Três poemas de Edmon Neto
Edmon Neto é poeta e professor doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Natural de Tabuleiro – MG, prepara o seu primeiro livro de poesia.
***
sabor dos ossos
na verdade é justo
e necessário darmos graças
sempre e em todo lugar.
ele me convidou para beber
uma cerveja
eu disse que estava dando
um tempo.
um vinho então posso colocar no gelo?
deixa eu ver o seu cartão de presença na catequese.
o roxo da sala
a oração eucarística número cinco
eu sabia de cor
lambeu minha orelha
me apertou contra a sua barriga
agradeci por nossas coisas não se tocarem lá embaixo.
*
às voltas com definições
um repolho
cortado ao meio
deixa expostas
nervuras
e receptáculos
preenchidos
ao sabor
de abraços.
isso é lírico
demais, martim dirá.
corta-se, então, o restante
do repolho.
intercepte
suas veredas
mais recônditas
a dedos e lâmina.
sirva-o cru
com cebolas
e condimentos.
pode ser que isso soe
trágico ou, no mínimo,
um homicídio culinário,
retrucará o poeta chefe.
é, sim, um pouco
daquilo que os antigos
exigem de nós –
impossível guardar
os escafandros.
mas a salada será comida
de qualquer maneira,
o que nos poupa saliva
sobre o sentido
da existência.
azeitona e maionese
lhe caem bem,
inclusive –
requintes de ceia
em que se serve
a própria vida;
não a que se deseja
como quem dá o sorvete,
mas a que se entrega
ao sacrifício.
o repolho também pode
ser servido como o são
os chucrutes, tanto faz.
e se essa imagem
é tão somente uma lição
de estética que a vida dá,
como entregar-se
roxa e burra
a sua própria ruína?
há esferas,
calcários,
uma senhora costurando
suas entranhas,
um ouriço mordido
em sua parte vulnerável,
e o resto:
cascos,
espinhos,
a força bélica de mordor,
uma pá de mentiras cria
película insustentável –
de repente os ossos quebram,
os rins são sugados a canudinho,
a rua é interceptada
porque o único homem do bairro
decepou o indicador.
*
acho que eu estava apaixonado
pelo personagem do luigi baricelli
numa novela das seis que se passava
na lapa. a vida sem freio me leva
me arrasta me cega são versos
de uma canção de herbert vianna
que tocava nessa novela.
eu namorava quitéria, que ficou
em casa impedida pela mãe.
a festa acho que era
um churrasco de noivado.
luigi baricelli não me lembro
se era bom ator, mas era bem.
sempre tive uma queda
por baladas do rock nacional,
mas sobretudo por gradações
inconsequentes. foi um convite
feito às pressas e sua mãe
não estava muito certa –
com certa razão –
de que eu era a pessoa certa.
havia uma amiga da amiga
da amiga de minha prima,
bem mais velha que eu
e sem a menor preocupação
de parecer circunspecta.
acho que eu poderia também estar
interessado no personagem de cláudio
lins, amigo de luigi baricelli.
há uma atmosfera classuda
nesse trabalho dos paralamas –
voz sussurrada, bateria
contida, um baixo elegante
e um pianinho maroto.
ficamos brigados porque quitéria
não iria e porque eu tinha me
arrumado como um homem
de trinta e dois anos. eu
pedi que me dessem cobertura
e fui com ela para o quarto
de meus pais onde dormia
um bebê. eles eram da classe
média alta carioca e sempre
se vestiam como se não morassem
no rio de janeiro, motivo da minha
total inadequação para o churrasco.
podemos também concordar
que as versões mais latinas
com aquelas viradas do barone
são as que melhor apresentam
os caras. por certo ela deve ter
dormido puta da vida com a mãe
ou quisesse ir escondido. eu a beijava
por vingança da outra, posto que nem
a achava atraente. os artífices da televisão
nunca se deram conta de que somente
os pobres sentem calor, e que no
projac ninguém sua. não suporto
esse refrão que até agora tinha evitado,
menos porque seja fácil e radiofônico
do que a prova de que eu fazia tudo
errado e não cuidava nem de mim.
ela me ligaria no dia seguinte querendo
os detalhes da festa. fomos surpreendidos
pela mãe da criança, o que nos poupou
vergonhas mais robustas. o melhor da novela
era a arlete salles a emular o sotaque da terrinha.
em cada segundo cada momento cada instante
é um jeito meio barroco de criar um clima
e algumas imagens rarefeitas
de uma noite insossa em que uma banda
cover se apresenta numa casa noturna
heteronormativa. quitéria surge
com seu namorado a quem julgo
bonitinho, mas sonoramente burro.
minha prima disse que a amiga
casou-se três vezes – sônia é
o seu nome. luigi baricelli lutava
pelo amor de letícia spiller e cláudio
lins pelo amor de liliana castro.
eu estava no palco um pouco
bêbado e a guitarra estava um pouco
fora de ritmo, mas quando te vi
tentei me recompor. você fez que
não me conhecia, mas logo percebi
o truque. sônia teve quatro filhos
e aos quarenta estava irreconhecível.
letícia e liliana eram irmãs e eu
as invejava secretamente e as amava
por ficarem com luigi e cláudio.
seja quem for foi a deixa
para que vocês começassem
a se beijar na pista. minha prima contou
para sônia que eu tinha uma banda
e ela foi me ver cantar. talvez eu
shipasse luigi e cláudio. quitéria veio
me apresentar o namorado no camarim.
sônia veio me apresentar o filho mais velho
que falou bem do show, mas disse odiar
o romantismo fácil dos paralamas do sucesso.
sônia me olhava como se tivesse algo a terminar.
quitéria nunca soube que a traí com sônia.
tentei ir embora com o moço do caixa.
sabor da paixão nunca foi reprisada.