Um conto de Carol Diniz Bernardes
Carol Diniz Bernardes é doutora em Literatura, pesquisadora e terapeuta, nascida em Ribeirão Preto, onde sempre residiu. Como escritora, recebeu o prêmio “Grandes Empresas na Literatura”, pela obra infantil Flauis (Instituto do Livro, 2010), e publicou Retalhos e Epopeias (Patuá, 2012), além de sua tese de doutorado A Odisseia de Nikos Kazantzakis: epopeia moderna do heroísmo trágico (Cassará, 2012) – todos com o nome Carolina Bernardes – e do infantil Mãos que fazem o Sol (Koré/Telucazin, 2021), com o pseudônimo Cora Kalenduen. Em 2021, publicou o romance épico A Falésia da Árvore de Fogo (Koré) e, em 2022, Oikospoética: a tecelagem literária de retorno ao lar (Telucazu/Koré), contemplado pelo edital ProAC.
Como pesquisadora, tem diversas publicações em revistas literárias e acadêmicas no Brasil, Chile, Argentina, Portugal e França, além de apresentações em congressos em alguns desses países. Sua relação íntima com a literatura grega (clássica e moderna), resultante da pesquisa acadêmica sobre Nikos Kazantzákis, é presença marcante em toda a sua obra, assim como as práticas manuais que levaram à edição artesanal e caseira de seus primeiros livros.
Atuou por vários anos como professora universitária e atualmente se dedica à Koré Editorial e oferece palestras e oficinas de escrita feminina e sobre as relações entre o sagrado, o mágico e a literatura.
***
Camomila Azul
Acordo descalça, os pés no chão. Invariavelmente raspando a sola no piso frio, ando pela casa. Os corredores como um percurso. Há tanto chão, quilômetros de jornada, os pés sujos levam a poeira, criam seu próprio sulco marítimo, a marcha dos homens que em mim é a passagem de um círculo a outro. Meu calcanhar de fendas, calos ou rachaduras – como as marcas que gritam nas paredes, tão mais irritantes que a barata de Clarice. São ásperos os meus pés, em caldo pardo, tingidos da cidade de terra roxa. Atravesso o mundo para saciar a fome quando saio do porão e sinto o cheiro de cravo e canela em fervura na cozinha. Não a fome do bucho, essa vontade absoluta que move a humanidade. Minha fome é indigna. Pois é arte, é desejo, é vertigem de sair de mim, ou mais que tudo – ela se chama liberdade.
O chão é a minha primeira luta. Tão sujo quanto meus pés. Há nódoas, gotas de qualquer coisa não vista nem reconhecida que se acumulam, formam clareiras no piso, embora não haja árvores ou florestas. Inauguro o dia passando pelas nódoas e elas me doem. Como afugentar o fluxo dos ares, interromper o modo inclemente da natureza que traz para o tempo esse escárnio que se chama varrer? Somos assolados pelo hoje da limpeza – a de ontem se esqueceu de nós.
Mas eu não quero. Andar não significa tratar o caminho como seu e assumir a culpa por cada rastro de desonra que os seres e os astros deixaram de si. O que é a casa senão meu próprio corpo? Lavar os pés gretados enquanto se lava o chão, claramente sentindo que só as areias da praia limpam e redimem os calos da terra roxa.
Não se vê a morada sem os pés no chão.
Não se vê a morada se não estiveres a portas abertas, o chão encrespado de muitos odores e fungos, quando pés invisíveis aportam e tangem o assoalho. Não se vê os resquícios de quem partiu quando as dores são fortes no estômago, é como soltar a verdade pelo acúmulo de esperança, dizendo às partes do corpo que se organizem de outro modo, porque hoje, esse local onde armazenamos o fogo, a vida pulsante de ação, não, ele não vai funcionar. As mãos perdem em trabalho, baixam imprecisas e, nervosas, criam latências, a vontade ferida. Eu gostaria de abrir todas as portas, escancarar ventanas, receber auxílio do deus de todas as dores. Viriam eles de volta, homens que me queiram olhar, mas a casa se cala. Pressinto que ela não quer. Não é hoje que os homens retornam, há mais, e ouço de suas paredes, um tanto pálidas e manchadas, que teremos outra missão. Minhas mãos não querem promover revoluções.
Antes, me toco, as mãos já emudecidas, me toco de que a força ancestral se fixa e corrói o ventre. É dor e desejo. O útero é um fundo obscuro, uma porta aberta. Lateja, expande e grita. Uma onda de dor o comprime, gira, clama, pede a urgência de ser reconhecido. Não me posso conter. Toda experiência é um arco, e as margens fluem. Sinto o desejo ampliar-se, como círculos concêntricos, em dor desesperada de receber, mais uma vez receber o corpo inteiro do homem.
Mas o que sabe Ulisses do espasmo? Os homens não sabem que as mulheres sangram e que recebem invariavelmente o coito, o grito e a sombra. São os homens morando em seus ventres, no côncavo secreto, orifício profundo que se move sempre e sempre. Ah, digníssima Penélope: como lhe foi possível domar o espasmo, a dor-entranha que corrói as carnes e o oco vazio desse mundo que nos faz desejar, com a mesma loucura de Ismália? Que ervas e cataplasmas abrandaram o furor por vinte anos de espera?
Quão tedioso é parar – ele dizia – de porto em porto, da alcova ao quarto. Tantas mulheres o receberam. Pois as margens fluem e não há proveito o fim junto à lareira. Não se lembra dela, o espasmo nunca viu, nem os recursos de amansar a queda. Penélope está aqui. As mãos ocupadas. Num relance de entender as coisas silenciadas, vejo o cesto no canto do quarto. Não é a espuma do mar que transborda do ventre, são os novelos, os fios enrolados, que ela invariavelmente torce em círculos, formando anéis nas reentrâncias do cosmo.
O cesto é a minha última morada. Ainda que não compreendam, homens e mulheres, ficar é necessário. São as margens da missão. A lareira, o corpo, o buraco. Sinais precisos da contenção: aqui, onde os pés se fixam e os batentes da porta orientam. Penélope entrou. Foi ela quem chegou e já sustenta nas mãos uma xícara sumarenta de chá.
As palavras estavam presas em minhas mãos, solidariamente presas para não provocar a interrupção daquele olhar sereno, que já não captava nada na escuridão; talvez os mares estivessem revoltos para toda essa gente que corre e se pergunta como é possível viver na terra, mas havia a delicada fumaça se desprendendo da caneca, os dedos afilados como um ninho, no gesto de proteger o que em nós é conforto. O chá da palavra. Os lábios tocavam a superfície da xícara numa textura silenciosa de sorver e superar o horror. Ela esperava, as mãos entrelaçadas, o côncavo da terra armazenado nessa grande concha tecida em seus dedos. O urdume das palavras. Descia da laringe ao esôfago e ao plexo, onde os mares se perdiam, e o sangue quente do útero que recebe o broto falava. A cama de seus filhos. Como fios que escapam de seus novelos, a seiva da camomila recendia no ar e acalmava no ventre a imposição do silêncio, o sangue quente dos filhos que não nasceram, ainda sem nome.
Todo o corpo era a opressão da voz, o acúmulo de seres sem nome. Mas Penélope sorveu com desenvoltura a água cálida, com a experiência de quem sabe os caminhos do ventre e enfrenta interdições há muitas voltas da terra. Sustentou nos lábios a umidade do cosmos, as flores amarelas fundando o abismo e o olhar sereno pediu que eu com ela instaurássemos a história.
Embora eu leve em mim um corpo exangue de palavras, ainda perdido na imensidão, sem saber por onde ir e como me situar num espaço de tantas margens, ela me pede pra ficar. Penélope está aqui. E ela reconhece os nomes de todos os filhos não paridos, dessas almas generosas que levamos no corpo, sonhando e querendo a brecha, o buraco do nascer. A erva me aquece, tingindo meu corpo de fios azuis, e os filhos nos chamam de volta, para o quarto onde todas as histórias se iniciam.
A cama é a porta de entrada do mundo, núcleo impreciso do óvulo.
Fecundamos a existência num acolchoado de lutas, do parto à agonia, e no intervalo a alternância de vitória e perdição. Tantos são os encontros premeditados, o desejo de entremear as pernas e acolher o chamado do útero. Penélope se senta na beirada da cama, sua caneca já está vazia. Imagino os contornos da camomila em seu ventre, a delicadeza do toque quando os raminhos pousam no endométrio. Ela não espera; as embarcações estão distantes, mas quando os corpos se reúnem na alternância amorosa, ela não dirá palavras, essas que levo no bojo das mãos.
Microcosmo da vida: o útero olha, alarga, compreende e atrai. E quando Ulisses chegar, não serão as palavras sua caneca de ervas. O continente do encontro é agora o corpo – ouvido pleno que embala o rebento, recebe o sêmen, alimenta e não invade.
Penélope é o meu primeiro tear.