Três poemas de Ana Lilia Félix Pichardo
Ana Lilia Félix Pichardo. 19 de Febrero de 1991. Mexicana residente no Brasil, formada em Letras pela Universidad Autónoma de Zacatecas e Mestre em Ciência Política. Atualmente doutoranda do programa da História pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH-UFSC), na linha de pesquisa História da historiografia, arte, memória e patrimônio. Estuda a vida e obra do escritor cubano Reinaldo Arenas. Escritora de conto, poesia e ensaio; é co-fundadora da revista digital La Sílaba e seus interesses são os entrecruzamentos entre a literatura e política.
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I
Os cachorros cheiram a morte
vivem com ela na rua
reconhecem ela, brincam juntos
não tem medo do seu cheiro
Pegam na boca essa carne podre
Sem nome, corpo jogado na terra
Corpos, partes de corpos na pia do mundo
Cachorros sem dono, sem casa
moradores da rua da morte cheirosa
briga de mortos na luz do dia
estética da beleza do animal doméstico
Mas nenhum cão dos bairros do norte
dos prédios fechados
come carne tão fresca, pronta
na calçada /fatiada/
Presunto para os cães, às vezes
Com rosto e sobrenome comum
Para esquecer melhor o som
Dum corpo caindo da cotidiana trilha
*
II
Não posso desenhar uma imagem sinistra
nem poderia falar dela
ela está ali feita noticia
reproduzida no fb, no tiktok, nos grupos de whats
Tento fugir dela, daquele lugar do qual
eu conheço o nome
eu sei onde fica, tem a ver comigo
e sinto vergonha
Quero falar com alguém que sinta o mesmo
que fale e entenda
minhas palavras cortadas
Falo
e não tem ninguém por perto
até fico tranquila
e falo uma outra vez
cachorro é gravado
levando na boca
uma cabeça humana
Falo em voz alta sem medo
me escuto
acompanhado duma mensagem
o resto do corpo esperava
a chegada de qualquer policia
do pequeno povoado
A reprodutibilidade da imagem traz
Á imaginação o cheiro da morte
A reprodutibilidade da imagem leva
na boca minha boca falando da boca
dum cachorro comum
dum povoado qualquer
Não é mais minha vergonha
Meu corpo tá leve
E ainda falando
Dos cachorros do mundo com cabeças humanas.
*
III
Fugimos com a culpa de não ter sido assasinados
temos que morrer, ser estupradas
desmembrados, nessa ordem
Depois devemos colar nossas partes
e andar pelo deserto de Sonora
como se supõe que os mexicanos fazem
receber tiros dos gringos
e morrer duas vezes mais:
Num caminhão, sufocados
outra, na cadeia migratória
Queimados em Juarez ou falemos Texas
Porque além de tudo
precisamos da pena (la lástima)
com nossos mortos nas costas
batemos portas procurando pena
Que culpa não ter morrido desse jeito
e atravessar outras fronteiras
não estar em Nova Iorque
limpando o cu de senhoras brancas
Sim, levo essa culpa nas costas
faço poesia desde ali
mas ninguém pode dizer
que não morri também
na minha favela aquela tarde de fevereiro
o dia do meu aniversário
Nem que não morra um pouco
cada dia
pesquisando por google maps
a fachada da minha casa
olhando as folhas lilases
da jacaranda da minha jacaranda mental.