Um conto de Danilo Brandão
Danilo Brandão nasceu em São Paulo em 1996, e vive em Londrina desde 2018. Formado em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina, Tempos ainda sem nome é seu livro de estreia.
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A amputada
o vento soprou quente lá em cima e me despertou. embora tudo fosse quente em contato com meu decapitado corpo.
mais um dia.
me trouxe um bolo desta vez. faz de propósito. eu sei que faz. se aproveita do fato de eu estar afundada por essas amarras. me espezinha com toda a força. odeio bolo. e ela sabe disso. sinto seu sorriso. sinto sua ironia. seus tantos braços e pernas que se penduram, giram e surram o ar. logo ao entrar, tenho vontade de te matar. e isso me mata. muito mais do que saber que estarei aqui pra sempre.
quando se perde as extremidades, o fio da linha se esvai. é quase impossível achar o começo e, por isso, tudo fica muito confuso.
perdi os braços a dentadas, as pernas com uma faquinha de cortar pão. brigando com outro humano, eu acho. ou talvez por um erro médico. um diagnóstico errado. a medicina nem sempre avança, ao contrário que nos dizem nos jornais. mas isso não é certo. não lembro de nada.
restou-me apenas uma fenda invisível pela qual sinto o mundo disparar sua normalidade. também consigo mexer as pequenas protuberâncias que sobraram, embora sempre com dificuldade. fui salva. precisaram apenas de 32 cirurgias e 1889 dias no hospital para isso. fui salva. vivo agora em uma cama hospitalar instalada na sala da minha casa. um retângulo frio que me fixa na realidade e não deixa eu ir pra lugar nenhum. nunca mais. os cheiros aqui se misturam. sovaco, merda e almíscar fresca. combinação que, confesso, me agrada. tenho alguns filhos, mas só uma ficou. eu a detesto e a mandaria pra longe daqui se pudesse recuperar ao menos um de meus membros para me limpar.
os novos tempos que me fazem tão triste. silêncios eternos empedrados sob as rodinhas de uma cama hospitalar.
apesar de dormir sempre com dificuldade, vivo sonhando com um banho de mar.
finalmente voltei. voltaria sempre. todos os dias. a força do mar molha os meus tornozelos. o vento faz seu trabalho. me toca, me seca, me molha. o mar. vai embora. até mais uma onda recomeçar. sento e sinto a areia sob meu corpo. meus movimentos de volta. rodeia minhas coxas, cintura, peitos, costas, pescoço, nuca. sinto o seu toque. deito aos poucos. a areia me contorna. então mais uma onda nasce. renasço. me afundo, inteira. me entrego em seu forte bater. gosto de tomar banho de mar. fecho os olhos e sinto alguém me chamar. vai embora. vai embora, filha. esse sonho é só meu. aqui você não pode entrar. jamais.
nesta exata cama que minha mãe morreu há quatro anos. aqui, só se ouve o som da morte. lento. vagaroso. eterno. a morte gritando.
penso que minha mãe passou por momentos difíceis. penso também na piada de deus me deixando o mesmo destino. vozes confusas. misturadas. que personagem engraçado é deus.
por toda a sua vida nesta cama, usou um vestido branco. muito antigo e cheio de babados. em volta da gola irregular, deslizando pelo pescoço, a maria santíssima do refúgio, companheira de uma vida.
não havia nada além de brancura, brancura, brancura. nenhuma vez escutei o seu queixume de estar naquela situação. melhor assim.
os amputados dormem pouco. quase nunca. às vezes cochilam. nessas horas, sempre sonham. fecham os olhos e batem as mãos e levantam os braços e giram. giram, giram. sem nunca parar. e isso é a única coisa que nos resta fazer.
apenas ruídos calados. a manhã crescia pela janela, daqui, nunca havia estrelas no céu, que estava sempre cinzento e anunciando a chegada de mais uma jornada triste.
mandei tirar a televisão, fechar as janelas e tapar os vazamentos do portão. não me interessa mais o mundo exterior. exceto pela fantasia. não tenho mais braços, nem pernas, mas meus quatro cotos estão perfeitamente cicatrizados e endurecidos, graças a um rigoroso cuidado médico. dessa forma, se quisesse poderia me deslocar de uma forma grotesca pela casa. mas isso também não me interessa. é apenas meu sexo que está perfeitamente vivo. eu já morri. e quando digo que apenas fantasias me interessam, devo me explicar melhor. apenas as sexuais. fiz disso a minha diversão e uma profissão. já não posso mais viver de outra forma. posso apenas foder. sempre que quiser. desde que o rapaz ou a moça entenda os percursos que devem recorrer. os rituais a seguir ao transar com uma amputada. é preciso cuidados com os inevitáveis furúnculos das costas. certificação de que todos os curativos estão bem fechados. caso o contrário, meu corpo pode expelir durante o ato um fétido pus amarelado e eu padeço de dores instantâneas. tirando essas minúcias, descobri o dom de ser um objetivo sexual ativo. homens e mulheres. curiosos e experientes. todos me visitam para saber como é fornicar com a amputada. uma possível repugnância se transforma em atração em poucos segundos de observação. algumas mulheres chegam a me amar, os homens se viciam é na feiura do ato. amam tudo que sai de mim. e fazemos, juntos, uma dança infinita dos gerúndios. cagando, mijando, cuspindo, arrotando. vamos juntos até o fim. embora sem nunca esquecer de que estamos em uma cama hospitalar.
um pranto suave, mas agudo. estou morta, dizia. mas não me mataram, completava. eram tempos repletos de ecos. fechamos todas as janelas que poderia ter com o mundo lá fora. pra te proteger. o som da rua, a televisão, celular e os jornais. é que a alegria me cansa, ela repetia. as pessoas desenvoltas passeando pela vida deixava mamãe exausta por si, por elas. vamos todos morrer. um dia. o meu já passou, mas me esqueceram aqui.
não sou uma criatura. sou cria. posso ejacular, ter orgasmos, jorrar. ainda gozo. a cada visita eu gozo. para entender meu corpo, é preciso ter calma e paciência. com perseverança e sem preconceito, você pode encontrar beleza em mim. mantendo um olhar centrípeto. focado. sem ceder à tentação de olhar para as extremidades. fique entre os seios. fantasioso. sexualmente liberto. disposto a desvendar esse labirinto. ainda gozo. gozo. gozo.
depois que morreu, sua imagem foi se esvaindo da minha cabeça, a vida havia voltado por completo. seus pertences no lixo, as toalhas queimadas, o urinol doado e a cama hospitalar posicionada no quartinho de despensa.
tudo no seu lugar.
ruídos. vozes. rumores. novos caminhos. o cruel da vida é seu jogo de cena constante, eu estava de volta a cama em menos de 15 anos. regressei para o mesmo lugar. o espaço de teto reservado para aquela mulher contemplar a crueza da vida. eu voltei. tornei-me também uma amputada.
tal qual mamãe, me transformei em uma figura paquidérmica sem patas. é isso que me tornou. uma figura geométrica, com o formato de um quadro. enfaixada da cabeça aos pés. caduca de alma. sem poder de encaixe. uma vida que jaz em cima de um colchão. repleta de manchas e marcas pelo corpo inteiro. fatiada. reduzida. semimorta.
vou ficar aqui, disse ao voltar do hospital. todos me olharam desconfiados. aqui. no mesmo canto de sempre. a cama está tão dura quanto antigamente. a gente brincava de deitar quando ela ia ao banheiro, lembram?
todos balançaram a cabeça.
e então me deitei para esperar a morte. ouvia apenas o barulho do meu estômago enrugado artificialmente pelos remédios. o aperto dos curativos. os cortes da feridas. mais nada.
mandei voltar a televisão para seu lugar, mas nunca liguei. a ilusão pode custar caro quando se está reduzida para sempre. havia apenas um único fiapo que me ligava a vida. queria ser uma estrela do mar. poder, enfim, trazer a vida meus membros decepados.
não me consola com seus cuidados e remédios comprados. só me espreme mais e mais para se sentir melhor. para se certificar de que ainda vive. apesar de mim. melhor que todos os outros filhos, todos dizem. pois eu a sinto pior. mais sádica. cruel. me virando de um lado pro outro para provar sua força de ninfa devoradora. pronta pra vida. a sinto pior. muito pior. que me deixasse morrer ou morresse de uma vez.
afinal, estou deitada na cama onde morreu nossa mãe, mas isso já faz muito tempo. suas lembranças me visitam, sua voz ainda mora aqui. quase todos os dias, redescubro seu cheiro em um canto inexplorado no colchão.
algumas noite, nós dormíamos sobre o mesmo colchão, sob o mesmo cobertor de lã azul, com o mesmo travesseiro alto que agora serve de descanso para minha cabeça, ela me olhava com a pouca força que lhe restava e me encaixava num canto qualquer.
não se assuste, meu bem. entenda-me. eu, vista assim de cima pra baixo, enquanto você me espreme, pareço menos criatura. estou me desfazendo enquanto você me olha com um olhar libertino de macho feito para cumprir uma missão. como se me autopsiasse. enquanto me cavuca por dentro, procurando por algo impossível de encontrar. quando você terminar, vai se levantar e se tornar automaticamente um observador desta cena. basta querer. ainda posso gozar apenas com o seu olhar. há poucos segundos, estava cego, afundado por entre as minhas coxas, acendendo meu centro, como a muito tempo não acontecia. precisa ser mais rápido. ela não vai nos deixar em paz por muito tempo. goze agora. rápido.
ainda posso sentir o golpe pesado de sua respiração, suas palpitações e suspiros que me acalentaram durante as madrugadas de inverno. posso senti-la viver deitada neste colchão. mas isso é falso. falso. ela já estava morta. a muito tempo.
o que ocorre é que agora não tenho mais pra onde ir. estou aqui, deitada de barriga pra cima, tentando encontrar formas de burlar a solidão. tentando esquecer que estou reduzida pra sempre. porque não estou deitada apenas por um breve período, como os enfermos a salvos de um hospital. estou dentro de um caixão eterno, do qual jamais poderei sair. também estou morta, mamãe.
uma mulher que não é mais deste mundo.
agora você já sabe como sou. já sabe como é a mulher sem membros que tanto dizem por aí. sou antes um ser vazio. por anos, tiraram os resquícios da minha epiderme, amoleceram os meus ossos, expuseram as minhas vísceras, me deixaram inteiramente vazia. mas nós ainda podemos ter um ao outro. pode me usar como sua oferenda. não olhe pra trás. não pense na minha condição. não vou a lugar nenhum sem você. fui aberta como um animal indefeso. retiraram os meus membros. e fiquei imóvel, trazendo a luz outras questões da vida. tornei-me o ovário mágico de todos vocês, mortais normais. sêmen, sangue, suor. pra dentro de mim. um buraco que nunca se preenche. tudo o que vocês trazem do mundo exterior, depositam em mim.
sinto mais a cada golpe do relógio nas horas do dia, e essa solidão não se reparte. é só nossa. ela a condenação. o motivo pelo qual estamos aqui. ficamos pobres e magros, como tudo que é velho. e a isso chamamos de destino.
eu sou a escolhida. é isso que me paralisa
eu sou a escolhida. vou gozar eternamente
interminável quietude. por que não simplesmente a morte. por que esse corredor eterno de lembranças? nunca saberemos. alguns são os escolhidos.
não penso em minha filha. não me importo com ela. seu destino vai ser cruel. mas esse tempo ainda não chegou. agora, pare de sonhar. agora, feche os olhos. pense em nós dois novamente. pela última vez.
estou acostumada a me sentir morrer um pouco a cada. pedaço por pedaço. meus olhos mal se fixam no presente e vão de uma recordação para outra.
acho que estou pronta. chegou a hora.
é possĩvel que deus exista. mas, a essa altura, do que importa? o mundo poderia ser mais generoso com minha existência? naturalmente, existem criaturas mais desgraçadas e, no último dia da minha vida, não faz diferença. sobrevivi e, apesar das aparências, faço parte da raça humana. isso que importa.
seria a vida esse amálgama entre virtude e pecado dançando sob as gerações? talvez, talvez.
epílogo:
está esperando o que para morrer?
a morte, mãe.
você acredita no inferno?
sim. acredito no céu e no inferno.
só acredito no inferno.
você está aí.
estou.
eu vi você morrer.
o que está dizendo, mãe?
estou dizendo o que acabo de dizer.