Três contos e um poema de Clara Sofia Nogueira Lopes
“Antes de tudo, sou alguém que me desconheço. Há tantos eus em mim que eu mesma não sei quem são. Mas a cada tentativa de escrita tento descobri-los e descobrir-me, de forma que também sou descoberta por eles, por mim. No final das contas, acho que a resposta segura seria: Clara Sofia Nogueira Lopes, 22 anos, acadêmica de Letras-Português na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.”
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Roxo com listras cinzas
Lá estava ela, chorando com os olhos vermelhos. Quando minha avó tinha ficado tão velha? Aquelas rugas sempre estiveram ali? Era a máscara do luto ou a ausência de uma máscara mais alegre? Fiquei durante um tempo indeterminado olhando-a da porta.
Ela não me via.
Estava perdida dentro da dor, dentro do mundo arrancado de dentro dela.
Estava com a camisa do meu avô. Era tão pequena, sempre fora assim? Tão frágil. Fazia algo que eu não entendia. Vestia a cueca do meu avô. Subia-a lentamente, ou o tempo assim parecia. Eterno. Os olhos perdidos no espaço, e soluçando com a boca tremida, terminou por fim de se vestir. Vestiu-se de meu avô. Vestiu-se por cima do luto tatuado em seu rosto e muito antes dele.
Queria abraçá-la, proteger aquela coisinha frágil que se desfazia na minha frente, proteger da dor que gritava naquele silêncio dela, pedir “por favor, não se vá também!”.
Mas não consegui. Não me lembro de como fui parar no meu quarto, de como saí dali. O peso em meu peito me prega no chão só em lembrar desse momento.
Vestimos o luto e o tiramos com o tempo, mas algo anterior continuou, e sempre volto a ele quando vejo minha avó, ou a camisa roxa que ficou, ainda com o cheiro do meu avô.
Ela usou a camisa, até não usar mais. Mas ainda a guarda consigo.
*
Arcaísmo
Todo dia a mesma coisa. Espero ansiosamente o sinal anunciando o fim das aulas, para que possa finalmente ingressar no transporte escolar. Sempre com meu casaquinho roxo, não importava o calor que fizesse. Afinal, ele cobria os quilos extras de que todos tanto falavam. Especialmente ele, o amor da minha vida, meu primeiro amor, o garoto mais bonito do transporte. Sei que ele fala por brincadeira e sinceramente, não me importa. Sento-me ao final da besta e o escuto debochar de mim. Deixo para sofrer minha beleza insuficiente em casa, naquele momento, só quero admirá-lo. Era sempre assim, de segunda a sexta. Até que, num dia fatídico, minha irmã mais nova gritou para todos ouvirem: “Ela gosta de…”.
Silêncio.
Algo me apertava o peito por dentro. O tempo suspenso sugava todo o ar em volta, e a tensão dentro de mim delatava a verdade proferida, me cortando em cada canto do meu ser. Mas a corda arrebentou e ele gritou: “Nunca ficaria com alguém como ela”. Nada muito pior do que já tinha ouvido até agora. Meu coração partido de cada dia seguiu aguentando as provocações que só aumentaram. Todos os dias. Hoje paro e penso “esse foi o primeiro romance das minhas neuroses”.
*
Gatos
A sensação de nunca atender as expectativas. Era assim toda vez que me reunia aos familiares. Ligados por nada além de sangue. Sempre fiz de tudo para me encaixar, mas como um bicho, aquele lugar não me pertencia, e sinto que também não me queriam ali. A obrigatoriedade do amor era nosso laço mais forte. Quantas vezes tentei convencer minha mãe do quanto eu tentei. Tantas, tantas fiz.
Sempre fui a melhor em tudo quanto me propunha fazer. Aprovada nos melhores colégios, sempre a primeira, sempre sem me pausar e me permitir uma letargia que me é própria. Sempre sem me permitir. Mas ainda assim, a distância entre o eu e os outros não cabe num papel. Na verdade, as conquistas serviram apenas de escopo para apontarem meus erros. Não me entendam mal, não que não os queira. Os amo tanto que passei a buscar nos outros a rejeição que eles impunham a mim.
Não posso errar, não há perdão, a cíclica condição humana me induz sempre a isso. Por essa razão, me prendo em mim. Se sou um erro, que pelo menos passe despercebido.
Então, quando juntos, resumo-me aos bichos, misturo-me aos gatos, que me amam sem oposições, e me aceitam em mim. Com eles não sou um erro, sou algo digno de amor.
*
Se eu fosse eu
Se eu fosse eu, não me reconheceria
Eu nem mesmo sei quem seria
Se eu fosse eu.
Talvez seja múltipla.
Visto um eu a cada xícara de café
e mais outros quando vou dormir.
Ou será que me dispo?
Visto uma roupa a cada humor e tempo
a cada sonho que anseio?
A cada possibilidade de realidade
Sei que sonho
Sonho muito a ponto de me construir em realidade.
Algo me habita
num lugar escuro feito de nada
Se isso sou eu, sou só
Bicho estranho que se confunde em notas de piano ou barulhos de chuva
Amo-o em estado puro, profundamente
este ser que me habita em mim
queria ser
sem medo, que me cala
me trava o corpo e me separa de um eu arcaico
Se eu fosse eu…
Acho que me aceitaria mais
se eu fosse eu.