Três poemas e um conto de Caíne
Caíne é escritor em diversos formatos: poeta, romancista, cronista e contista, escreve sobre suas vivências enquanto pessoa atravessada por diversas interseccionalidades; pessoa trans não-binária e não-monogâmica, percebe-se sua relação conflituosa com estruturas pré-impostas nos textos que escreve. Caíne tem um livro e diversos contos publicados com seu nome morto, e se constrói agora no cenário literário sua nova identidade.
***
Amado em maldade
Não sei se sou eu que vejo
Ou se ela vê por mim
A pessoa que fui
Se apossa
Vacila
E treme…
Só treme
Ela esteve em perigo
Mas eu me salvei
Então por quê?
Não entendo porque
Atrás dos olhos dela
Naquela noite eu me encontrei
E a cada passo me pergunto
Se é sentido de trauma ou razão
E se o primeiro, é equivocado
Ou ainda ouço intuição?
Mas naquela noite, não tive escolha
Me tomou de assalto, não pude gritar
O único grito ali foi abuso
Dentro de mim, memória revirar
Quem ouviu o grito não fui eu, foi infância
Ficamos os dois presos em ansiedade
Respiração falha, pupila dilata
Ali não há abraço
Conforto
Carinho
Afeto
Não houve saída ou fuga possível
Paralisado com o que ela viu
Preso em ansiedade
Amado em maldade
Desejando o fim de noite hostil
*
Meu cais
Ando pensando bastante em você
E de tudo o que chegamos a construir
Tínhamos sonhos, fuga, delícia, [histórias
E deles fizemos planos
Traçamos caminhos
Encontramos certezas
Mas ouça, menina, a vida não é assim
E eras tão jovem para entender
Naquela época, não conhecias a mim
Teu foco, somente, era sobreviver
Eu sei que sem ti eu não chegava aqui
Sei que atrás de meus passos estão [sempre os seus
Mas hoje a sua sombra me dói
Teu nome me pesa
Tua visão me arde
Eu não mais me reconheço em ti
Se pudesses me ver, não reconhecerias [jamais
Pessoas que luta contra o que acreditas
Que quebra teus versos, tuas rimas
Tuas métricas
Teus métodos
Poeta que te abandona no cais
Queria que não me doesses
E que pudéssemos ser ume só
Mas tu és antítese de tese espontânea
Que reprimiram sem carinho ou dó
Entendas, menina, eu não odeio a ti
Mas sou flor de escombros que você deixou
Se te reconstrói, não posso existir
Se vêem a ti, não veem a mim
Invisível hoje, calado estou
É por isso que estamos aqui
No meu cais te trouxe, te vou [abandonar
Mas te preparei bela embarcação
Pra longe, nesse barquinho, tu vais [navegar
Zarpa nele, agora, menina, vai já
Vais embora daqui para não mais voltar
Parte de minha história tu vais sempre [ser
Mas no meu presente não podes ficar
*
Daqui em diante
Por meio desta venho informar
Que daqui em diante, é meu
Tudo o que ficou
Minha herança
Meus restos
Minhas sobras
Daqui em diante, permanece
Decreto agora que daqui em diante
Não haverá mais abolição
Nem limpeza, estaca zero
Não há mais desapropriação
De mim não se leva mais nada
Daqui em diante, permanece
Permanecem as delícias
Permanecem as conquistas
E tudo de que não consegui abrir mão
Sim.
Isto, pois, permanece também
E se me destrói, então que seja
Daqui em diante, nada entra nem sai
Daqui em diante, minha vida é a [mesma
Pro bem e pro mal.
Ah.
É que não dá mais pra deixar ir
Um dia sim e outro também
Eu já me cansei de demolir
Construir futuros que nada retém
Tanta coisa até aqui já me neguei
E tanto entulho precisaria limpar
Mas daqui em diante, não sobrou mais [eu
Daqui em diante, só descansar.
*
O luto das oportunidades perdidas
Achei um fio branco no meu bigode que nunca foi um bigode. Ele tem gosto de juventude perdida.
Só recentemente eu percebi que eu queria pelos faciais. Assim como eu apenas recentemente percebi que era uma pessoa trans. Dessa forma, ao invés de passar a minha adolescência com bloqueadores hormonais pra que eu pudesse começar com a hormonização em tenra vida adulta, me convenci que a única forma de tratamento para minha síndrome do ovário policístico era tomar, por anos a fio, hormônios femininos que acentuaram características que hoje me fazem sentir mal.
Hoje, com quase trinta anos, eu finalmente me permiti ouvir minhas próprias demandas e desejos, e isso me levou a uma série de autodescobertas nos últimos anos. Descobri que eu queria viver uma série de experiências que eu nunca achei que fossem possíveis pra mim.
Mas algumas janelas eu já perdi.
Algumas experiências têm gosto de oportunidade passada. Meu bigode nunca vai ser denso e escuro, como uma mancha negra no meu rosto que eu posso moldar em diferentes formas. Não tenho sequer plena certeza se eu queria um bigode pra sempre, mas eu gostaria de ter essa opção. Os pelos que crescem acima do meu lábio têm um gosto agridoce.
Eu nunca vou ser gay, jovem e estúpido. Eu sei que é uma coisa esquisita de se desejar, mas outro dia eu chorei lavando louça porque eu assistia uma série bobinha sobre o que àquele ponto achávamos ser um femboy jovem fazendo merda que jovens costumam fazer. (Pra quem não sabe, um femboy é, de acordo com o dicionário Collins, um homem cuja aparência e comportamento são lidos como estereotipicamente femininos.) Eu não faço mais tanta merda quanto eu fazia quando jovem – nem posso. Tenho uma casa pra cuidar, um emprego pra manter, contas pra pagar.
Então, às vezes, eu tenho vontade de chorar pelo gay jovem, estúpido e bigodudo que eu nunca vou poder ser.
Perceber quem se é mais tarde na vida também é um processo de luto. Por todos os anos que passamos fingindo e que nunca vamos ter de novo. Por toda dor e apagamento dos quais nunca vamos poder proteger o adolescente que fomos. Acredito que o luto faz também parte do processo de aceitação.
Um dia, porém, vou ser o puro suco de cultura queer que eu sempre, secretamente, desejei ser. E talvez meu bigode seja todo branco até lá, mas ele vai ser o mais bonito que alguém já viu, não importa quão pouco ele dure. Talvez demore até que meu corpo possa refletir como eu me sinto, e até lá as pessoas me olhem esquisito por ainda usar croppeds e meias arrastão em idade “avançada”, mas essa decisão é minha e eu sei que vou ficar lindíssimo de qualquer forma.
Às vezes eu só queria que o luto passasse logo, pra que eu pudesse de vez entrar na fase em que eu me sinto incrível sobre mim mesmo. Mas o luto faz parte desse crescimento, então ofereço, aqui, uma bandeira branca.
Que chorar abraçado com o luto das coisas que eu nunca vou ser me ajude a entender todas as coisas que eu ainda quero, e posso.