Um conto de Adriana Teles
Adriana Teles é escritora e pesquisadora. Pós-doutora em Literatura Comparada pela FFLCH / USP, é especialista na obra de Machado de Assis, autora dos livros: Machado e Shakespeare: Intertextualidades (Perspectiva, 2017), Uma linhagem Capitu (Appris, 2021) e O labirinto enunciativo em Memorial de Aires (Annablume, 2009). Na ficção, é autora do romance Íris Negra (Trevo/Benfazeja, 2020) e do livro de contos Dez minutos no museu (Appris, 2023), além de contos e crônicas publicados em revistas literárias diversas. Conduz o canal no Youtube Literatura Falada, que aborda conteúdos variados da literatura brasileira. E-mail: adriana_c_teles@hotmail.com.
O conto abaixo integra o livro Dez minutos no museu.
***
Entre a realidade e a imagem
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva.
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.
Manuel Bandeira
“Qual é o sentido?”
“O quê?!”
“O sentido. Qual é o sentido…?”
“Do quê…?”
“Desse quadro, por exemplo.” Ele disse apontando para Acento em rosa, de Kandinsky, que tinham bem em frente a eles.
“Ah!!!” Ela disse, depois de compreender subitamente a pergunta do namorado. “Não sei… Na verdade, eu não tenho a menor ideia.”
“Então, por que a gente está aqui?”
“Porque a gente veio visitar o museu…?” Ela sugeriu ironicamente divertida.
“Insuficiente.”
“Estou brincando… Porque é bonito.”
“Acha mesmo?”
“Sim.”
“Me explique.”
“O azul ao fundo é profundo e concêntrico. Cósmico. Vê? (ela dizia em tom professoral e forçosamente pedante). Ele arrasta os nossos olhos. A tela nada mais é do que um retângulo (forma geométrica) e a matéria do qual ela é feita – um mistério eterno – nos atrai pela cor e nos conduz ao infinito de onde o que chamamos de losango (outra forma geométrica) exaure amarela e eufórica para combinar com os tons de azul quase arroxeados do fundo. Em meio a esse todo que nos intima ao mistério (do ser e das sensações), nascem círculos perfeitos (o geométrico de novo…) e um – somente um (ela dizia, de maneira teatral, o dedo indicador funcionando como o número um em frente aos olhos de Arthur) – rosa e eufórico, nos lembra que o amor existe e que ele pode agregar algum significado ao…”
Ele colocou o dedo indicador sobre os lábios de Helena forçando-a delicadamente a se calar.
“Me beija…?” Ele pediu. E, então, os seus lábios se encontraram amorosos em um beijo rápido, como pedia o lugar e a situação. “Casa comigo?” Ele perguntou em seguida.
“Por que eu me casaria com você…? Você é um tolo insensível…!” Ela disse rindo divertida.
“Um tolo que gostaria de ter pintado essa tela somente para te presentear.”
“Você está vendo aquele quadrado cheio de círculos, bem no centro do quadro…? Onde tem um círculo quase inteiro branco…” Ele olhou para a tela. “É assim que seria a nossa vida, se casássemos.” Ela continuou. “A gente mora longe um do outro. E o fato é que você não iria morar no interior. Nem eu me mudaria para cá. Pelo menos não por enquanto. Nossa vida seria um concerto de formas afeitas, porém dissonantes… música dura aos ouvidos… feito os sons de um contrabaixo quando se espera a harmonia de uma flauta.”
Ele continuava com os olhos na tela. Agora mais fixos. A expressão séria. Vaziamente pensativo. E, então, aquele amarelo, que lhe pareceu mais escurecido do que antes, encontrou um lugar dentro de si. Em briga com a disforia azul. Sentiu uma tristeza aguda e inexplicável, que o assustou de maneira desconhecida. Questionou-se (sem saber que o fazia) se a sua vida teria algum sentido. E, naquele instante, não pôde encontrar nenhum. Deixou que o seu eu se perdesse no azul escuro. Era um mergulho no nada. Lá, onde brotavam bolhas infinitas de transbordamento contido. E aquela imagem, tão sem sentido para ele, transformou-se em uma música grave que regia sentimentos contraditórios. A forma do mundo o assustava e era impossível dominá-la. Suspenso pelo silêncio profundo, ele teve certeza, por instantes breves, de que por ela seria capaz de tudo. Talvez aquela sensação não se mantivesse para sempre. Fosse mesmo passageira. Mas, naquele momento (e o que interessa é sempre o momento), ela era eterna. Sim. Ele sabia que estava sob o efeito daquele retângulo que o fazia mergulhar na gravidade do infinito. E que flutuava em meio a círculos perfeitos de sensações contraditórias e, por vezes, pouco distinguíveis. Um lugar onde o amarelo, pouco cauteloso e bastante imprudente, exigia que reelaborasse o mundo. Foi então que ele se ajoelhou e sua mão direita pediu a de Helena.
“Levanta daí…” Ela disse, ao ver os olhares dos presentes voltados para eles. Era um vexame radiante e faceiro. Cheio de alegria e muita irreverência. É que ela estava repleta de sentimentos esféricos, prontos para explodirem no todo cósmico e caótico do nada.
“É sério…” Ele a olhou com os olhos negros e a face grave. “Não posso deixar que arestas machuquem o mistério que é ter você.”
A declaração, completamente inesperada, foi a mais bela que ela poderia ouvir. E o amarelo, escurecido pelos sentimentos empobrecidos no dia a dia, acendeu-se em Helena, como uma nota lírica num todo confuso e alheio à vida. E ela disse, cheia de certeza:
“Sim.”
Quando todos bateram palma (não eram muitos os que compartilhavam aquele espaço com eles, mas o suficiente para comporem uma pequena e ruidosa plateia), uma criança acompanhada de uma mulher mais velha perguntou:
“O que está acontecendo, vovó?”
“O moço pediu a moça em casamento. E ela aceitou.” Explicou a senhora. O sorriso cheio de deleite iluminando a face enrugada.
“E por que eles estão representando…?”
Aquela criança nunca havia visto um pedido de casamento. E confundia o que via com uma cena de teatro. Como aquelas que, às vezes, via na escola.
“Porque é assim no mundo dos adultos. Tudo é encenação. O cenário é o mundo. Esse museu, por exemplo. E nós somos os atores. O espaço vazio é de onde brota tudo.”
“Ahhh…. Senão seria tudo um nada…?”
Mas a mulher já apreciava o beijo apaixonado daquele casal desconhecido. E a criança permaneceu intrigada e sem resposta.