Três poemas de paulo tassa
Paulo Silva (ou paulo tassa) nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É escritor, editor, tradutor, crítico literário e professor. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). É mestre (2012) em literatura brasileira e doutorando em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade de Coimbra. Em 2018 estreou na poesia com “caída” (2018, Editora Letramento) e em 2021 lançou “o homem à espera de si mesmo” (poesia, Editora Mosaico). Escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil. Radicou-se em Madrid e, atualmente, edita a Revista Ponte.
Nesta edição da Ruído Manifesto, paulo tassa nos oferece alguns poemas que contemplam diferentes faces do seu projeto literário. Por isso, a nossa equipe editorial introduz o corpus poético a seguir com uma breve nota de contextualização. Por um lado, o escritor apresenta aqui alguns trechos de o homem à espera de si mesmo (Mosaico, 2021), um longo poema escrito na cidade portuguesa de Coimbra, durante a pandemia da COVID-19. Nessa obra, paulo tassa faz uma condensação – incômoda e pouco pacífica – de muitos paradoxos cuja raiz é predominantemente (hetero)sexual. Por outro lado, considerando que a literatura não pode perder de vista as circunstâncias em que é produzida, paulo tassa oferece também quatro textos inéditos em diálogo com as duras circunstâncias do presente: “3 poemas antibolsonaro” – o título não exige explicação, embora os poemas o expliquem muito bem – e “Noite eterna”, um trabalho em homenagem às vítimas da Ucrânia e contra a invasão que cumpre hoje 83 dias.
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Breve nota de apresentação d’o homem à espera de si mesmo (por Ana L. Butler):
O homem anunciado no título desta obra é realmente um ser do sexo masculino (e não um equivalente metonímico e universal para seres humanos). Por isso mesmo, convergir em poesia os elementos contraditórios desse sujeito-homem não parece fácil. O longo poema de o homem à espera de si mesmo faz uma condensação – incômoda e pouco pacífica – de muitos paradoxos cuja raiz é predominantemente sexual. Se esta proposta pode parecer pessimista, paulo tassa supera qualquer derrotismo e imprime um encanto ritmado à crueza da vida naquele momento em que descobrimos “que o espelho é [apenas] um espelho”. Com a força paciente de uma raiz, o homem à espera de si mesmo penetra a vida de quem o lê: de forma lenta e perene, entranhada e frutífera.
o homem à espera de si mesmo (excertos)
I
o homem à espera de si mesmo:
espasmo e desejo.
expectativas a cada passo
nessa estrada de que é feito.
é o homem à espera de si mesmo:
amplo e diurno,
o seu único defeito é ver-se de longe.
ele poderia ter qualquer nome,
mas optou por chamar-se apenas homem – assim poderia ser
tudo e nada, exceto mulher.
sob a sua pele,
a força fêmea sofre asfixia:
é qualquer presença oculta
(ou fantasia)
que o homem omite para
não revelar o que leva dentro.
é o corpo feito
à contramedida do sentimento:
para o canto da perda, o coração;
para o canto da sina,
a trajetória curvilínea
de uma carne ideal.
II
o homem à espera de si mesmo é o que está
em frente ao espelho:
a imagem que habita o vazio do seu reflexo corresponde
à pura realidade que leva dentro.
e onde? onde está a resposta
para o homem que se vê e não se enxerga,
se procura e não se acerca,
(supõe e não acerta),
se ofusca e se deserta?
esse homem, enquanto espera,
espeta
no outro a sua necessidade de certeza,
busca no sangue uma qualquer cumplicidade,
espreita as filiações e dali aguarda algum calor,
elabora um amor tão perfeitamente egoísta
que o rosto da pessoa amada imita
o rosto
daquele que (pensa que) a ama.
III
o homem à espera de si mesmo é o homem que virá,
que, virado para dentro,
desmorona-se por completo quando vê
que o firmamento
não é teto e que a chuva
molha até mesmo
o seu desejo mais abjeto.
IV
a autobiografia escrita por esse homem
é a história insistente,
a retórica do incidente num fracasso
que faz vencido até o pão
que sonha o trigo.
V
onde está a voz desse homem?
que palavra se esconde
nesse nome total?
talvez um desejo,
um modo imperfeito,
o pouco trejeito para muito caminho; talvez
um soco no peito, um órgão que falha,
um corpo inteiro cuja mágoa
vira sintoma ou destino.
VI
o homem à espera de si mesmo
é como uma nação oprimida: nasce na dor,
pretende-se épico,
cria os seus exorcismos por meio
de memórias repetidas
(e heroicas, por ego)…
e a sua história não tem
relação direta com a realidade
(que por vezes nega).
a cada passo, a cada dia,
ele compreende, com dor e fúria,
que o horizonte estabilizado de si próprio
era ou mentira ou escusa.
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três poemas antibolsonaro
I
fb
meu caro,
2022 é o ano
de cuspir o nojo quebrar
esse sorriso macabro
mequetrefe amarelo.
2022 é o ano
de soletrar a palavra d.e.m.o.c.r.a.c.i.a
contra o corpo que muge sangue.
II
asqueroso
o seu rosto me lembra
um quadro de Schiele, porém
sem beleza:
a sua boca que não sabe
se baba ou come
se come ou caga
se engasga.
o seu rosto cheira
a defunto
dama da noite, noite
sem beleza.
[esse rosto asqueroso
que caga e engasga
palavras de morte].
III
hoje
palavras matam mais que faca!
apenas quatro:
“é
só
uma
gripezinha” – mais de 665 mil mortos, hoje.
faca:
nenhum morto.
nenhuma palavra.
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noite eterna
Em homenagem às vítimas da Ucrânia
[no princípio, era o verbo]
enquanto os olhos choram fumaça,
o chão (duro de susto)
por cima bebe sangue
por baixo vomita um céu provisório.
[horizonte infernal
paraíso invertido]
os dentes subterrâneos tremem o medo do míssil
mastigam a catástrofe servida
nas três refeições do dia: ar, terra, água.
os estrondos, de remetente imprevisível, brilham
sobre as cabeças de quem foge
na rua de casa
embaixo da cama
à espreita de quem fica.
a guerra atola um povo na lama
turva e infinita
do presente invasor, noite eterna
em que o canhão
é o único sol possível:
a guerra existe porque não há
outro planeta ao alcance
e porque homens
com falos altos são muitos e gritam.
vivos e mortos – os meus olhos acolhem
apenas as vítimas.