Ubuntu – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Ubuntu
O que fazer diante de tantos horrores? Existe um desgoverno em curso no Brasil e não é possível manter-se calada ou ser condescendente perante ações tão descabíveis que atingem o país e, em particular, a educação no estado de Mato Grosso. Dirijo-me agora à intimidade de muitas pessoas. Ao buscarmos nossas memórias afetivas no (in)consciente, o espaço que emerge com maior destaque, sem dúvida, é o ambiente escolar. Nossas melhores amizades são edificadas ou derruídas aí. É o nosso segundo núcleo social. Um lugar de experimentações, de aprendizagem não apenas intelectual, mas, sobretudo, de sociabilidades, de confrontos, de autoafirmação e, claro, de violências. Óbvio que minha afirmação parte do meu lugar social, a saber, de eterna estudante e nos últimos doze anos também como docente. Em nosso arsenal de lembranças, a escola se erigiu com a grandeza de muitos dias felizes e com o trauma de dias tristes. Em nossa juventude, era como se aquela rotina não fosse acabar nunca. Ir para escola e encontrar as/amigas/os, as/os parceiras/os. Tornar-se adulta/o devagar, aula após aula. Não raro, muitos dos eventos vividos ali dentro, nas suas dependências, tornam-se um guia afetivo em nossas biografias. O sentido de pertencimento à uma determinada comunidade escolar nos garante uma identidade. Eu convido você, leitora/leitor, a fechar os olhos e a rememorar um acontecimento, um momento singular ou uma/um amiga/o que fez parte de sua história nesse ambiente.
A ideia aqui é falar sobre a escola como produtora de consciência afetiva e histórica. Com frequência entendemos a unidade de ensino associada ao trabalho de avalizar, qualificar e autorizar produções intelectuais e culturais. Mas para muitos a escola assume o sentido de bússola. Com professoras/es preocupados, frequentemente salientando a importância do estudar e do saber, para que possamos ter então plena compreensão dos caminhos (árduos, difíceis) que devemos trilhar fora da escola, em um futuro próximo. No entanto, nos últimos anos uma política de desmonte da educação pública no Brasil e em Mato Grosso vem demostrando que não se trata de predicamentar o ensino ou as/os estudantes. Muito pelo contrário. E não é mais e apenas a continuada e famigerada velha precarização de sempre. Os espaços físicos das escolas estão precarizadas há muito tempo. As licitações superfaturas de manutenção e reforma dos prédios escolares não contemplam (pasmem!) a melhoria física dos mesmos. Ou de materiais didáticos, como livros desatualizados, sem conexão com a realidade que circunscreve as/os estudantes. Mas, sabemos, prioriza o desvio de verbas públicas. Quem entre aquelas/es que frequentaram e frequentam instituições públicas de ensino que não se lembra de um ventilador barulhento ou de um calor insuportável dentro de uma sala de aula sem ar condicionado, com o ar-condicionado paralisado, uma cadeira quebrada, riscada, uma janela faltando o vidro, uma parede descascada, anotada com os “poemas” juvenis. A suspensão das aulas por falta de água, de luz ou de goteiras. E como se não bastasse, a solução adotada agora é o fechamento definitivo. Ao matar uma escola – com o seu fechamento, militarização ou municipalização –, mata-se também a memória de uma comunidade; é todo um ambiente de organização e interação social que está indo embora. É um descaso, uma ferida aberta. É desprezar a condição social e econômica daqueles que vivem e precisam da escola. É impedir, enfim, o acesso dos estudantes à um direito garantido em constituição. É a política da desassistência.
O sucateamento da infraestrutura dos prédios acrescido dos últimos ataques contra docentes, discentes e a comunidade externa em geral expressam claramente aquilo que Paulo Freire já havia alertado: os poderosos são contra a educação popular. A educação que visa os oprimidos, os pobres. Ora, quais escolas estão sendo assassinadas pelo poder público? É por esta razão, pela aguda consciência de suas reflexões e dos seus escritos, que Paulo Freire é tão demonizado pelas/os canalhas que detém o poder político e econômico. Claro, é um projeto neoliberal de mundo. Um mundo de desigualdades e misérias, que coloca a educação como gasto inútil e não como um investimento para o futuro. Daí a urgência de Freire e de uma educação libertadora, que promova cidadãos capazes de transformar a sociedade.
O governador de Mato Grosso está fomentando uma política de anulação e apagamento da consciência histórica de determinadas comunidades com a municipalização dos espaços escolares. E também com a criação de escolas militares. Ambos os processos, de municipalização e militarização das escolas, são decisões unilaterais, de caráter vertical, feito sem consultar aos estudantes, aos trabalhadores da educação, aos pais e/ou a comunidade externa. Escolas com décadas de existências tem repentinamente o seu nome mudado e a sua história apagada. Este é o caso, entre muitas outras, da escola estadual Vale do Guaporé, no município de Pontes e Lacerda, em Mato Grosso. Umas das primeiras unidades de ensino da cidade, com mais de trinta anos de atuação, que atende estudantes estrangeiras/os e/ou com deficiência, mais de 1200 alunas/os matriculadas/os, além do corpus de trabalhadoras/es que atuam em seu interior. A história construída com muitas vidas e muito trabalho. Como historiadora, professora e mãe de estudantes do ensino público – mas, sobretudo, como aluna que veio de escolas públicas – não posso calar-me diante da violência e da perversidade com que a educação vem sendo tratada em nosso estado.
Ontem ouvi e conheci um pouco da filosofia de vida por trás da palavra Ubuntu, de origem africana, dos idiomas zulu e xhosa, cujo significado é algo como “a humanidade para todos”. Sejamos mais solidários e solícitos uns com os outros. Eu, você e nós somos fortes juntas/os e merecemos respeito. Nossa história merece.