Três contos de Juliana Berlim
Juliana Berlim é professora de Português e Literaturas do Colégio Pedro II, onde coordena o clube de leitura de literatura fantástica Neuromancers (I Prêmio Paulo Freire, ALERJ, 2019). Mestra em Ciência da Literatura pela UFRJ. Autora com textos publicados no Brasil (Revistas Gueto, Germina, Mirada da Janela, Ruído Manifesto) e no exterior (Alemanha, Chile, Coreia do Sul, Espanha e Portugal). Projetos recentes: Brazilian Translation Club (2021) e Mapas do Confinamento (2021); poemas em Poetas negras brasileiras (Ferina/ Editora da Cultura, 2021); Versão brasileira: a voz da mulher (Teatro da mente, 2023); contos em Carolinas (Bazar do Tempo, 2021), I Antologia de Contos Ofícios Terrestres/Acontece nos Livros (2022), Quilombo do Lima (Editora Malê, 2023) e Quando não estávamos distraídos (Ed. Sinete, 2023); crônica em Perspectivas, ilusões e contentamentos (Ed. Sinete, 2023). Escritora da FLUP (Festa Literária das Periferias) desde 2016.
Os contos abaixo integram o livro A devoração da sutileza (Editora Patuá, 2023).
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Fonte
Ninguém
é Ulisses por acaso
Carlos Nejar
…sou uma escritora do Terceiro Mundo
Lygia Fagundes Telles
Nascida de animalização vegetal, rica de minérios de fonte sideral, alienígena de toda Terra. Plasticidade originária, fundação de plânctons e espécies companheiras, fonte e raiz das guerras, porque ninguém nasce Helena por opinião, com mundos repartidos sob os pés pela simples condição de ser. Anormalidade: mulher, estar-aí no mundo como. Para além, viver e amar em Abya Yala, corpo em plena madurez do conflito, vontade de sangue vital. Ainda mais, intelectual latino-americana, artista das tecnologias da fome herdadas dos de fora, construídas sobre os escombros de riquezas originárias.
— Quem és, mulher?
— Sou uma escritora do Terceiro Mundo.
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A intrusa
A cidade estava mais deserta do que nunca. A epidemia trazida pelo vento – que soprava sempre do Oeste – alastrara-se pelos quatro cantos do lugarejo e matou a maior parte das crianças, fazendo com que tudo ficasse completamente deserto. Os velhos, petrificados sobre os bancos da única praça existente por ali, tinham agora rios de lágrimas petrificados em seus rostos – tão logo morressem, a cidade morreria com eles.
Os poucos pequeninos ainda vivos parariam de resistir e não demorariam muito a perecer. Já há muito deixava de ser surpresa um cortejo atrás de qualquer pequeno caixão. João, Maria, Antônio; nomes que engrossavam as listas das inúmeras sepulturas abertas para os jovens novos habitantes do cemitério local. Os coveiros nunca tinham trabalhado tanto. Contudo, por trás do aparente conformismo habitual desses companheiros cotidianos da morte, escondia-se a tristeza, mesmo que contida. “Se foi mais um”, diziam os velhos da praça em seus murmúrios. E o vento continuava a soprar do Oeste…
Fato surpreendente: a moléstia que praticamente dizimou a infância da cidadezinha – os médicos até aquele momento desconheciam tendência similar na literatura da clínica geral ou da pediatria – não contagiou uma única criança, a filha da mulher com a pior reputação de todas. Por ter chegado grávida e solitária ao vilarejo, era escorraçada pela maioria dos cidadãos, por ter tido a ousadia de se estabelecer num lugar de gente de bem. Independente da opinião geral, a pequena nasceu, tornou-se moradora e cresceu. Sua doce figura desabrochava sob os olhos da multidão que isolara socialmente sua mãe.
Repetindo o destino familiar, a menina mostrou-se imune ao ambiente externo. A investida da peste que plantava um deserto de infância passou-lhe despercebida, como se ela fosse uma ilha de imunidade. Nascera tão resistente a pequena, enquanto o vento continuava a soprar do Oeste…
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Paralaxe
Casa de marimbondo, sou tua filha. Ou, para além deste tanto, mais um amontoado de moléculas de origem animal com sentença mineral – recorte pós-humano. Por fim, me aconselho: além de usar uma montanha de recursos retóricos, leia os paratextos das ideias dos homens, assuma a paralaxe dos movimentos de outrem, esta criatura que se comporta como estrela binária, como curvatura anã dos sonhos teus (ou mesmo dos sonhos dele mesmo, o tal outrem). Sou eu, sendo, para além deste tanto de mim mesma, também o outro que me acena a mão para que eu a alcance. Cruzo meus dedos com os dele em busca da comunhão perfeita, na forja da sinastria amorosa ideal? Apavoro-me e lanço-me – a mesma vadiação funâmbula, a mesma inclinação vital.
Casa de marimbondo, sou tua filha. Que meu destino, embora traçado sobre o rastilho das ferroadas, me permita igualmente o benefício da paralaxe, o deslocamento aparente do olhar, a visão difusa do tal outrem.
O outrem, a devoração da sutileza do eu.