Três textos de Marcus Groza
Marcus Groza é escritor, dramaturgo e encenador. Autor dos livros “e a lua como órgão principal”, de “Sossego Abutre”, entre outros. No teatro, escreveu e dirigiu a antiópera “Rua Carne Entre as Articulações” e “Maré Morta”.
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Ana y o Urso
de um livro de viagens, em diálogo com Júlia Mendes
Euskara
Ana voltou antes daquela última incursão, pois tinha aula de basco na segunda-feira. A língua basca é algo que a fascina muito. Voltou dividida, querendo ainda emendar outra viagem, mas preferiu estancar os pés por uns dias numa grande cidade.
Na aula, Ana aprendeu que em basco a palavra que diz alma também é usada para mencionar a lama que se forma entre as moitas de capim. “Urso vai gostar disso”, Ana pensou enquanto ouvia as explicações do seu professor. Urso é um bruto delicado, gosta de aprendizados e enigmas. Mas não é seu forte repetir tim tim por tim tim o que alguém diz, num papo, num livro ou num álbum de figurinhas. É bicho mais aparelhado para sonhar sem rédeas nem lastro, inventar álibi e teorias para o descabido. E na brincadeira de continuar contando histórias começadas por outros, Urso sempre trazia uma espécie de neblina. Aliás, é uma brincadeira de que Ana y o Urso gostam muito, e se ocupam disso principalmente nos congestionamentos em que vez ou outra se metem. Nos caminhos tortuosos que levam à Herbais também há congestionamentos.
Chegando em casa depois da aula, Ana começou a rascunhar a próxima carta: “Travessia e violência são palavras quase idênticas em basco, Urso! A diferença é mínima, em vogais fechadas e sílabas bruscas. É preciso atenção redobrada para não confundir, quando se fala a um boxeador ou a um mendigo erudito.” O Urso certamente teria vontade de estudar basco, mas seria só uma espécie de birra ou afronta para com as raízes. Em algumas fases, ele tinha uns cinco minutos de não comer mais raízes e fazia longos jejuns de determinadas palavras.
Quando se encontrassem de novo, Urso comentaria com Ana: “Dias virão em que vou me alimentar apenas das frutas de outros troncos linguísticos.” Então repetiria uma puteada em guarani que aprendeu no Paraguay. Ana e o Urso sempre se divertem com as bobeiras um do outro: quando se conheceram, eles não acreditavam em almoço.
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Taperas de Porcelana
Ana y Urso brigavam, mas logo declamavam armistício de saudade. Não sabiam como declinar essa palavra ao pé da letra. Dessa vez, marcaram encontro em Nimrud. Fato raro foi o Urso chegar primeiro, quase um mês antes, o movimento das marés o tinha impelido rapidamente.
Enquanto esperava, Urso ficou hospedado nas Taperas de Porcelana, casa de uns amigos de Pramuk, dentro de uma reserva desativada. Pramuk sempre tinha um amigo ou um amigo de um amigo em qualquer lugar do mundo para onde Ana y o Urso fugissem. Vai ser bom alguém levar um pouco de vida àquele lugar!, disse o amigo de Pramuk ao lhe entregar a chave. Chegando lá, Urso ficou cismado que Herbais talvez pudesse ter o clima daquele lugar. Sol, banho de lama, piscinas artificiais. Como adora natação, não demorou muito e lá estava ele dando suas braçadas, mesmo nas piscinas imundas, há muito esquecidas de presenças assim corpulentas.
Só tenha cuidado lá nas Taperas, porque nas piscinas sujas prolifera o moskito-tesoura!, foi a recomendação do amigo de Pramuk que emprestara a casa. Depois de ter nadado todo o dia, ao descansar debaixo de uma árvore, Urso viu passar diante dele, lento e rasante, ao alcance da sua mão, um moskito-tesoura. Só então lhe veio à lembrança o conselho do dono das Taperas de Porcelana. Mas Urso comia gengibre e inhame. Não temia tanto a morte, antes temia ficar amortecido. Alguém havia dito a ele que gengibre e inhame eram o suficiente para contrabalancear algumas noites entregues ao sereno, uivando para as duas luas de Adatz – um planeta que o Astrólogo, certa noite por acaso, encontrara na nuca do Urso, ao desmanchar uma trança que Mercedes fizera nele. Adatz era o seu planeta regente. Quanto ao moskito-tesoura, esse continuou voando, manso, e o Urso também manso, perto dele. Até que o moskito pousou em seu dedo.
Não adianta deixar de matar em sacrifício, Urso, se você abandonar o sangue, o sacrifício se torna uma proliferação inútil, disse o moskito, depois emendou: Adatz, seu guia, é uma estrela de água turva. Uma água muito escura, mas em estado de vapor. Devastação e sopa. Urso sorriu, ele já sabia: Devastação e sopa. Mas, veja, Urso, continuou o moskito, que Adatz pode levá-lo a ser intolerante com quem não está a caminho de Herbais.
Urso sabia que o moskito-tesoura tinha razão. Quando Ana chegou, ele a apresentou ao moskito, sabia que ela não teria medo, porque, quando se conheceram, Urso morava numa pirambeira, aonde somente seres de asas tinham coragem de ir visitá-lo.
*
Nos Sambaquis Mal Assombrados
cava a terra sem lembrar minha filha
planta com fé e não exija crescimento
o que nascer alguns vão chamar de benção
outros vão lamentar como terrível pestilência
Ana y o Urso ouviram isso de um velho
que cavava a terra em volta das raízes
porque:
não é somente de sede
que padecem as raízes
o ar e outras partículas leves
penetram as axilas lenhosas
enquanto elas respiram fora da terra
sete dias
mas tem que ser verão e lua cheia
em hipótese alguma
pode estar chovendo
arejadas assim as árvores triplicam de tamanho
em sete dias
de verão e lua cheia
só não pode estar chovendo
enquanto as raízes estiverem ao relento
uma chuva
agora
arruinaria
tudo
repetiu o Urso em silêncio
era assim que os nômades de antes
evitavam o rastro de desertificação
na terra pisada
era assim também que antes estancaram
a sangria dos primeiros pés
antigos pés
que surgiram das primeiras raízes
em rebelião
“Pramuk tinha nos prevenido, Ana,
sobre a sedução e a sabedoria
desses velhos que cavam os Sambaquis.
Teria sido mais fácil
que eu tivesse me inebriado
ante os dizeres caprichosos desse velho!”
ofendido pela desfeita
então o velho
fez ferida com a ferramenta
em uma das raízes
que jorrou um caldo amarelo
e de imediato o Urso
sentindo cheiro de leite e mel
atirou-se afoito ao buraco
e lá ficaram numa servidão voluntária encarcerados
durante 78 anos-luz
Ana y o Urso
ela ouvindo as sabedorias do velho
e o Urso lambendo o dulçor ejaculado pelas raízes
mas invertiam os papéis
de vez em quando