Um conto de Amanda Julieta
Amanda Julieta é escritora, jornalista e pesquisadora literária. É autora do livro Dandara (Paralelo 13S), inspirado na história da heroína do Quilombo dos Palmares, e participa da coletânea de contos Abrindo a boca, mostrando Línguas (Paralelo 13S). Também é mestra e doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia, onde estuda performances de autoras negras nas batalhas de poesia.
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Apocalipse
M a r i a n a
eu repetia baixinho.
M a r i a n a
e o nome dela me escorria doce pela boca. Doce como aqueles venenos que são os piores, porque, desconhecendo sua substância, você bebe tudo de um gole só.
Eu desconhecia a substância de Mariana.
Engolia e regurgitava seu nome em fluxo e contrafluxo. Sedenta, acabei me embriagando da presença dela até que tudo que restasse fosse eu ali, naquele colchão, naquele quarto, naquela tarde oca que seria só mais uma tarde oca se não fosse o primeiro dia do fim do mundo.
Quando Mariana me deixou, eu entendi que todas aquelas histórias que eu ouvia na igreja quando era criança eram uma profecia que agora se cumpria. Mariana foi embora e deixou o Apocalipse. Assim mesmo, com letra maiúscula. O pastor sem nome e sem rosto da minha infância dava voltas e voltas e voltas na minha cabeça, predizendo o futuro. O futuro era agora, meio já e meio ainda. Eu que pensava que o mundo ia acabar em fogo porque da primeira vez tudo foi água. Mas não havia nada de diferente sobre a terra, não havia fogo nem dilúvios, não havia tempestades nem tsunamis, nenhum novo furacão, nada que denunciasse o fim dos tempos previsto no novo testamento que ficava em cima da estante da sala de minha mãe. Não havia nada além da ausência de Mariana e esse buraco oco que ela deixou nos meus dias.
O que existe entre um instante e outro instante é o silêncio. Um simples milésimo de nada que separa o que é o momento do que não mais o é. Um breve desapercebimento do estado solúvel das coisas. Mariana havia me deixado, era isso. Tudo desmoronava. As paredes da casa desmanchavam inteiras como um ferro duro que antes existia sólido e agora era submetido à forja. E eu ali, naquele colchão, naquela tarde oca que depois virou noite que depois virou dia e que nunca terminava.
Um rio com todos os seus afluentes escorria pelos meus olhos. Quando ali, naquele quarto, num dia melhor do que aquele amei Mariana pela primeira vez, meu rosto também se enxarcou inteiro. Mas a emoção era outra, aquele sentimento inexplicável que me vinha sempre que eu me guiava como bússola pela noite do corpo dela. Chorei como se tivesse acabado de nascer e o mundo me fosse revelado pelo amor de Mariana. Ela riu aquela risada escandalosa e descansou a minha cabeça sobre seu ventre. Eu dizia que a risada dela era como o dendê, que amolecia tudo por onde passava. E ficamos as duas ali, naquele quarto, naquela cama, naquele que era o começo de nossas vidas, rindo e chorando juntas numa manhã de sol que depois era outra manhã de sol cujo esplendor nunca terminava.
Tudo, tudo era sol.
A primeira vez que vi Mariana não me lembro bem quando foi. Ela tinha uns olhos assim, duas luas desertas, iguaizinhos aos que tinha no dia em que foi embora. E eu gostei dela como quem gosta da cena muda de um filme mudo, como um bicho gosta de outro bicho e se ouriça inteiro ao vê-lo passar. “Mariana, sua piriguete!”, alguém gritou no meio do bar, e foi assim que tive conhecimento de seu nome. Desde então, milênios caíram sobre nós. Ali, deitada naquele quarto, eu revivia cada momento desde o primeiro dia, ensaiava diálogos profundos e confusos, eu amava e odiava Mariana - porque nessas horas o amor e o ódio se embaralham na nossa cabeça. E porque nos dias que se seguem ao dia que alguém vai embora, tudo o que fica é memória porosa e ficção.
Eu sabia de cor cada motivo que tinha desencadeado a coisa toda, uma sucessão de coisinhas pequenininhas demais que íamos deixando pra lá e, no final, grudadas como cola, custavam em descer pela garganta. Um novelo troncho, irregular e áspero de pequenas farpas que fomos descuidadamente enformando ao longo dos anos e que não sabíamos que jeito dar. Mariana me olhava com aquelas duas luas desertas e molhadas e eu entendia tudo, mas depois que ela foi embora foi como colocar um par de óculos às avessas e embaçar as vistas.
O que vem depois do Apocalipse?
No dia em que vi Mariana pela última vez, eu desentendi o mundo. Mas desentender é, por essência, o princípio necessário a qualquer entendimento.
Mariana, eu repetia baixinho.
Até não repetir mais.
O tempo dança suave entre nós.