Um conto de Anderson Barreto
Anderson Barreto, nascido no interior do Pernambuco, se inclinou logo cedo na literatura e na filosofia, embora tenha a mania de se desviar para os números. Aos 14 anos já escrevia, como uma forma de passar o tempo, hoje, com 19 anos, a literatura se tornou uma forma de afirmar a vida. Sonha em escrever um livro, porém não tem pressa, “Quando for a hora certa ele nasce”. Inspirado em Clarice e Pessoa, busca abordar o cotidiano na sua máxima: viver tudo uma vez.
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“O que escrevo continua, e estou enfeitiçada”
Clarice Lispector, em Água Viva
Tributo
Precisava separar essa histórias das outras que havia escrito. Você é um tanto particular. Eu compreendi e sempre fui fácil de aceitar algo novo, e, também, sempre tive certeza do fim. Não é um fim. Não faz por mal, mas vira. É egoísmo meu querer alguém aprisionado a mim pela pura necessidade de segurança, você me deixava seguro, e me apaixonei por isso, não nego que você é parte da minha paixão, mas eu tenho medo de perder esse refúgio, esse canto de calmaria e brisa, tal como o oceano de Djavan. Eu te amo e isso é real, mas você é livre, tentar ter o controle é irreal pois não posso, e não devo possuir, sobre ti, algo que limite sua experiência de vida. O que não quero, e peço isso como se pede a Deus a salvação, é que você não me esqueça. Não quero que você seja apaixonado por mim, ou que me ame, eu quero ser uma coisa boa de lembrar, isso não necessariamente precisa ser amor, carinho basta.
Simone de Beauvoir me mataria se eu continuasse agindo de má fé. Quero tocar em frente.
Quero tocar em frente a saudade gostosa que terei de ti, da chuva que você me fez pegar, nós dois só de cueca, não se amando, mas amando o momento e aquilo que não sei transfigurar em palavras. Estrada eu sou, e seguir é justo para ambos, você segue, eu sigo.
Quando por desventura de te beijei pela primeira vez eu soube que ali assinava um fim que não tinha como prever. E agradeço por não ser vidente. Na verdade eu não precisava do sobrenatural para saber que você depositava um amor sem pretensão. Era um romance sem romance. Tua sinceridade afetava positivamente no que sentia por ti, e eu sinto, não raiva ou medo, mas algo divino que não sei descrever. Obrigado por ter me dito. Não digo que não sofro, pois estaria mentindo, não para você, mas para mim, e isso dói de verdade. Te beijar pela primeira vez foi como um encontro com o primeiro beijo do reino animal. Foi célula viva. O primeiro beijo marca o primeiro amor, o resto foi imitação. O primeiro beijo é conterrâneo a ti.
Quando dou espaço para meu eu filosofo e deixo-o me questionar: “Como você sabe se amou ele?”, eu sempre respondo: Eu tenho orgulho. E é verdade, sinto orgulho em dizer que te amei. Sim… te amei, assim bem pretérito, mais ainda presente, “Te amei”, eu grito para ti, feliz, saltitante e sorridente, me basta isso, apenas, o agora me basta, pois sei que acordarei, ainda que numa tarde de domingo, uma assim: com cor e cheiro de camomila, calmo, alegre, numa plenitude sem fulminação, trazendo um: Amei. “Teu ‘amei’ parece um ‘amém’”, me disseste uma vez. E foi um como um rio morno, me deleitei e ali soube que não queria sair. Alí você me assinou como rubrica do seu jardim.
Lembro de ter tido essas sensações bestas ao teu lado. Foi tudo tão besta. É que as cartas de amor são ridículas mesmo, mas também só é feliz de verdade quem não tem medo do ridículo.
Li o máximo para saber que sentir é mais permitido que existir, não sei existir. Eu não sabia existir perto de ti, e você foi a primeira pessoa por quem senti isso. “Existir… Existir…” eu sussurrava para você quando eu tinha insônia, e ali me vinha o fim de Água Viva, estava pleno às três da manhã, pedia para que você me amasse, mas logo me vinha: “Não… tu olhas para ti e te amas, é o que está certo.”
Eu só escrevo agora para ter, nessas palavras uma salvação, a salvação que não sei pedir a Deus. Há muito escutei que não se guarda as palavras, ou você as fala, as escreve, ou elas te sufocam. Não permitirei me sufocar com elas, mesmo já tendo dito sobre ti, para quem eu pudesse falar, eu não conseguia expressar o que, sozinho, iria expressar. Mas talvez essa repetição seja como um cansaço, “Sabe quando do nada você repete tanto uma coisa que ela chega a perder o sentido?”, você me perguntou uma vez, e talvez seja isso, eu estou te repetindo para que você perca o sentido, quero cansar de ti, não pelas memórias que durante muito vou reviver, mas pelas palavras. E assim nasço novamente, filho de uma saudade.
Mas no fundo sou grato por você ter dito: “Não é justo não te dar o mesmo.”. A gente previu. “Vou te levar até a porta, vai e você não volta mais”, você me disse pela penúltima vez, e eu não voltei. “Quem sabe lá na frente”, eu disse na última vez, “É… quem sabe em outro momento de nossas vidas”, você falou. Quem sabe… “Está mais complicado para nós.”
Eu só consegui por uma vírgula na gente, enquanto você pôs um ponto, ainda que eu alimente a esperança de que seja um ponto e vírgula. Que isso seja duas orações em que a vírgula já foi muito usada, mas que ainda não necessita de um espaço posto por um ponto. Um ponto e vírgula basta. Não vou atrás de ti, e nem você vem de mim. Vou deixar que em algum momento a gente atravesse o espaço entre o ponto e vírgula, se encontre e possa ir. E vamos passar e perceber que não demora muito para se ver e fingir que nunca nos conhecemos.
Não sou um homem de letras, a literatura é viva e nela ponho o meu espírito.
Minha avó tem uma superstição: ela só veste marrom e preto, e quando, por ventura, ela usar qualquer outra roupa de qualquer outra cor, o meu avô descerá para o inferno. Ao meu modo eu fui supersticioso quando eu vestia apenas distância e desejo, assim eu habitava num paraíso. Um paraíso que eu não queria. Mas quando por ventura eu vesti amor e compaixão cai no inferno, e nele me encontrei com você. E eu amei.
Esse texto é um quadro mal pintado, mas só é assim porque o quero assim. O que tenho medo de esquecer não é do que vivi com você, mas sim do que senti por você. É isso: as noites mal dormidas, os beijos de bom dia, os filmes mal assistidos, as idas para casa logo pela manhã, as jantas e os almoços que fizemos, aquele beijo leve enquanto cortava a cebola, seu estresse compulsivo com o mundo, a depressão de não poder viver naturalmente durante dois meses, e o choque de vir outro mês, o momento que minha mãe falou com você porque estava preocupada comigo, e logo você saiu de casa e me encontrou onde só você sabia que eu ia. Foi tudo isso que me fez ter vontade de te amar e eu quero deixar aqui. Mas tudo isso não valeria de nada se eu não te amasse.
E só agora percebo que você estava ciente desde o começo. “Eu vou te deixar”, ecoava na tua cabeça.
Vou escutar Sozinho na voz do Tim Maia, e perguntar como você está.
Vou lembrar do Soneto de Fidelidade e poderei me dizer desse amor que tive que não foi imortal, mas que foi infinito enquanto durou.
Vou escutar Grand’ Hotel e perceber que se tudo fosse mais lento não teria se transformado em “Bom dia”. Mas não acho que seja preciso ficar só para se viver.
Aprendi lendo Clarice e Pessoa que você não me tirou nada, e que eu não me tirei nada, mas que tudo continua e não posso controlar.
Tento aprender, mesmo já distante de ti, que preciso esquecer-te, mas não consigo. é muito duro te ver e fingir que não te vi, e tenho medo disso. Temo te encontrar lá na frente, e não conseguir te reconhecer, temo e continuarei temendo. E foi tão fácil, foi tão… não sei escrever isso. Você me deu um livro e uma paixão, e escrevo pois temo te esquecer, eu sinto que não posso. Não quero sair, pois não quero te ver, não quero usar meu celular, pois temo te escrever.
Hoje foi um dia difícil, e só penso em você. Eu só pensei em morrer. Me entregar novamente a ti é adiantar minha morte. Morte não é biológica, morte é vida. Não quero ninguém para morrer por mim, mas sim, para viver por mim. Tudo de mim, quer tudo de você.
Pós-você não tive um dia em que estive pleno como Deus.
Assim já as palavras, para mim, são como portas para escrever sobre ti, qualquer que seja a palavra eu consigo extrair algo de ti. “Diga-me uma”, te pergunto, “Céu”, você disse.
A primeira coisa que a gente comentava, ainda sem jeito por dormirmos juntos. “Ele tá lindo hoje”, “Tá nublado”, “Acho que vai chover”, “Tá chovendo”, “Já amanheceu chovendo”. O céu escreveu em sua janela o nosso acaso.
“[…]
Tu não me tiraste a Natureza
Tu mudaste a Natureza
Trouxeste-me a Natureza ao pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo,
Mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.”[1]
Livre é quem sabe, mesmo que de olhos fechados, seguir. Eu te amarei, e isto é o meu tributo, mas eu me amo e basta-me isto. E eu ainda tenho tanto que escrever.
[1] Trecho do poema “O pastor amoroso”, de Fernando Pessoa.