Um conto de Alexandre Gil França
Alexandre Gil França nasceu em Curitiba, em 1982. Já trabalhou com música, poesia e teatro. Publicou, em 2015, seu primeiro romance, Arquitetura do Mofo (Selo Encrenca/ Arte e Letra). Atualmente, edita junto com a poeta Iamni a Mathilda Revista Literária. É mestre em Artes Cênicas pela USP e doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp.
O conto abaixo integra o livro Terebentina, obra lançada pela editora Urutau, em 2023.
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Jéssica
Alô. Sim. Ok. Yes, I’m Jéssica. Yes. Oh, no. Oh, my God! Really?! Yes! Yes! Aham. Good. Ok. Pode repetir? Desculpe, can you repeat, please? Louise at sign royal ballet dot com. Oh, I’m so happy with this. Thank you so much! Um metal rasga o céu. Os pelos do braço se eriçam. Na altura dos olhos, o suco de mamão com laranja some aos trancos de um copo de cristal. Uma voz ressoa da sacada: CONSEGUI, PORRA! Ela desce pelas ruas tortuosas do bairro Paraíso. Árvores fazem reverência para a bailarina passar. Os ipês lacrimejam. Pega um ônibus para Perdizes. Escorre pelo bairro do Bixiga. O gosto de pastel se espalha suculento, tortuoso. O vinagrete explode sabores noturnos em sua boca. Invade a janela a noite mal dormida, passa pelos ouvidos, aquece a sonoridade da madrugada que está sempre por vir. As bandeirinhas da rua Clélia, os feirantes gritando promoções, os atores do teatro Sérgio Cardoso rindo escandalosos entre as luzes dos faróis. Um casal se confunde com o muro, ejaculam brasas invisíveis por dentro do boné e de um moletom amarrado na cintura. Plumas se evolam entre os trabalhadores. Garrafas derramam cerveja em copos de plástico. Na prainha paulista, os ternos conversam e vendem o planeta Terra inteiro. Estamos longe… em direção ao Butantã? Durmo e estou dançando em Londres. Sozinha. Como sempre fui. Acordo na Benedito Calixto. Um clarinetista de chapéu pisca um olho. E depois o outro. E toca chorinhos. Músicas antigas entre couros, charutos, fumaças. As mulheres se alimentam e alimentam seus filhos. Uma fileira de mães amamentando. Suas crias são bonecas perfeitas e brilhantes. Os olhos: duas bolas de gude polidas. Seriam brinquedos de Deus? Ah, eu consegui! Eu consegui! Moça?
Um sorumbático “o quê” ressoa sem contorno.
Tem gente?
Não.
Que amadora: deveria ter sentado no corredor. Agora um estranho vai lhe encurralar na janela até a hora de descer. Hoje ela merece não ser tocada. Pelo menos hoje.
Calor, né. Silêncio. Você é bailarina? Moço, não tô pra conversa. Silêncio. O ônibus faz uma curva, de modo que a coxa direita do rapaz transmite as ondas eletromagnéticas para a coxa esquerda de Jéssica. Sua bochecha esquerda lhe devolve um espasmo. Ao fundo, uma senhora espirra. E depois tosse de maneira seca. A ventarola do teto começa a bater. Insistentemente. A cada tranco, Jéssica sentia nas nádegas a precariedade do veículo público. Na verdade, tudo parecia mais precário com a presença do jovem fantasiado de alguma coisa. Sua saliva tencionava encostar em suas córneas. Seu hálito roçava intimamente na língua. Quem o vê de longe não o distinguiria de um animal indefeso, mas Jéssica enxerga um andarilho da noite em busca de ração. Aquelas roupas…. Teria saído de um circo itinerante? Estaria fantasiado do quê, meu Deus?
Perguntei por causa do coque. Silêncio. E das sapatilhas também. Esta daqui só pode ser sua. Entrega a sapatilha para Jéssica. Acho que você deixou cair enquanto dormia. Obrigada. Estende a mão. Prazer, me chamo Junior. Jéssica. Se cumprimentam.
Junior – Minha irmã foi bailarina. (Silêncio) Sua sapatilha me lembrou a minha irmã. (Silêncio) As bailarinas não são muito de conversa, né. Quer dizer, elas conversam bastante entre elas, mas com a gente, os reles mortais, elas não estão nem aí. (Silêncio) Desculpe. É que hoje foi foda. Fiz um teste que deu tudo errado. (Silêncio. Mais silêncio) Você não está nem aí, né. (Silêncio) O que a gente mais quer é que o mundo nos olhe com cuidado, mas o que acontece é o mundo criando pernas para pisar na nossa cara. Para espremer a nossa cara, até as lágrimas saírem lentas. (Silêncio) Desculpe. É que hoje foi foda.
Jéssica – Estou com uma dor de cabeça…
(Silêncio)
Junior (Começa a rir de si para si mesmo) – Heheheh, e olha só com o que acabei me metendo: tarô!
Silêncio suficiente para uma ideia; para o início da chuva; para o fim da tempestade.
Jéssica – Tarô? (Pausa) Moço, me desculpe, mas você sabe ler tarô?
O ônibus se transforma num avião jumbo. Os dois estão na primeira classe. Duas taças de champanhe são servidas.
Junior (Responde quase sem querer, quase em forma de pergunta) – Sei?
Jéssica – E você está com o baralho aí?
Ela sorri como se, de uma hora para outra, a bacia de um rio voltasse a encher.
Eu entrego um baralho pra ele.
Eu – Toma.
Junior – Obrigado.
Jéssica – Você pode tirar as cartas pra mim?
Yo Yo Ma, posicionado no começo da cabine, toca a Suíte n.º 1 de Bach em sol maior.
Junior – Claro.
Jéssica – Ai, que ótimo!
Junior – Qual é a sua pergunta?
Silêncio duvidoso.
Jéssica – Eu quero saber se eu vou ser feliz em Londres. Se terei sucesso por lá.
Junior – Vamos ver.
Três de espadas
A Torre
O Diabo
Tá. Aqui diz que você em breve vai terminar um relacionamento.
Jéssica – Sim, infelizmente. Mas e Londres?
Silêncio oracular.
Junior – Você será terrivelmente infeliz. Vai descobrir que é somente mais uma entre tantas. Vai ser coadjuvante pelo resto dos seus dias. A companhia sempre irá preferir as bailarinas nativas. Você se sentirá uma estrangeira para todo o sempre. É capaz de adquirir alguma doença, alguma inflamação crônica nas articulações. Por que você sempre vai achar que não é suficiente. Vai se tornar uma pessoa solitária e amarga, que tentará, a todo custo, esconder seus vícios e hábitos insalubres (como a cocaína, o fumo e o álcool, ingeridos sempre às escondidas, no intervalo, nas idas ao banheiro, na pausa para o café, enfim). E depois começará a se cortar. Até que as marcas fiquem cada vez mais visíveis para os seus colegas e para os diretores da companhia. Até o dia em que será mandada embora, velha e cheia de culpas por não ter ficado aqui, conosco, no Brasil, junto aos fracassados.
Jéssica – Meu Deus!
Eu – As cartas não mentem.
Junior – Eu mesmo. Eu deveria ter ficado na minha cidade. Nunca deveria ter saído de lá.
Silêncio filosófico.
Jéssica – Não fale isso. Pelo menos você tentou. Vale a pena tentar.
Silêncio coaching.
Junior – Se você tentar, já viu o que vai te acontecer.
Silêncio silencioso.
Jéssica – Eu não ligo. Não ligo para o que as cartas me disseram.
Então eu coloco a carta da Morte na mão de Jéssica.
Junior – E essa aí? Ela também não significa nada?
Jéssica – Todos iremos morrer um dia. A morte não me assusta.
Silêncio estoico.
Junior – A minha irmã morreu. Assassinada por um serial killer.
Silêncio compassivo.
Jéssica – Meu Deus! Me desculpe. Sou tão fria assim?! Meu Deus, você está chorando. Calma. Vai ficar tudo bem.
Junior – Nada vai ficar bem, porque estamos destinados a fracassar. Somos os figurantes que fracassam. Não somos as estrelas. Não somos a comissão de frente. Somos a massa destinada a fracassar e ser assassinada.
Chora alto.
Silêncio lacrimoso.
Jéssica – Tudo bem. Calma. Olha, nem tudo precisa ser sobre estrelas, sobre fracasso, sobre essas coisas. Podemos viver uma vida comum sem ter que pensar nessas bobagens. Isso é só uma forma de pensar. Existem outras. Não toca mais nisso, não.
Junior – Eu não consigo.
Silêncio novelesco.
Jéssica – Não imagino você pensando essas besteiras. Olha aqui pra mim.
Jéssica sorri como uma espécie de irmã. Depois, ela aproxima os lábios dos lábios de Junior.
Jéssica (Sussurrando) – Eu vou sozinha para Londres. E eu estou cagando para a felicidade.
Ela beija lentamente os lábios do Mago.
O Mago beija lentamente os lábios de Lila.
Lila beija lentamente os lábios de Jonas.
Jonas beija lentamente os lábios de Jéssica.
Jéssica beija lentamente os meus lábios.
Mil cartas da Morte caem em câmera lenta sobre os dois.
O ônibus para. Junior toma fôlego.
Jéssica (Sussurrando) – Cague para a felicidade e você vai ter o Mundo nas mãos.
Eu entrego a carta do Mundo para ele.
Junior – Obrigado. Por me beijar.
Jéssica – Eu não te beijei.
Já na porta, acena com a mão direita.
Ela parte dançando para Londres.
Mas antes…
Jéssica toca a campainha do apartamento de Jonas. Ele desce. Invisível. Conseguimos enxergar somente as lágrimas escuras como se tivesse espalhado rímel ao redor das pálpebras. Ela continua a coreografia, sem olhar para a sombra que ficou ali camuflada, chafurdando em uma poça de tristeza.
Pega um outro ônibus. Vazio. Segue em direção a Pinheiros. Anoitece lá fora e os últimos raios de sol atravessam as janelas do veículo. Desce em uma padaria Estrela de alguma coisa. Pede uma coxinha. Come. Pede uma empanada. Come. Diz para a garçonete uniformizada, “Eu consegui!”. “Conseguiu o quê, minha filha?” Sorri daquele jeito ensurdecedor. A noite se estabelece soltando um hálito de fuligem. Ela vai para a parte de fora com um litrão e um copo americano. Começa a beber no meio-fio. Diz para cada um que passa: “Consegui!” Parecia uma criança cheia de tinta no rosto. E quem vem lá do outro lado? Carol? Cami? Kaká? Vavá? Vivi? Lulu? Vani? Ou Pri? Qual o apelido da bailarina que se tornará mais uma entre tantas? Não importa. Porque é possível que Jéssica nunca tivesse se importado em ser mais uma entre tantas. A desconhecida aceita beber em homenagem à colega. Vão juntas ao Capelinha, uma balada de samba antigo ali da região. Elas estão do mesmo jeito. Lá dentro, outras tantas também se parecem entre si. Estão de coque. De rosa. De sapatilhas. E dançam. Dançam em Londres, em Paris, em Berlim. Bebem, vomitam, morrem e renascem. Esplêndidas. Cantando em uníssono a música tocada no bar e dizendo todos os sins deste mundo para o presente: este oráculo invisível e sem futuro.