Três textos de Victor Guilherme Feitosa
Victor Guilherme Feitosa tem 26 anos e mora em Irecê, no centro-norte da Bahia. É graduado em letras vernáculas pela UNEB, escreve, brinca de ser músico e pesquisa educação. Publicou o livro corpo que se experimenta em rasgos (Trevo, 2021) e participou da Geração 2010: o sertão é o mundo (Reformatório, 2021).
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se morte
estava a falar sobre morte com uma amiga quando percebi falência nos órgãos:
fígado, pulmão, talvez mais outra coisa que o resto, mas não sei o quê,
é de costume que não me lembre das coisas, não lembrar significa revirar lembranças, revira-las significa mexer em velhos baús empoeirados, o lar de evocação. se é a boca quem convoca todas as forças e ativa o ritual, os órgãos em decomposição fazem ligação direta com os baús, com as poeiras, com os baús empoeirados e o que quer esteja guardado em cada um deles.
tudo que foi dito se remete a eles
tudo aqui os referencia
os baús e os fantasmas
o que mais caberia num baú além de fantasmas?
botas são para calçar, roupas para vestir. mas os fantasmas, os fantasmas pertencem às gavetas; e se morte, pertencem a nós.
na verdade, nós os somos e eles nos são, os baús são só caixas de guardar, então você pode guardar suas botas e roupas,
e mesmo que se pense na morte e em como o baú seria a caixa de guardados a ser ativado pela boca, um receptáculo de fantasma. mesmo que pense.
sabe, é sempre o que todo mundo diz. se morte, a morte.
é inevitável. morremos tantas mortes por dia, e é sempre o que todo mundo diz.
não isto.
o que todo mundo diz é que a morte é inevitável e da morte nos restam lembranças.
e todo mundo tem razão
não acho que esse texto deveria se encerrar assim, então contarei uma morte.
Quitéria trabalha o dia inteiro. de noite, ela tira sua pele, veste um batom vermelho, e então Quitéria ama.
é um fim, não é? se não, fique com esta:
todos os dias Quitéria acorda e escolhe levantar,
*
se vida
supõe-se que a vida é andar. andar, andar, andar a deus dará em busca de comida, prazer, dinheiro. nós andamos. todos nós andamos.
andamos por um prato de comida. o homem parado na esquina se humilha por um prato de comida, e ele vive e anda. viver.
certa vez alguém gritou sozinho em seu quarto, e aquele grito pode ter sido a sua maior produção em tempos. certa vez um sujeito estava andando até a praça, mas preferiu desviar de sua rota habitual. era um caminho mais longo, com casas diferentes, pessoas diferentes. haviam calçadas daquele jeito que só esse sujeito saberia descrever, haviam nuvens, sombras, postes, janelas. não que no seu caminho habitual não houvesse, é só que andar seguindo os seus rastros diários fazia da sua carne automotor.
o sujeito é você
no grito, é no grito que me vem. certo fantasma me ensinou que o grito é uma maneira de ecoar presença, projetar-se nos muros e nos corpos ouvidores. no grito. no xingo. talvez viver não signifique ser bem-sucedido, sequer bem-amado. talvez viver signifique estar presente onde o tempo e o momento não permitam que o corpo esteja. então viver seria ser rebelde. ser uma criança. afinal, todos nós somos. temos mania de gostar de ser criança; e existe muita beleza em ser. criança sorri quando sorri, chora quando chora, faz amizade quando faz amizade. não que estas virtudes tenham se perdido, não, nós só as colocamos num baú, na mesma caixa de guardados onde depositamos o que não serve mais, e serve. isto me faz pensar, faz com que eu olhe para os caminhos. não. faz com que nós. nos faz pensar, faz com que nós olhemos para os caminhos e pensemos: e se vida?
Nilza mal conhecia Quitéria, mas se me lembro bem, ela foi em seu enterro. Quitéria usava batom, cremes para as mãos, somente as mãos, e adorava sentar na porta de casa com seu radinho. Nilza? bem. Nilza xingava, Nilza xingava na porta de casa, xingar para Nilza era como viver. Nilza adoeceu, percebemos porque ela deixou de xingar. e então os ventos disseram: ela morreu. percebe?
*
se vive
tudo se desenhou para que findasse aqui, com estas palavras. saber herdar, ouvi. saber herdar. saber ser. é assim que se vive, sendo. é assim que sabemos que existe a fosforescência neon de pirilampos relampejantes, é no espelho que os encontramos. também podemos encontra-los nos fantasmas e eu já comentei muito sobre eles. mas quero findar num riso, sabe? nos apeguemos a estrutura de neon, a todos os rodopios neon e outras coisas mais, neon. tudo neon. pensemos numa rave onde nossos corpos dançam com os fantasmas. não é como forró, agarradinho, não, é algo mais intenso. não que não haja proximidade, de fato há, mas é uma proximidade sensual, daquelas que poderiam facilmente serem dançadas num blues de luz-vermelha, num quarto, ou em qualquer lugar mesmo, a dança dança e nós somos dança. no eco. a dança ecoa. mas é, é uma dança neon, nós todos pintados de fosforescência e todos brilhando na luz negra. são sensações do que se vive, percebo em conversas por aí. o que se vive está além da morte ou da vida; é estar presente e existe tanta presença: se morte ou se vida. o que vive está entre, com pé lá e pé cá, em fluxo. simplesmente está. está porque o que vive não se prende a ser meu, seu ou de qualquer outro corpo/lugar. o que vive vem, causa metamorfose e somos bicho, nós aprendemos a ser e dizer sim para a criatura, afinal, não existe forma de separar corpo e sombra, ainda que esteja escuro, ela estará lá e será parte: bicho. o bicho vive e por isso nós vivemos.
das Dores conhecia ambas, mas com Nilza seu contato era mais frequente. das Dores era o inverso de Nilza. se brigavam? ouvi dizer que Nilza pediu que das Dores batizasse um de seus filhos, mas houve recusa porque ela não achava certo batizar o menino e viver brigando com a mãe. viver. das Dores foi a primeira a partir. Elas foram ao seu enterro, me lembro bem, todos foram. houve uma grande vigília, fizeram até fogueira na porta. era um entra e sai tão grande, e das Dores se despedia para continuar vivendo. alguns anos se passaram até que eu me desse conta, sabe? me desse conta de que não é necessário estar vivo para se viver e assim se vive. se vive porque viver é bom: