Três trechos do romance “O Segredo das Lantanas” de Rafael Martins
Rafael Martins (@rafaelmartins.esc) nasceu em 1982, na cidade de Campinas, interior de São Paulo. É formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; advogado desde 2008 e, desde 2016, Procurador da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP; é pai do João Miguel, Henrique e Francisco. O Segredo das Lantanas (Patuá, 2023) é seu romance de estreia.
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Três trechos do romance O Segredo das Lantanas de Rafael Martins
Escovo os dentes com certa diligência enquanto me observo no espelho. De repente, me perco em algum pensamento e dedico-me mais a um lado que ao outro naquele vaivém maquinal.
Uma azia me consome o estômago há algum tempo. O que será isso?
Observo o acúmulo de cremes e cosméticos milagrosos sob a bancada, ao redor da cuba, e sinto raiva daquela desordem, principalmente porque, ali, apenas uma escova me pertence.
É possível organizar o excesso? Não – concluo. – O que excede já está fora da ordem das coisas.
Na prateleira plástica, atrás do espelho, até tenho outros itens: meus comprimidos, meu sebo de carneiro e meu enxaguante bucal. Mas estão organizados, são essenciais e invisíveis: não malferem a estética do ambiente.
(página 10)
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Por um instante aguardo em silêncio Carolina reconsiderar sua decisão e retomar o assunto. Como isso não acontece, despeço-me e dou-lhe um beijo rápido na testa:
— Boa noite — digo.
Carolina não retribui a gentileza, mas não me importo. Damo-nos as costas e antes de fechar os olhos observo que já são 22:34.
Entristeço-me com o desperdício de tempo.
Revivo uma cena de infância: Beto oreia seca, Beto oreia seca! Umas crianças da rua implicam com minhas orelhas, mesmo elas sendo normais — confiro-as até hoje. Caminho a uma certa distância do meu avô. Ele segue na frente, com o tronco um pouco encurvado e as mãos unidas para trás, na altura da lombar. Apesar da idade, vovô é grande e tem uma presença inibidora. Se eu estivesse ao seu lado, certamente as crianças não caçoariam de mim.
Ele para e observa. Está com seu paletó cinza escuro, surrado, que não orna com a calça, que é preta com risca de giz. Usa uma sandália de couro que deixa à mostra seus imensos dedões com unhas grossas, encravadas numa pele morta e esbranquiçada. Na cintura, carrega uma bainha com uma pequena faca dobrável, que utiliza para descascar laranjas enquanto repousa em sua cadeira espaguete de fios azuis, sobre o cimentado do jardim.
(página 15)
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— Cravo uma faca no peito se essa música não parar!
A ameaça é inútil.
Tem uma coisa dentro de mim. Uma coisa ruim, que parece querer extravasar. E por que agora?
Se eu dormir, tudo vai ficar bem.
Choro baixinho.
Por que estou chorando? É de raiva? Tristeza?
Insisto na mordida.
Vou me excedendo, até arrancar um naco de carne do braço.
Olho para o espelho do aparador e não me reconheço. A cena é feia. Vejo um rosto sombrio, com olheiras, lágrimas e sangue ao redor da boca. Meu braço pinga sem parar.
Seguro a carne na boca.
Meu discernimento se restabelece: o que eu fiz?
Estou louco?
Pego uma camisa no cesto de roupa suja da área de serviço e enrolo no local do ferimento. Junto um punhado de guardanapos de papel e limpo a sujeira do chão.
O relógio do micro-ondas marca 4:18.
— Cacete! — Falo baixo e com a dificuldade que aquele pedaço morto na boca impõe.
Arrependo-me, rapidamente, de ter cometido tamanha imbecilidade. Foi impulso.
O braço lateja, mas a música me fere mais.
Sinto uma moleza estranha, uma tontura.
Deixo-me desmoronar no sofá.
O sangue ultrapassa o tecido da camisa e está na iminência de atingir o estofado. Será que vai manchar? Penso no alvejante como uma alternativa e, de repente, a possibilidade de uma mácula não me oprime mais.
(página 49).