Três poemas de Daniela Rezende
Daniela Rezende é escritora e artista educadora. Bacharela em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mestra em letras pela Universidade de São Paulo (USP), nasceu e mora em São Paulo. É autora de Uma mulher só não faz verão (Urutau, 2022), obra semifinalista do Prêmio Oceanos 2023, e Mãe fantasma (Primata, 2023).
***
mãe fantasma
minha mãe me persegue como um fantasma
e eu vou morrer em seguida
como uma montanha-russa desconhecida
desmontável, um castelo de cartas
frágil
a enfermeira veio do centro cirúrgico veio vindo pelo longo
corredor branco com um saco plástico
em suas mãos aquele pacote azul, aqueles restos
de minha mãe no mundo
uma calça preta uma blusa preta uma calcinha e um sutiã um par de óculos com uma lente rachada
& uma dentadura seria tudo
o curativo em seu pescoço, a cadeira veio vindo
pelo corredor branco
as cortinas cerradas
meu choro um bebê recém-nascido no berçário
seu olhar me encara
no fundo prateado dos espelhos da casa
minha mãe me persegue como um fantasma
eu corro
e é impossível fugir
(“Mãe fantasma”, 2023).
*
tristes tigres
tristeza que espreita dentre árvores
ela é o tigre o pulo as garras
a carne que sangra
tigre silencioso que persegue
o viajante em sua sombra
e aguarda. a tristeza é tão grande
ele deseja partilhá-la
fluir felino e cobras: fenda
por onde passa luz, em olhos
e garras
quando ela ataca
passo tácito no escuro na mata
os tigres são todos azuis
a tristeza
passeia os dedos pelos pêlos
de um gato. em feridas dá-lhe trigo
e cuidados
estamos todos tristes. estamos
de encontro à tristeza que mora
na tristeza. fazemos uma ode
a enfeitamos com flores
jamais matamos o tigre
(“Mãe fantasma”, 2023).
*
herança
para os meus mais velhos
a cumbuca de farinha
o chinelo gasto
a enxada enferrujada na parede do barraco
as quinquilharias dignas de ferro velho
a camisa do casamento do avô
carcomida de traças
cinco pés de couve queimados de sol
a bicicleta há décadas quebrada
a pobreza das cáries
dos dentes arrancados
das fotografias pela metade
a miséria da falta de notícia
de árvore genealógica
a falta de perspectivas
que perdura e recai fruto podre
de geração em geração
(poema inédito).