Um conto de António Figueira
António Figueira é natural de Luanda, Angola. Nasceu no ano 2000. É apaixonado por literatura, cinema e música. E fotografia. Tem uma enorme vontade de abandonar tudo e sair rodando o mundo. Enquanto não pode, lê de forma voraz e aprende idiomas. Está numa luta para falar alemão sem arremessar um mar de saliva e italiano sem parecer que está sendo enforcado. Tem um amor louco por contos e faz traduções de autores desconhecidos (só para ele mesmo). É um dos criadores da Litterae (@litteraae), um coletivo de literatura. Está finalizando dois livros de contos.
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as curvas nas memórias
“Ninguém jamais dirá o instante em que as portas se abrem para os sonhos.”
— Histórias de Gabriel Medrano, Julio Cortázar
“[…] pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.”
— Vicente, Miguel Torga
Para a minha mãe, que sempre teve a saúde mental questionada.
Eu vivia com muita pena do meu vizinho. Ele era idoso e estava doente, muito doente, e saber disso me dava uma tristeza profunda porque o que ele tinha a mamãe também teve, apesar do meu coroa dizer naquele seu jeito sempre sereno que estava tudo bem com ela.
Mamãe era atriz ou quis ser atriz, não lembro bem. Ela quis ser muitas coisas, atriz, escritora, cantora, ilusionista. Ela quis ter um café também onde seria para os clientes uma espécie de terapeuta, mesmo não curtindo terapia. Na verdade era o meu pai que não curtia essa ideia, mas mesmo assim uma vez ou outra mamãe brincava dizendo que não seria nada mal falar com um desconhecido, que talvez fosse ser interessante, marcante.
Meu pai torcia o nariz quando ouvia essas palavras e mamãe não tocava mais no assunto, não com ele, mas para mim ela contava tudo. Ela dizia que no café não seria bem uma terapeuta e sim uma conselheira e que teria um nome que ficaria na cabeça, bem como um jeito meio excêntrico.
Eu pedia para ela realizar todas essas coisas, mas ela dizia que estava morrendo de tão cansada que estava. Mamãe estava sempre cansada e vivia como se estivesse em transe. Era como se ela me visse mas sem de fato me ver, embora eu estivesse à frente dela. Muitas vezes ela falava sobre mim para mim, mas como se não soubesse que estava fazendo isso.
Essas coisas aconteciam quando ela retornava para casa após ter sumido por horas. Ela sentava e contava que fora na minha formatura, me ver tirar a carta, casar.
— Foi tudo maravilhoso — dizia ao lembrar das coisas. — Foi emocionante, Maurício — dizia para o meu pai. — Meu Deus, você estava lindo na festa, como quando nos casamos, e Luiz estava ainda mais, nosso filho estava muito bonito.
— Estava sim — meu pai dizia e deixava a mamãe contar as coisas.
Eu não entendia nada do que mamãe dizia. Eu reclamava dizendo que não tinha feito nada daquilo, falava as coisas que tinha feito e meu pai dizia para eu calar a boca. Ele vivia me mandando calar a boca e teve uma vez que fez a mesma coisa com a mamãe. Os dois estavam na sala fumando e mamãe disse:
— Maurício, meu amor, estou muito cansada. Há tempos que não estou vendo você, as coisas ao meu redor e nem o nosso filho. Estou cansada, tão cansada que você nem faz ideia, e tenho certeza que vou morrer, sinto que isso irá acontecer se tudo continuar como está, eu — então meu pai mandou mamãe calar a boca e os dois continuaram fumando e tomando vinho.
Bom, nem sempre mamãe saía de casa. Na maioria das vezes ela ficava fumando deitada na cama e às vezes lia para mim os livros que tínhamos numa prateleira que ficava na sala. Outras vezes ela fazia uma coisa ainda mais estranha. Ela saía nua na rua dançando e cantando uma série de músicas que eu não conhecia.
Eu ficava sem jeito vendo mamãe assim, com várias pessoas na rua olhando para ela. Eles assobiavam e falavam besteiras, mas ela parecia estar nem aí, era como se toda aquela multidão não existisse. E então de uma hora para outra toda essa euforia virava um choro descontrolado.
Numa dessas ocasiões mamãe chorou muito com as mãos sobre a cabeça, de joelhos. Minutos depois meu pai apareceu e viu a mamãe no meio do círculo que tinha se formado na rua, em frente à nossa casa, e levou ela para dentro, apertando o braço dela. Eles entraram no quarto e eu fiquei espiando através da porta entreaberta. Mamãe estava com a cabeça baixa e meu pai não tirava os olhos dela.
— Berta, meu amor — disse meu pai —, só faça isso, de uma vez por todas. Está na hora de você nos livrar dessa humilhação, dessa tristeza. Eu dei muitas chances e mesmo assim você não mudou, não quer mudar. Isso é absurdo. Eu não entendo mais nada. Eu não entendo — disse meu pai.
Mamãe olhou para a porta e seus olhos cruzaram com os meus. Ela piscou para mim como fazia antes dos seus truques de ilusionismo, os quais não fazia desde que o cansaço começou a pesar sobre ela. Meu pai olhou para mim e me censurou com o olhar. Ele veio ao meu encontro, me colocou no colo e me levou para o quarto.
Minutos depois eu ouvi a porta da sala abrir e fechar e nunca mais vi a mamãe e nem o meu pai depois que ele saiu do meu quarto. Ele sumiu. Todo mundo disse que ele fez isso porque estava com a consciência pesada pelo que fizera com a mamãe, no entanto eu nunca soube o que ele fez com ela, muito menos se a mamãe ainda estava viva ou morta.
Depois disso eu não lembro de nada, sei apenas que um dia acordei num motel de beira de estrada e que desde esse dia passei a ter uma série de sonhos curiosos.
Por exemplo, eu sonhei que havia retornado ao nosso bairro e lá soube que na casa dos meus pais vivia um coroa. Eu achei que cedo ou tarde a mamãe voltaria para casa, arranjei um quarto e passei os dias olhando para ela. De repente me vi velho, dentro da nossa casa, e nada mais acontecia.
Depois desse sonho eu tomei a decisão de visitar a cidade onde vivia com a mamãe. Tudo nela parecia estar do mesmo jeito, a cor e o cheiro eram os mesmos, e eu fiquei sabendo que na nossa casa vivia um coroa que não souberam me dizer o nome e muito menos como era. Ele não saía de casa.
Do outro lado da rua tinha a única coisa diferente, um café com um letreiro escrito Café O. Eu entrei nele.
O “o” era de Odisseia, o nome da atendente. Ela parecia ter a mesma idade que eu, vinte e dois ou vinte e três, e sorriu para mim durante a nossa conversa cheia de anedotas sobre café.
Ela falava uma coisa divertida e mexia nos óculos circulares enormes ou no cabelo curto e na franja, ambos de variados tons de azul. Ela não cobrou pelo café.
— O primeiro é por conta da casa — disse. — E, aproveitando o momento, o senhor está apenas de visita ou veio para ficar?
— Eu não sei — eu disse.
Ela disse que se eu quisesse ficar havia um quarto bem perto dali a um bom preço. Fui conhecer o quarto e acabei ficando com ele.
Nos primeiros dias eu passei as noites olhando para a casa dos meus pais. Nada aconteceu, nenhuma pessoa entrou ou saiu de lá. Um tempo depois eu cansei disso e passei a procurar por trabalhos no bairro, mas não achei nada. Fui ao café O. falar com a Odisseia.
— Bom, querido — disse ela —, sinto muito, mas eu não tenho nada. É que eu sou a única pessoa que trabalha aqui e que pode fazer esse trabalho, sabe?
— Qual trabalho, vender café?
— Mais ou menos isso — ela riu. — Enfim, eu sou a única pessoa que trabalha aqui o dia todo, você sabe disso — disse ela.
Eu sabia, claro. Eu e ela falávamos com frequência e uma vez ela disse que não havia outros funcionários. Eu achei que fosse uma brincadeira, visitei o café em todos os horários e a única atendente era apenas ela, só ela.
— Enfim — ela continuou. — Eu adoraria dar uma mãozinha para você, mas não posso, me desculpa.
— Tudo bem — eu disse. — Mas será que você não tem indicações para fazer?
— Bem, acho que tenho — Odisseia olhou para a casa dos meus pais. — Bate aquela porta aí, querido, com certeza deve ter muita coisa para fazer lá, nunca vi aquela porta abrir.
— Sei disso — eu disse.
— Muito estranho, não? — disse Odisseia. — Eu lembro que ele vinha muito aqui no café antes, vivia naquele quarto onde você está vivendo. Ele era uma pessoa boa, muito boa, na verdade, mas aí um dia veio cá muito triste e ficou sentado em silêncio. Foi estranho. Eu tentei ajudá-lo, mas não deu em nada — Odisseia se calou e no meio do silêncio eu fiquei brincando com os meus dedos, dois lutadores se enfrentando pelo cinturão mundial. — Enfim, depois disso nunca mais o vi. Ele se trancou lá no quarto e passava o dia olhando aquela casa aí — ela apontou para a casa dos meus pais. — E quando o senhor que vivia lá morreu, ele foi viver nela e não saiu mais.
Odisseia ficou em silêncio. Eu fiz uma careta e ela riu.
— Bom, enfim — disse ela —, bate lá, querido, talvez tenha coisas para você, com certeza deve ter.
— Farei isso — eu disse.
Eu me levantei e fui bater à porta do coroa. Ele abriu na mesma hora. Ele tinha um sorriso enorme que morreu assim que viu o meu rosto.
— O que foi? — disse ele.
— Foi mal, senhor. Olha, desculpa incomodar, é que…
— Só fala o que você quer — disse ele.
— Tudo bem. Então, é que eu estou procurando por um trabalho, o que o senhor tiver aí eu faço numa boa, só preciso mesmo de um trabalho, sabe?
— Sei — disse ele. — Não tem trabalho aqui.
Eu levei a minha cabeça para o lado e espiei a sala. Nela havia uma prateleira com um monte de livros em desordem.
— Olha, eu posso arrumar aqueles livros aí e limpar a prateleira.
— Não precisa, está ótima assim — disse ele.
— Por favor — eu apontei para o café O. — Olha, aquela mulher aí me disse para bater cá e ela tinha certeza que o senhor teria um trabalho para mim. Eu posso arrumar a prateleira, é sério.
— Não tem nada aí — disse ele, olhando na direção do café.
— Tem sim, tem um café bem ali — indiquei ainda melhor e ele não disse nada. — Enfim, se o senhor quiser eu posso cuidar da prateleira ou de outra coisa, faço isso sem cobrar nada e aí se o senhor achar que fiz um trabalho maneiro pode me dar o que tiver. Por favor — concluí.
O coroa olhou para mim de um jeito esquisito, meio triste.
— Entra — disse. — Mas só a prateleira. E tenha cuidado com os livros.
— Sim, claro — eu disse.
Eu fui até a prateleira e o coroa foi junto. Ele ficou do meu lado olhando os movimentos que eu fazia. Ele estava tão perto que eu ouvia a respiração dele, uma coisa dura, sofrida. Eu estava meio incomodado com o olhar dele sobre mim, com o barulho da respiração dele. Eu sentia como se fosse eu mesmo respirando e a sensação era sufocante. Eu terminei o trabalho.
— Mamãe vai adorar isso — disse o coroa, rindo. Ele me deu duas notas de vinte.
Eu fui ao Café O. e contei tudo à Odisseia.
— Muito estranho — disse ela assim que terminei o relato. — Eu nunca vi a mãe dele. Ele me disse uma vez que ela morreu faz muito tempo. Eu lembro muito bem. Eu não costumo esquecer das coisas.
— Eu sei — eu disse, rindo —, e espero que lembre do meu aniversário, eu quero muitos doces.
— Pode deixar — disse Odisseia. — Enfim, ele me disse que a mãe dele tinha problemas mentais. Eu não sei qual ao certo, ele disse que também não sabia, mas eu lembro que ele disse que foi isso que levou ela à morte.
— Entendo — eu disse. — Minha mãe também teve problemas mentais.
— Sinto muito — disse Odisseia.
— Tudo bem. Eu não sei muito bem o que ela teve, mas eu lembro que era uma coisa muito ruim e acabou com ela. Ela morreu.
— Sinto muito, meu bem. Isso é muito triste.
— Tudo bem, foi há muito tempo também.
— Entendo — disse Odisseia.
Ela colocou as mãos no meu cabelo.
— Olha, querido, eu não sei se é verdade, mas já ouvi por aí que ele sofre de problemas mentais ou coisa parecida. Talvez seja verdade, às vezes ele esquecia das coisas, se esforçava para lembrar delas, e isso nunca acontecia. E cada dia que passava parecia que ele ficava mais infantil, aceitava fácil as coisas. Parecia ser uma coisa séria mesmo, se bem que na época eu não percebi isso. Enfim, talvez ele ache que a mãe dele está viva, o que é triste, muito triste.
— É — eu disse.
Odisseia foi atender outros clientes e eu fiquei olhando a casa daquele coroa, as luzes acesas. Ele com certeza estava à espera da mãe e fazia isso sem cuidar dele mesmo, sem estar em contato com o mundo e se esquecendo do que estava diante dos seus olhos.
Eu levantei e fui até a casa dele, bati a porta e ele abriu no mesmo instante.
— Boa noite — eu disse. — Posso entrar?
— Está meio tarde, não acha?
— Eu sei, serei breve.
Ele me deixou entrar e nos sentamos no sofá.
— Então, o que foi? — disse ele.
— Nada demais. Olha, eu sei que vai parecer estranho, mas é que eu quero saber se a mãe do senhor já voltou. Está esperando por ela, certo?
— É — disse ele. — Mas o que você quer com a mamãe?
— Nada demais, é que eu quero que ela me empreste um daqueles livros.
— Mamãe não dá livros emprestado — disse ele.
— Tudo bem. Mas ela já voltou?
— Não. Mas vai voltar em breve.
— Sei — eu disse. — Faz quanto tempo que ela saiu, ao certo?
Ele não respondeu.
— Olha, não é por mal, é só para saber se devo esperar por ela mais um pouco, vir aqui amanhã ou quem sabe daqui a uma semana.
— Sei — ele disse, e se calou.
— Então, faz quanto tempo?
Ele ficou em silêncio. Parecia não ter ideia.
— Olha — eu disse —, eu não quis dizer isso, mas acho bom você saber que a sua mãe não vai voltar.
— Claro que vai — disse ele. — Ela está vindo aí e acho melhor você ir embora, está tarde e a mamãe detesta visitas.
— Sei — eu disse. — Ela não vai voltar. Ela não está vindo, e essa é a verdade.
— Como assim?
— Isso mesmo que você ouviu, ela não vai voltar nunca mais, é isso.
— Mas como assim, o que houve com a mamãe?
— Sei lá — eu disse. — Eu só sei que ela não vai voltar.
— Mas como você sabe que ela não vai voltar se você não sabe nem o que houve com ela?
Eu não disse nada. Ele riu. Fez isso como se soubesse de uma coisa que eu não sabia, como se tudo aquilo fosse uma mera cena de circo.
Isso me deixou irritado. Eu me levantei e fui ao café O. Eu me sentei no balcão e tentei entender aquele olhar misterioso e, enquanto fazia isso, fui me sentindo meio estranho e abatido.
Odisseia disse uma frase qualquer para mim, mas eu não ouvi com clareza, toda a minha atenção estava na casa dos meus pais, no coroa acordado tarde da noite a espera da mãe dele.
Odisseia tocou os meus cabelos e foi brincando com os meus caracóis. Ela sorriu com leveza.
— Está tudo bem, querido — disse numa voz suave. — Está tudo bem.