, não conseguirei descrevê-lo na intensidade que o senti. Foi tudo tão rápido e tão, mas tão lento… Um instante eterno. Foi como se o mundo tivesse parado, por milissegundos, para desmoronar o interminável tic-tac do tempo sobre minha cabeça, sem pressa alguma. Me lembro de ter chorado depois de entrar em casa, correndo, e me sentar na mesa da cozinha para tentar colocar as coisas no lugar. O que foi aquilo? Por que aquilo estava acontecendo comigo? O manto da noite já havia estendido sua escuridão sobre a cidade, e eu mantive minha casa inteira apagada. Tive medo até de me levantar para ligar as luzes – meus pés, eu os sentia, continham o peso do mundo; como um gigante, se os movesse, tudo poderia tremer inadvertidamente – e, aí, sim: o pesadelo se tornaria realidade mais uma vez. Eu chorei, paralisado, até cair adormecido de bruços sobre a toalha desgastada da mesa. Acordei pouco antes do nascer do sol, sem ter sonhado com nada – apagão total – nem me lembrar direito do acontecido. Aos poucos, enquanto preparava o café, as memórias (ou imaginações ou alucinações ou ilusões, ou a bruta realidade agora incontornável que me dominaria dali em diante) foram voltando, e novamente fui tomado por arrepios e calafrios. Olhava preocupado para o teto de casa. Sim, até mesmo para o teto da minha própria casa. Sentia, mais que antes, que meus pés pesavam muito, e isso me causava enjoos ao andar. Cada passo um risco iminente, uma mão à parede, na esperança de me segurar – ou, no fundo, de segurá-la. Resolvi sair antes do costume para ir ao trabalho, sentia que precisava de ar fresco, que precisava mostrar para mim mesmo o quão imbecil estava sendo. Saí. Mal sabia eu que o dia anterior havia sido somente um aquecimento, o prelúdio de algo muito mais terrível. Foi eu dar o primeiro passo (desgovernado, pesado) na garagem e observar, quase aos tropeços, o gigantesco prédio vizinho que a mesma sensação me tomou. Essa seria, naquele momento temi, a minha condição miserável? Eu já me considerava miserável por natureza, um ser desprezível, ignóbil, mas iria agora o mundo igualmente rasgar seu véu de encantamento diante dos meus olhos, escancarar sua inerente podridão? “Mal é carrapato de homem, veja você. Uma vez visto, impossível ser desvisto, uma vez praticado, impossível ser despraticado; e está sempre à espreita, até nas coisas que não se mexem nem se alimentam”, meu avô me dizia quando criança. Agora, sei o quanto ele estava certo, por mais que o ignorasse infantilmente no passado longínquo. Me lembrei da frase no instante exato em que o pânico estava me dominando novamente, no mesmo lugar. Não sei por que, mas me lembrei – até mesmo sua voz grossa, rouca dos cigarros e dos sofrimentos da vida, ouvi, lá dentro, nos ouvidos da mente: o coração. Com todas as forças, me recompus e saí de casa na mesma velocidade com a qual, no dia anterior, a havia adentrado, sem nem trancar os portões. Corri para o ponto de ônibus e dali para o trabalho. Ao me sentar em minha mesa, o terror abatia minha cabeça, e todo o trajeto parecia ter se passado em poucos segundos. Eu estava exaurido. Eu precisava de respostas, naquele segundo dia do início da minha tragédia eu soube. Do nada.
E é isto que venho buscando, cada vez mais descrente, até hoje, passados anos a fio – porém, ao lhe escrever esta carta, sou humilde o suficiente para reconhecer que me satisfaria encontrar uma resposta, no singular, apenas. Se você me questionar (sei que o fará) o que se sucedeu desde então, nos mínimos detalhes, não conseguirei respondê-lo. Não consigo, e lhe prometo não ser falta de vontade nem omissão. É claro, tenho noção de que nossa memória é rede arrepanhada; lembramos ou daquilo que nos foi marcante, pontual, ou daquilo que é descartável, indiferentemente descartável – e, em ambos os casos, nunca sabemos o real motivo. Mas, no meu caso, tudo em minha memória do dia em questão até o momento em que lhe digito estas palavras é… Como posso colocar? Uma massa cinzenta e nebulosa, como uma nuvem carregada de incontáveis lampejos de raios prestes a explodirem no solo, estrondosos. Cenas de desespero em lugares irreconhecíveis, sussurros ensurdecedores (meus, para mim mesmo), o barulho da tecla surrada incessantemente em minhas pesquisas, os pés pesados. Os pés pesados que arrasto comigo miseravelmente, sem sequer cogitar o porquê. Mas, a verdade lhe digo, isso nunca foi preocupação em minhas investigações – minha mente perturbada estava, e está, em busca de outra coisa. Da coisa. Como ignorara as relações sociais que havia construído até então, deixei também de lado este simples incômodo. E por isso, aqui, a minha missão é remendar, no limite do possível, essa teia superficial que compõe a minha própria história (e assim o farei). Nas primeiras semanas, meu trabalho se tornou um obstáculo montanhesco, do qual precisaria, hora ou outra, me livrar, se quisesse me refugiar a fim de entender a condição miserável que se abatia sobre mim. Disso tive certeza quando comecei a entrar cada vez mais fundo nas pesquisas (a tecla surrada incessantemente). Confesso que tentei nos dias seguintes ao acontecimento seguir a rotina como ela era antes. Mas não consegui; a tentativa foi em vão. Uma fenda havia se aberto entre mim e a materialidade que me cercava, e eu estava à deriva dos meus novos temores. O concreto era o meu novo e inescapável companheiro – o carrapato –, e só me restou, então, caçar a verdade antes que fosse imprudentemente esmagado pela realidade. Estas se tornaram as obsessões da vida deste pobre que lhe escreve: a verdade e a fuga, irmãs siamesas da praga da existência. E, até hoje, não tive êxito em nenhuma delas…
As pesquisas – como gosto de denominá-las – eram realizadas somente em casa, no início; contudo, conforme fui avançando, também comecei a usar o tempo livre no computador do trabalho para fundamentar as questões que me pareciam importante: o risco real de um desabamento e as precauções que poderiam ser tomadas. Acreditei, e ainda acredito, que essas deveriam ser as bases da minha busca diante da situação na qual me encontrava. Era um caminho para descobrir a verdade por trás da minha condição, eu estava convicto. Os pés seguiam me afundando, talvez até com mais afinco, no concreto, pesados, e o desespero me dominava a cada segundo, como o tic-tac do relógio que ecoava torturante em minha cabeça durante os expedientes. Por isso, me absorver nas pesquisas se tornou não apenas uma alternativa, mas uma necessidade – e que tomava mais e mais tempo. Os resultados que encontrei, posso lhe afirmar, são aterrorizantes.
A primeira busca que fiz foi simples e direta: “Quantos prédios podem cair na capital?” Naquele momento, essa era a informação mais preciosa que eu poderia ter em mãos, ainda mais se conseguisse traçar exatamente onde se encontravam cada um dos edifícios, para amenizar perigos desnecessários. Infelizmente, isso não consegui encontrar – nem em fontes secundárias. Mas o que achei já me serviu: o número de prédios na capital em condições de risco de desmoronamento passava da casa das dezenas (segundo dados da própria vistoria da Defesa Civil do município). Passava, leia atentamente, dos cinquenta. O fato me alertou; porém, ao mesmo tempo, senti na saliva que escorria viscosamente sobre minha língua uma satisfação – um gosto estranho, companheiro. E eu, como se tomado pelo êxtase de alguma droga quimicamente viciante, continuei. Os riscos para o desabamento de um prédio (eu decorei, acredite se quiser, cada um deles, palavra por palavra) são estes:
● Fundações enfraquecidas – “A fundação é responsável por suportar a carga de qualquer tipo de construção. Deve-se elaborar um sistema de fundação que se atente à topografia do terreno, ao porte e peso da edificação, a características do solo e a construções vizinhas.” Peço que você foque principalmente o último ponto; na capital, e hoje em dia em todos os lugares em que o humano deixa sua marca espúria, o número de “construções vizinhas” é enorme (e ainda assim cresce descoordenadamente). Imagine a quantidade de cálculos que são envolvidos nesse processo para se assegurar uma sólida fundação. As construtoras têm acesso à planta e às informações essenciais das construções vizinhas? De todas? Continuemos: “A desconsideração dos aspectos da construção na formação de uma fundação pode gerar deslocamentos e fissuras nas estruturas, o que pode acarretar desabamentos inesperados.”
● Material de baixa qualidade – “Para economizar, construtoras podem utilizar materiais com qualidade abaixo do padrão. Todo material de construção civil precisa seguir uma série de critérios determinados pela Associação de Normas Técnicas.” Você sabe bem o quanto a ganância e a imprudência regem, como normas irrevogáveis de um contrato calado, o mercado do nosso pobre país.
● Supervisão inadequada da obra – “A fase de supervisão determina a vida útil do edifício ou da construção. O controle de processos e da qualidade visa atender todos os requisitos técnicos do escopo do projeto.” Quando, ressalte-se, os requisitos estão de acordo… “Se a etapa de supervisão não for bem-feita, a obra pode sofrer de problemas estruturais.” Me responda sinceramente: quem é o responsável pela supervisão? Como se sabe a procedência e a precisão desse responsável? Cabe a ele, e somente ele, estabelecer as diretrizes que serão seguidas e dizer, no menor dos detalhes, o que está nos conformes? Isso para tirar da discussão o fato de que as variáveis são tantas e suas responsabilidades tão espalhadas em fragmentos para diferentes seres humanos (falhos) que se torna, na prática, quase impossível assegurar um controle e uma execução completos.
● Problemas no escoramento – “Enquanto o concreto não atinge a resistência necessária, é o escoramento que sustenta a obra. A falta de atenção e a negligência na hora da montagem e fixação do escoramento pode ter consequências graves – consequências, essas, que podem contribuir com o desabamento do edifício, principalmente durante a fase de construção.” A pressa é inimiga da perfeição – quantas vezes você já não ouviu essa frase, repetidamente, como se fosse ela uma partícula persistente que atravessa a dimensão do tempo? E a clássica do mundo contemporâneo: Time is money? Você se lembra dela?
● Alterações imprudentes que podem impactar a estrutura – “A imprudente alteração da estrutura inicial de um edifício (vide a construção de andares adicionais, a eliminação de paredes ou pilares, a inserção de furos [furos!] não previstos no projeto inicial) pode, se realizada sem a devida precaução, estressar a fundação além do limite, ocasionando fraturas e riscos à sustentação.” Nada a comentar.
Eu poderia seguir, incansavelmente, listando outros (mas igualmente relevantes) riscos que podem causar o desabamento de uma construção: falhas na execução da obra, falta de manutenção constante, planejamento e desenho arquitetônicos errados, cálculos equivocados – e assim ad infinitum. Mas espero que você já tenha entendido o nível da situação, um mosaico de interconexões (falhas) que levam a um, e somente um, fim: o risco iminente. Outro dado que, a essa época, também começou a me preocupar, e que só notei após despender ao menos um mês revisando e checando os tópicos acima, está relacionado ao número de pessoas que estão inteiramente envolvidas e, portanto, são responsáveis pela segurança geral de uma construção. O número varia, lhe adianto de antemão, mas pode passar facilmente de boas dezenas, a depender do caso. Mestre geral de obras, encarregado de forma, encarregado de pedreiro, encarregado do bombeiro, encarregado de elétrica, carpinteiros, armadores, pedreiros, pedreiros de acabamento, bombeiros, eletricistas, ajudantes… A quantidade de pessoas às quais se pode atribuir uma necessidade absurda (inumana) de atenção e precisão e execução nesses casos é imensa. Isso para não citar que cada área, cada ramificação possui, em boa parte das vezes, uma enorme lista de regras e normas a serem seguidas à risca – e como se pode saber se cada uma dessas pessoas seguiu, ou está seguindo, essas “regras e normas”? Ou, mais ainda, me diga como sabemos fundamentalmente (por A + B) que elas são realmente seguras, que servem de fato para alguma coisa?
O meu medo, lado a lado às minhas dúvidas cada vez mais crescentes, aumentava, e com isso, no decorrer de pouco mais de dois meses, estava eu tão imerso na realidade que cindia à minha frente, que berrava suas incoerências para um simples homem, que me afundava, sem mão que me puxasse de volta à alienação habitual, em um marasmo endêmico: cada célula do meu corpo, cada gota de suor, cada neurônio refletia as implicações da condição miserável em que me encontrava. Não havia mais volta, eu estava finalmente refém da minha procura insaciável, de uma vez por todas, como se não houvesse existência que não aquela. A verdade – era isto que eu desejava encontrar – você só não me pergunte, agora, qual verdade… Na empresa, comecei a gastar mais e mais tempo com a pesquisa, sem me importar com as demandas habituais da minha função. O trabalho se acumulava sobre minha mesa, a caixa de e-mails lotava-se diariamente, os olhares de preocupação, em um primeiro momento, e escárnio e zombaria, logo depois, aumentavam. A essa época, não ligava mais para demissão, que, para mim, sempre fora algo do qual fugir, uma vergonha que não gostaria de assumir – a da inutilidade, do mal agir. Meu chefe até tentou me chamar, vez ou outra, em sua sala para tentarmos “resolver o possível mal-entendido” da melhor forma possível, afinal, “ninguém muda assim, de uma hora para outra, mesmo que…”, ele dizia, inconclusivo. Mas eu havia mudado. Eu tentava (juro a você que tentava) negar qualquer coisa no começo, nas primeiras reuniões, e até dizia aos meus colegas, com um sorriso amarelo no rosto, que eu estava com “certos problemas em casa”, que não era “nada demais”, e por isso me isolava, paranoico, absorto. Nas primeiras vezes em que ouviram essa desculpa, eles acenaram com a cabeça, sérios. Mas isso – a maneira como me tratavam – não me importava nem um pouco. Como se confirmasse sempre mais a certeza de que alguma coisa estava errada, de que minhas pesquisas apontavam para algo que era, sim, realmente preocupante, desisti de guardar minhas estonteantes descobertas apenas para mim; e, aos poucos fui revelando e indagando aqueles que estavam ao meu redor (meu chefe incluso) se, de fato, isso ou aquilo não parecia estranho, não parecia impalpável. Não parecia pouco crível. De início, o fiz fingindo espontaneidade: trazia o assunto à tona durante os almoços ou nas paradas para o café, como quem não quisesse nada e estivesse tirando a pergunta (as perguntas) da cabeça como um mágico que tira da cartola, em vez de uma pomba branca, um rato sujo e nojento. Mas ninguém dava bola; ninguém parecia ligar ou ao menos notar a relevância dos perigos que eu, de bom coração, levantava e expunha. Foi quando as zombarias começaram. Meus colegas faziam piadas sobre mim nos corredores, quando não, até mesmo, perto do meu ouvido, em cochichos provocativos – o fone me tampava qualquer comunicação com o mundo externo, e nada poderia tirar meu foco da tela do computador. A essa época, já havia deixado de esconder a ansiedade diante das novidades que se abatiam sobre mim. Cortava assuntos no meio, puxava meus colegas no corredor, atrapalhava reuniões de outras áreas – tudo isso para, confesso que às vezes agressivamente, impor o assunto na roda. Eu queria provar meus pontos, eu estava com medo… Mas ninguém, nem uma única alma honesta, me estendeu a mão. Eu lhe digo, com dor no coração, que me chamaram de lunático, de pirado, de demente (“É normal ficar assim, então, completamente enlouquecido, mesmo nessa situação?”). Até mesmo de perigoso – sim, perigoso, eu! Eram eles que não queriam enxergar, nem com as mãos tapando levemente os olhos cerrados, como quem assiste a um filme de terror, o risco a que estavam se expondo ao caminhar pela rua, ao simplesmente viver. E, então, logo na sequência dos meus atos que, hoje, posso afirmar terem sido imprudentes (o que mais eu poderia fazer, você me diga), fui demitido. Em um primeiro momento, deixei o choque tomar conta de mim; já era uma pessoa naturalmente sozinha, sempre fui, e a partir de então estaria ainda mais abandonado, à deriva dos meus sentimentos aterrorizadores. A comunicação havia se sedimentado de vez como uma barreira intransponível. Todos, em todos os lugares imagináveis em que eu ousava abrir minha boca, desviavam o assunto – isso quando me ouviam. Cogitei que havia chegado no fundo do poço. Mas toda vez que me sentava na escrivaninha do meu quarto, em frente ao computador, e revisava metodicamente cada um dos tópicos listados no documento da minha pesquisa e os buscava novamente na internet para apurar mais uma vez a veracidade contida neles eu chegava, em êxtase, à conclusão de que, sim, eu estava mais perto da verdade; ou, melhor: de uma das facetas desse prisma inatingível – a coisa buscada havia se diluído no marasmo das minhas ilusões. Mas era necessário seguir, incessante, em busca de uma confirmação, disso eu tinha certeza. Por isso, aproveitando que o seguro-desemprego e as parcas economias que fiz ao longo da minha vida profissional me garantiriam um período até que considerável de estabilidade, decidi dar o xeque-mate no caso. Era necessário, inclusive, pois até mesmo dentro da minha própria casa o medo começou a me dominar mais fortemente – se o risco do concreto é, em si, dele mesmo, então quem garantia que eu não estivesse exposto a ele sob o simples teto do meu quarto? Além disso, havia algo em minha casa que… Como posso lhe dizer? Não sei ao certo, me confundo agora, isso é ainda nebuloso para mim. Havia em minha casa uma ausência, uma peça deslocada, um gritante silêncio velado. Era como se alguma coisa houvesse saído do trilho, como se o rasgo da realidade se tornasse, lá dentro, mais intenso e perturbador. Caminhar pelo quarto, pelos cômodos abandonados estava se tornando uma tarefa praticamente impossível de realizar; eu tropeçava, arfava desesperado, tinha crises de ansiedade. Era como se meus passos fossem mais pesados na minha casa, e o perigo do concreto, mais constante. Decidi, portanto, reunir o mais rápido possível uma lista de e-mails de engenheiros conhecidos ou encontrados na internet, de empreiteiras e empresas de construção de imóveis diversos (nunca lhe afirmei que era um expert no assunto, e sou humilde o suficiente para assumir isso) e enviar uma série de perguntas seguida de uma apresentação da minha pesquisa e das conclusões tiradas. Assim, poderia reunir todas as respostas e analisá-las individualmente, chegando ao resultado final com o respaldo correto. Eu estava no caminho certo, eu sentia.
Os meses se passaram, e todos os dias eu abria, pela manhã, a caixa de entrada do meu e-mail (o spam também) para checar as entregas. Enquanto não estava na checagem, alerta e receoso, os olhares sempre mirando o teto, tentava ir ao supermercado ou à farmácia, em caso de emergência. Porém, até mesmo esses simples atos, atos que antes eu realizava com as mãos nas costas (como!?), me enchiam de desespero, de medo, de pavor. Como o rato saísse, imprudentemente, a caçar o gato, eu sentia que estava me tornando presa fácil do império material que me cercava: o supermercado, a farmácia, os restaurantes, os sobrados, as próprias casas alheias, tudo, simplesmente tudo ao meu redor se tornava um predador inevitável e imponente que, a qualquer momento, desabaria sua ira faminta sobre mim – o concreto sorria seu apetite insaciável na minha cara, e eu, mendigo impotente de pés pesados (cada vez mais pesados…), apenas abaixava a cabeça, pavoroso. O isolamento estava quase me dominando por completo, me abraçando como o manto serenoso de uma noite escura e fria. Comecei a pedir minha comida e o que mais fosse necessário por aplicativo, para evitar qualquer risco desnecessário, ao menos nas ruas alheias. Quando andava, o chão tremia – assim, como se um gigante caminhasse por sobre a insignificante superfície terrena. Mas esse, já lhe disse, não era o meu principal problema, e tratei de evitar ao máximo os passos em falso – era o que cabia para o momento, tratar da febre como febre, do câncer como câncer. Restava-me, somente, esperar sentado as respostas chegarem dos especialistas, sozinho e apavorado em minha casa. Os meses se passaram…
E eu não recebi nenhuma resposta. Nenhuma.
Da ausência incompreensível surgiu portanto a confirmação que me faltava: eu estava certo, o medo não era insustentado, apenas me escondiam o motivo. Escondiam o motivo de todos, como se pertencessem, aqueles que carregavam o saber, a uma seita secreta e inalcançável às mãos comuns. Mas por qual razão fariam isso? A essa reflexão não me deti; e lhe afirmo, também, que aceitei num lampejo a conclusão de que o lado errado da história não era o meu. Assim mesmo: como se tomado por uma iluminação. Afinal, qual outra resposta eu poderia ter extraído do caso? Nenhuma. Se ninguém me respondeu, por medo ou desconfiança, e as provas estavam excepcionalmente elaboradas e documentadas, eu estava indubitavelmente correto em minhas afirmações. É uma questão de lógica. O risco era real, de fatos. Não me deti, igualmente, na questão dos outros; não caberia a mim – cheguei a essa conclusão enquanto, sentado em frente a meu computador, traçava obsessivamente os planos seguintes após a descoberta – não caberia a mim tentar salvar o mundo, as pessoas. Elas me negaram, silentes e indiferentes, mais de uma vez (milhares, em minha vida!), e de qualquer modo não estariam prontas para aceitar a verdade, para passar pela terrível sensação pela qual eu passava. Eu estava sozinho, com os pés pesados, que a essa altura pareciam ser feitos de concreto, do próprio inimigo que a vida havia imposto sobre mim. O que era aquilo que sentia tão descontroladamente? E por que havia eu sido o escolhido por um Deus sarcástico para encarar de maneira tão bruta a contingência da realidade espúria? A verdade descamava-se bem diante dos meus olhos em fragmentos confusos a cada peça retirada, como se eu estivesse desmontando um tabuleiro que a imagem formada inicialmente meus olhos nunca terão a graça de ver. Eu estava cada vez mais confuso, minha cabeça ardia quente, meus pés afundavam o chão; eu sabia que não poderia demorar para agir – precisava sair daquele ambiente. Por isso, decidi me mudar para o interior com urgência, de preferência para um lugar isolado, para que pudesse, com calma e menos riscos, me aprofundar novamente na busca pela coisa. Por mais que a certeza recente (a de que o louco não era eu!) me confortasse, as preocupações se estendiam por novas e incontáveis teias do meu pensamento obcecado. O primeiro passo era procurar por cidades interioranas sem prédios, pois eram eles que representavam, por uma questão de tamanho e brutalidade, o maior perigo; depois, encontrar uma casa (no máximo) com um aluguel que fosse barato, mas confortável, para que eu pudesse me manter com mais tranquilidade; por fim, restaria encontrar um trabalho – se pudesse ficar de casa, à distância, seria ideal, caso contrário, que o “local” não me oprimisse tanto. Quando todas as pontas estavam plenamente alinhadas (o trabalho ainda incerto, mas já direcionado), eu finalmente estava pronto para partir, e assim abandonei minha antiga vida. No caminho, minhas tralhas amontoadas no bagageiro do ônibus, apertado por todos os lados por mochilas e pessoas desrespeitosas, sentia que os ares do interior me fariam bem; observava as paisagens passando rapidamente, os vazios dos campos intercalados por pequenos casebres de gente simples, com uma paz no coração que já havia muito não sentia. Eu estava certo de que as coisas melhorariam, e ria, sozinho, olhando pela janela…
Mas a vida é composta por facetas. Sim, no começo, tudo se deu da melhor maneira possível: me mudei para a casa de onde lhe escrevo agora, neste exato momento, que fica a mais de cinco quilômetros do amontoado de construções (baixas) do centro. Trata-se de uma casa de campo, mesmo. Ela é pequena, mas confortável e segura, além de ter este rancho de teto não mortal, por assim dizer. Mesmo dentro dela, logo que cheguei, sentia que meus pés não a desmoronariam por completo com um simples tropeço ou descuido. Caminhava com mais tranquilidade, tomado de paz – ao meu entorno, só havia pouquíssimos e longínquos casebres baixos. A mobília não era das melhores, velha e carcomida, mas isso não tiraria a minha nova felicidade: estava tomado por uma plenitude transcendental, posso lhe afirmar. O trabalho também fora outro desfecho feliz desta minha triste história. O posto que havia planejado ocupar (em um pequeno escritório no meio do caminho entre o campo e o centro), que me pagaria uma quantia boa, não foi para a frente, e então tive de buscar algo nos arredores. Acabei trabalhando em uma vendinha de frutas e legumes em uma feira que acontece três vezes por semana por esta região. Recebo menos que ganharia no escritório, porém tenho ainda a grana guardada do meu trabalho na capital, e consigo pagar minhas contas e me dedicar às minhas idiossincrasias, por assim dizer – além, é claro, de não correr nenhum risco concreto. Os meses se passaram assim: calmos, quietos, tediosos (deliciosamente tediosos). Aos poucos, toda a paranoia que me corroía em carne viva – material – foi diminuindo; nunca abandonei minhas pesquisas, mas de pés livres comecei a acreditar que uma nova realidade se formava diante dos meus olhos, uma realidade que, segundo por segundo, apresentava-se como mais aprazível e, eu tive a estúpida certeza!, poderia ser por mim assimilada sem maiores problemas. A busca, a verdade, a coisa – cheguei a achar, infantilmente, que chegaria o dia em que eu finalmente estaria livre delas. Porém, há exatamente duas semanas, bem ao lado deste casebre alugado, começou a construção de duas torres de prédios por conta de um projeto de revitalização e preenchimento do campo. Duas torres – dois prédios imensos: o concreto vibrante. Ninguém sequer me avisou que isso aconteceria, que já estava, provavelmente, planejado desde anos atrás. Ninguém. Entre mim e o mundo, abriu-se uma fissura e fecharam-se inúmeras outras. Novamente, me lembrei sozinho, à deriva… Ainda agora, nesta noite gelada e silente, enquanto lhe escrevo, consigo ouvir o barulho das maquetas e britadeiras e marteladas e máquinas de construção surrando, durante o dia, o mesmo chão sobre o qual meus pés novamente pesados pisam. Em um lampejo, tudo se deu; em um lampejo, tudo se acalmou; em um lampejo, o terror se apoderou sobre mim novamente. Viver é girar sobre o eixo da incompreensível indiferença da realidade. Retomei as minhas anotações antigas, olhei tópico por tópico os perigosos que estão envoltos em uma construção, a quantidade imensurável de pessoas envolvidas no processo, e a eles adicionei, como se não bastassem, os riscos de se construir em um terreno “virgem”, em campo aberto tomado por umidade e declives – como é característico desta região. Agora, não consigo mais. Não consigo mais seguir, continuar a pesquisa, olhar para os lados, ficar dentro de casa, andar com estes objetos estrangeiros e pesados que me ligam ao chão – ao concreto. Não consigo mais. O mundo converge seu peso imensurável sobre mim.
Achei que estava certo. Talvez de fato esteja, e no fundo seja uma pessoa sóbria, que por acaso ou algo que me escapa teve sua relação com o mundo fraturada. Mas nada agora importa. A crua realidade me cerca novamente, com suas garras inescapáveis; o concreto, companheiro insistente, me persegue, arrebentando sem pudor nem compaixão o necessário véu de ilusão que se recompunha entre mim e o mundo, entre o interno e o externo – se é que há mesmo alguma diferença. Vejo, cheiro e sinto, e os instintos mais básicos da vida humana se voltam, mais uma vez, contra esta pobre pessoa. Estar certo ou errado, o perigo ser real ou falso, imaginário, ilusório, psicótico – isso é insignificante. Me perdi em minhas pesquisas, em minhas crenças, em minhas razões (novamente, novamente, novamente). Agora, repito, como em um ciclo sem fim, que preciso encontrar a verdade. A coisa. Mas o que são essas palavras? O que elas querem, no fundo, dizer? Eu não consigo mais…
Você saberá me responder?
segunda parte: histórias sem fins
…
Um dia saí para fumar cigarro na garagem da minha casa e, inocentemente, olhei para o prédio que me cobria com suas sombras imensas. Eu estava desanimado, impaciente, confuso. Desesperado? Algo aconteceu neste dia…
Busco incansavelmente recompor histórias em minhas lembranças, como lhe prometi que faria. Mas agora, depois de ter escrito as inúmeras linhas que compõem esta carta inútil, percebo que já não resta nada em mim daquilo que um dia fui. Escrevo… Apago… Escrevo… Apago… E nada se faz real. O tempo amassou e soterrou o meu passado, como pode acontecer comigo a qualquer momento, a qualquer deslize. Caminho à deriva, ser do instante em construção – talvez eu seja mais parecido com o concreto do que me custa aceitar. Mudei-me, perdi-me. Mas, não, nada disso importa; estou, no fundo, poupando o seu precioso tempo em cortar os fragmentos das minhas memórias de subsolo. Apenas uma história, sinto no fundo do meu peito fraturado, importa; a história que você pode ler e reler no parágrafo acima, se assim desejar. Se é o fim, o começo ou o meio de algo, não posso afirmar com certeza. E não deixo de escrevê-la por completo, letra a letra, por falta de sinceridade ou preguiça; não, você me conhece. Não a escrevo porque nenhuma palavra colocada no papel é capaz de transmitir os significados inalcançáveis dessa história. Ela paira sobre mim, indecifrável, como se escrita por um outro eu, em um idioma que me é, mais do que nunca, incompreensível. Essa história é a razão de tudo, a coisa que tanto busquei – essa é uma das únicas certezas que me restam. Mas posso estar errado… Agora, não sei mais se você poderá me ajudar. Ainda espero, ao menos, que essas lamentações cheguem aos seus ouvidos. Apavorado, amedrontado, paralisado, silencioso eu falho, mais uma vez.
das impossibilidades: a confissão final
Confesso que meu medo é que o prédio nunca caia. Que fique assim, como nesse meu retrato indatável, pendente sobre mim. Esta é minha maior angústia: a imaginação da queda do prédio em seu trajeto interminável até a minha cabeça insignificante. No hiato entre a possibilidade, a dúvida e a crença reside a incurável doença do homem – mas que, no fim, talvez seja aquilo que nos torna profundamente humanos.
Estive errado desde o princípio.
*
o menino, o lobo: ele
Era uma vez, uma dentre tantas, um menino inominável a cuidar das ovelhas de uma certa aldeia.
Era um pastor; e o era por acaso. Gostava de sentar-se, desde bem pequeno, no cume da grande macieira centenária que ficava dentro da cerca dos animais cuidados. Lá estivera acidentalmente num dia qualquer; lá ficaria, por apontarem o dedo a ele em determinado momento e dizerem-lhe, rindo, “fiques aí a cuidar das ovelhas, moleque!”, até… não sabia quando. Se descia, ou pensava em descer, pondo o pé pouco à frente do usual para checar o que embaixo dele estava, chamavam a sua atenção:
“Aí tendes de ficar, pois…” E hesitavam. “Então fiques!” E ficava; o que mais poderia fazer: era jovem, não falavam nada a ele e só lhe restava a obediência.
Quando no começo de sua involuntária estadia deixaram-lhe escapar que estava ali para que, caso viesse um lobo a predar os animais de que cuidava, gritasse aos homens, homens formados e sabidos, refletiu consigo mesmo o pastor durante muito tempo sobre o lobo, não sobre os bichos, não sobre o grito, não sobre os homens. “Lobo”, repetia, separando as sílabas (“Lo bo”, na esperança de que elas lhe entregassem o significado da misteriosa coisa), e pensava em qual seria então a verdadeira face do animal, se era parecido com as ovelhas (como saberia daí quem seria quem!), do que se alimentava, se tinha pelos, se andava de pé, como os seus. Nunca vira antes um lobo – bicho comum –, não tinha a mínima noção de sua verdadeira face; sabia, porém, do seu poder. Se precisava alguém cuidar de bichos tão autônomos como as ovelhas, que à vila inteira davam comida e roupa, tratava-se de coisa séria…
Gostava das ovelhas, mas logo as esqueceu – já as conhecia, sabia de nome uma a uma, dera-lhes apelidos carinhosos e, antes do castigo humano, brincava com elas. Do lobo não sabia nada. Nem sequer donde vinha…
Foi aí que então a mais grave doença tomou conta da cabeça do garoto. Das lacunas surgiu o broto da dúvida, que em pouco tempo desabrochou na flor enraizada, desde tempos imemoriais, no coração dos homens: a imaginação. Pôs-se, o garoto, a divagar. Deitado, olhando mais para cima que para a situação das ovelhas, com as mãos atrás da cabeça, começou a imaginar, todos os dias – e apesar das pirraças que lhe faziam os aldeões, que a cada dia se tornavam mais inaudíveis –, a forma ilustre do lobo, as raízes dele, donde viera; imaginava o lugar, imaginava o seu habitat, se tinha ou não companheiros e se os agredia ou não (era pacífico?); e imaginava ainda mais qual seria a sua reação quando o encontrasse: partiria ao ataque, como uma presa esfomeada? Iria ignorá-lo, partindo somente às ovelhas? Como o viria? Quem seria ele ao lobo?
Quanto mais pensava, mais se desesperava: queria vê-lo, queria ver-se aos olhos dele: o lobo tornara-se seu companheiro de exílio, ali, a menos de 50 metros do centro da vila, das vozes dos aldeões adultos…
Que não mais ouvia. Ensurdeceu-se de pensar, ignorava todos, até mesmo o resmungo das ovelhas. Narciso morreu de si; ele estava certo de morrer de lobo, que não deixava de ser de si mesmo morrer – mas não afogado num lago raso, e sim no mar profundo que é o vagar. Depois de tempos a apenas perder-se em quimeras, a flor amarela da imaginação, da fábula que criara, começou a sufocá-lo. Tinha de botar para fora, tinha de externar algo – e assim o fez: numa tarde dum dia qualquer, começou a berrar por sua criatura. “Lobo, lobo, lobo!” Três vezes, religiosamente, gritava, sem ao menos olhar para baixo. Vinham os homens, bradavam-lhe sua estupidez ao ver que nada estava acontecendo, palavras torpes eram proferidas a ele (“moleque louco!”); e nada. Nem sequer se tocava de que algo debaixo de sua cabeça se movimentava: chamava, no fundo, a si próprio. Três dias se passaram, e o lobo não apareceu. Os aldeões chegavam sempre até ele, mas cada vez mais começaram a só fitar de longe o que se passava: “Deu na telha do garoto gritar como louco, agora!” “E você viu só, finge que não existimos…” “Pois é: é criança estúpida, veja só, está berrando novamente…” “Não é nada, deixe lá… Vamos, venham todos. É só o menino…”
Era o lobo ao fim do quarto dia a olhá-lo. Por qual razão não se sabe (e se sabe a razão de algo?), mas, como que atraído, virou-se o menino de supetão no tronco d’árvore: ele, Lo bo, estava lá, à porta da cerca das ovelhas, que dormiam, assim como dormiam os aldeões. Parou de imaginar; chocou-se. Nunca vira antes um lobo. No fundo, não condizia com o que criara: era mais bicho que gente, mais animal que menino. Sentiu estremecer os ossos e observou chocado todo o contorno do bicho. E viu pelo, e viu dentes maiores que os seus, e viu patas animalescas. E agarrou-se ao tronco de baixo. E não tirava os olhos do bicho, que também não tirava os seus do garoto. E sentiu novamente estremecer, mas a mente. E esquentou por completo, e olhou o reflexo da lua nos pelos (pelos de animal!). E o viu sozinho, e o viu a vê-lo, vê-lo calado, vê-lo de baixo, inexpressivo… E uivou. E o menino ouviu o uivo, que era animal, que era diferente do som que imaginara, assim como era o bicho indiferente a ele… assim como eram diferentes. E o lobo fechou a boca, bocejou e saiu a andar em direção à aldeia, calmo, tranquilo. E o menino soltou um grito inaudível, para dentro… E caiu da árvore sem saber o que era aquilo, sem saber do que se tratava, sem saber se era.
Não se sabe se morreu, só se sabe que viu o lobo – a fundo, olho n’olho… Outro.