Um conto de Conceição Rodrigues
Conceição Rodrigues é poeta, contista e romancista.
Publicou os livros de poemas Molhada até os ossos e Os dedos das santas costumam faiscar, ambos pela Editora Patuá.
É autora de E Deus não acudiu ninguém, livro de contos, pela mesma editora.
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Duas peças
Somos feras à noite, rugindo. Duas peças novas virão, fresquinhas. Vimos no noticiário que estavam a caminho e os formigamentos de paus começaram coletivamente.
Você vem? Mas é claro. Vamos limitar o número de convidados dessa vez, da outra deu BO por conta daquela fofoqueira do caralho. Então tá certo. No máximo vinte caras, tá bom? Tá beleza assim, vinte, estourando…
Deus não me desampara, disse eu no mais completo desamparo na hora de morrer, foi o ônibus que agora pareceu imenso vindo em direção a nós. Meu marido chegou ao necrotério com cara de horror, os olhos esbugalhados, a boca torta. O cérebro foi embora com o crânio que fez um estalo como o de uma Coca geladíssima sendo aberta, daquelas de garrafa de vidro. Eu fiquei bem no meio da avenida, fiz um bate-volta nos pneus do busão. Minha blusa levantada e eu pagando peitinhos para uns escrotos que não param de tirar fotos. Todo o IML está sabendo que chegarei em breve. Eles festejam, festejam.
A cama fria e uma fila de homens para me devorar. Ao lado de mim uma menina, é uma menina… doze anos… No máximo… De que podem morrer as crianças? De corte no dedo? De tropeço? De vontade de comer doces? De choque? Eu não sei. Está morta, tão morta quanto eu, e a fila para ela é maior que a minha.