Um conto de Adriana da Costa Teles
Adriana da Costa Teles é pós-doc em Literatura Comparada pela USP/São Paulo. Doutora em Teoria da Literatura pela UNESP/São José do Rio Preto. É autora dos livros Machado e Shakespeare: intertextualidades (Perspectiva 2017), Uma linhagem Capitu (Appris, 2021), O labirinto enunciativo em Memorial de Aires (Annablume, 2009) e do romance Íris Negra (Trevo/Benbazeja 2020).
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Porque os morangos mofam
“Esses morangos estão mofados…” Ela dizia com pesar. Quase com tristeza. “Olhe…” Fechou a torneira. Examinou mais cuidadosamente. “Esses a gente salva. O resto…” Disse balançando a cabeça. “Que dó. Tão caro!”
“Pena mesmo…” Respondeu a patroa conformada. As últimas palavras, ditas já do outro ambiente, ecoaram sonoras, apesar de um pouco distantes, na cozinha. Ela ia dizer que a nota estava na gaveta. Podia levar os morangos e reclamar. Estavam dentro do prazo de validade. Não estava certo. A gente compra, paga o que eles querem e os morangos vêm mofados…!?! Mas ela já estava na sala e conversava com o seu Leonardo. Colocou os morangos estragados em uma vasilha limpa de louça branca. Depois falaria com ela. Pegou a salada e foi até a sala de jantar. Ana lia algo para o marido. “… são coisas assim as que eu penso pelas tardes, parado aqui na janela, em frente aos intermináveis telhados de zinco onde às vezes pousam pombas, e dito desse jeito você logo imagina poéticas pombinhas esvoaç…” Deixou a salada e foi até a cozinha buscar o suco de laranjas. Voltou. “… são cinzentas, as pombas e os ruídos que fazem é sinistro como o de asas de morcego…” Foi apanhar a travessa com a carne e as batatas, que estava no forno. O fato era que fazia muito calor naqueles dias e isso ajudava as frutas a estragarem. Os morangos mofarem. Indefesos. Expostos. E frágeis. Chegou à sala de jantar com a travessa. Colocou-a em cima da mesa. Ia dizer a eles que estava servido. Mas esperou que a patroa terminasse. Ela lia como se fosse uma coisa muito bonita, muito embora não tivesse rima nem palavras difíceis. “O que virá depois? – pergunto então para a tarde suja atrás dos vidros, e me sinto reconfortado como se houvesse qualquer coisa feito um futuro à minha espera.”
“Não é lindo?”
“Já está tudo na mesa…” Interrompeu. “Senão, esfria.”
“Obrigada”. Ana disse de relance. Educada. Impessoal. Com um sorriso leve colado na face.
“Sim! Sim! Mas, sinceramente…? Não tenho saco para ficar lendo… Gosto quando você lê para mim. Na sua voz a coisa parece que ganha mais vivacidade… veracidade… Sei lá e também…”
Não ouviu mais. Fechou a porta da cozinha. Iria adiantar o serviço com a louça. Olhou para os morangos mofados que cuidadosamente colocara na vasilha de louça branca. Aproximou-se. Pegou um deles, lenta e cuidadosamente. O maior. Levou-o próximo à janela. Observou-o contra a luz. Enorme. Bem feito. Carcomido e úmido de um lado. As pintinhas pretas reluzentes demais. Meladas. Uma parte coberta por uma camada branco-esverdeada e meio peluda… Ela não sabia que, tecnicamente, o morango é um fruto acessório agregado, e que a parte carnuda não derivava do ovário da planta, mas, sim, do receptáculo que sustenta os ovários. E, sinceramente? Não fazia a menor diferença. Era uma contemplação cega às técnicas da natureza. As da vida e as da morte. E o fato é que sentiu vontade de morder aquele morango mofado. E o fez. Com dentes que afundaram assassinos na fruta já morta. Macia e podre. Mastigou cheia de estranheza. E o que era para ser doce, tinha gosto azedo e profundamente ácido. A substância desceu pela garganta arranhando-a com o seu gosto estranho. Profundamente indigesto. E restou, por fim, o podre em sua boca de dentes já bem vividos. E aquele sabor não a deixaria comer mais nada ao longo de todo o dia.