Um conto de Anderson Barreto
Anderson Barreto, nascido no interior do Pernambuco, se inclinou logo cedo na literatura e na filosofia, embora tenha a mania de se desviar para os números. Aos 14 anos já escrevia, como uma forma de passar o tempo, hoje, com 19 anos, a literatura se tornou uma forma de afirmar a vida. Sonha em escrever um livro, porém não tem pressa, “Quando for a hora certa ele nasce”. Inspirado em Clarice e Pessoa, busca abordar o cotidiano na sua máxima: viver tudo uma vez.
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Falta [de Luz]
Desligava o chuveiro com uma satisfação humana, pós banho eu era plena. Voltava meu rosto para o espelho bem acima da pia, enxugava-o. Minhas pernas, meu cabelo, passava a toalha por mim deixando a água entrar no pano que ainda estava seco. Saiu, de mim, um riso sincero quando me dei conta de que já não era criança, olhando o corpo agora vejo como tudo se foi tão rápido. A carne passa, a alma fica. Atemporal mesmo só me restou a alma, a mesma alma que agora lembra de quando tinha vontade de alcançar o topo da geladeira. Me esticava, ficava na ponta dos pés, erguia as mãos, e falhava. Desde criança a gente quer ser grande. Repetia para mim: “Olha papai, já alcanço o espelho!” falava isso com uma ternura de saudades. Saudades de ser jovem e não saber quem sou. Logo largo o início do monólogo e vou me trocar. Boto um vestido leve e saio pela casa como um troféu, respiro e caminho tão lenta, parecia não pesar nada. Há tempo não me premiava como agora faço. Flutuo nesse vazio que vivo. A solidão da minha casa me é um luxo.
De repente, na injustiça que o mundo aplica sobre mim, a luz cai e fica escuro. Tenho medo do escuro. Pode parecer infantil, mas só durmo com a luz do meu banheiro acesa, com a porta entreaberta um filete de luz entra no breu do meu quarto, e só assim me sinto segura.
Num impulso falo: “Pai? Tá aí?”, pergunto sem propósito, apenas para pôr em mim aquele sentimento de infância em que, pelo medo, a gente se descobre pequeno. E, na sala, como se nada o abalasse, vejo-o, sentado no chão frente a única janela da sala, um raio de luar toma conta de seu corpo. “Ele está tão vivo”, penso sem sentir temor. Não pergunto nada, deixo-o como está, dirijo-me para o sofá tomada por uma angústia engasgada. E ali fico, torcendo para que a luz volte, pois assim posso ser quem sou na maioria do tempo.
O silêncio toma conta.
“Por que você chorava quando te deixava na escola?” ele pergunta de uma forma tão solitária, que em mim surge uma sensação quase que primitiva. Inesperadamente me dei conta que já tinha resposta para essa pergunta, embora nunca tivesse pensado nela. “Temia que o senhor fosse feliz sem mim…”, falo com uma distração, e o escuro parece, lentamente, tomar conta de mim. Eu deito no sofá e deixo ele pensar sobre o que falei. “Por quê?”, ele pergunta. “Porque era injusto eu só ser feliz ao teu lado…”, falo me sentindo deslocada. “a distância era minha perseguição. E eu perseguia o que, hoje temo.”, fechei os olhos por um momento. “Mas você sabe que sou distante, principalmente hoje”, ele falava já fraco da voz.
Ainda de olhos fechados me veio o dia em que dei a luz, o médico bem na minha frente erguendo meu filho já morto. Choro. Agora assim minha verdade se torna tão íntima que não consigo alcançá-la. Recordo que durante a noite que estive no hospital houve um apagão, como esse. “Carlos, e se o médico estiver enganado?”, “Ele não está…”, falou e logo depois saiu. Passei o resto da madrugada ainda em choque, não conseguia dormir, sentia como se em algum momento eu fosse dar de cara comigo. Me sinto novamente lá.
“Falei que gostava dele”, tentei mudar de assunto, não queria ver ele longe de mim logo agora. “E ele?”, “Ele foi sincero, e gostei ainda mais.”, dou um sorriso. Me sento, e olho para a janela em que meu pai está parado. Sorrio de novo. Minha intimidade solitária se consolida. Sou íntima com o fato seguro. Me seguro. Nessa grandeza mais frágil e intocada meus olhos se encontram com os dele. Ele me lembra ela. “Eu nunca fui feliz depois que a deixei.”. “Quantos estão dispostos ao risco de não verem seus amores pós vida?”. Ele sorriu. “Eu sinto saudades do senhor.”, “Eu também…”. Lá fora o mundo cai, o céu brilha e Deus me manda uma chuva de meteoros, me senti eclipsada pela luz do meu pai.
De repente a sala, antes cheia de palavras, se encontrou vazia.
De maneira cinematográfica me vi ali assistindo a vida que passou por mim. Naquele apartamento onde onde cresci, bem acompanhada, vívida e amada. Quando criança corria por entre o piso de cerâmica marrom, deitava e deixava o frio do chão entrar em mim, e eu me amava ali. Fui muito feliz.
A luz volta e eu dou por mim, olho para o chão em frente a janela e ele já não está lá. Respiro, soluço e tento apagar as luzes com a esperança de vê-lo novamente. Falho. Só me resta a janela e o único raio de luar. Luar é engraçado é a luz do sol, só que fria. Talvez a frieza seja um calor sem emoção. E eu sou tão fria, mas fervo muito por dentro. Ao redor da lua vejo um círculo, e penso numa história que li na infância, “A lua e a Nuvem”, acho que era esse o nome, era um romance infantil, todos os astros se unindo para unir a Lua e uma nuvem. Saio da janela e deixo a luz entrar. Meus passos são fracos, o chão caminha e eu fico.
Dou-me conta: não consigo.
Não tenho mais condição de continuar o que, sem permissão começaram. E eu renasço pois sei que estou prestes a morrer. Morrer é matéria que não se recupera, é aceitação de vida e negação de coragem, mas tem que ter muita coragem para morrer, e acho que não tenho. Me sinto agora como ponto que colocarei no fim dessa frase. A pura matéria concentrada. “Ele vai ter que me perdoar.”. Deixar essa vida vai ser para mim uma liberdade onde vou, sem medo, saber viver, e vou amar. “Acho que ele nem se importa tanto.”. Eu quero amar, eu quero tanto te amar que já não sei como me amar, e eu paro distante e lento, como se eu não fosse um “Eu”. Olho a varanda, paro e penso que posso ser mais que isso. O doente que melhora repentinamente e logo depois se dissolve em corpo e alma. Ao longe os anjos tocam as trombetas, não as do apocalipse, mas as que dão espaço para meu recomeço, e eu abraço o som como se ele fosse o amor que um dia tive de minha filha. Lembro do desemprego, da família vizinha que não sabia como se sustentar, da beleza que um dia fui, lembro de Carlos e do fim que ele, sem forma, teve, já não se lembra de mim, mas eu, com pesar, ainda lembro. Vou por entre essas lembranças viajando para o paraíso que foi minha vida, e me entrego ao inferno que é saber minha humanidade, uma humanidade que não queria ter. Mas logo o ser humano se torna bom, e nessa bondade eu vejo novamente meu pai, mesmo que ao longe, brincando comigo, e beijando o rosto dela. Como eu sinto saudades dela.
Vou até o quarto, toco o meu peito, me dispo, deito e me lembro das vezes que minha mãe me enrolava e me beijava. Olho a porta aberta com a esperança que ela entre, abaixo o volume do vento, e escuto o barulho único da vida. Meu pulsar. Fecho os olhos com a esperança de sonhar. Lembro das vezes que você me trouxe até a cama, eu bêbada e você sóbria. Escuto as nossas brigas, o nosso riso conjunto com uma besteira do dia a dia, vejo que 30 anos se passam no instante já, agora mesmo já é 30 anos no futuro. Não tenho mais 50, já tenho 80. Levanto-me, apago as luzes e volto. “Agora não tem que apague as luzes para mim”, já letárgica, não sorrio. Meu corpo se abre para o espaço. Percebo o espaço único que é a solidão. Adentro-a e beijo o meu rosto. Sou espectral. Minha vontade agora era ser escrita por alguém, e talvez eu esteja sendo. Agora mesmo acho que meu escritor não sabe o que fazer comigo. “Mato ou deixo?”, ele pensa seco.
“Antes de começar a decidir, espere um pouco… tenho que respirar pela última vez”, respiro, “agora sim. Estou pronta.”.
Respiro o tempo que tão rapidamente passou.
“Já passa das três…”.