Um conto de Danilo Giroldo
Danilo Giroldo, 48 anos, é paulista e vive na cidade do Rio Grande, extremo sul do Rio Grande do Sul. É professor da Universidade Federal do Rio Grande – FURG e publicou os livros de poesia “Vala” e “O canteiro das flores de metal e o jardim de areia” em 2019 e 2020, além do projeto coletivo “De labirintos e espirais: sete poetas de Rio Grande” em 2021 e “Contos de Morte” em 2023, todos pela Editora Patuá. Publicou também a coletânea de poemas “Plexo solar” em 2023 pela Editora Penalux. Tem participações em revistas literárias, como WebTV, LiteraLivre, Ruído Manifesto, Literatura&Fechadura e Mallarmargens.
O conto abaixo está publicado no livro “Contos de Morte”.
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PEDAGOGIA DE ALTA INFLUÊNCIA
O cômodo vazio, com paredes de azulejo e nenhum móvel, faz com que os gritos pareçam eternos. Não é possível distinguir quais deles resultam da dor, do pavor ou da ameaça. Às vezes o grito se refere à dor em si que se torna insuportável. O sistema nervoso, como último recurso para cessar aquela profunda ameaça ao corpo, aciona as cordas vocais tentando gerar pena ou empatia no agressor. Outras vezes, a memória da dor horrenda age como prevenção à ameaça, numa tentativa vã de intimidar ou sensibilizar a agressão iminente. E há o grito como ataque, expressão corporal para subjugar o outro, o prazer que o humano sente em humilhar e dominar quem se busca controlar.
Naquela tarde abafada, com o sol baixando e produzindo sombras horizontais, o efeito acústico dos azulejos fazia com que todos os mecanismos que produzem gritos humanos se manifestassem. Amarrado à viga da janela de metal somente pelos punhos, aquele homem branco, grande, outrora tão seguro de si, agora somente gritava. Amarrar alguém com firmeza apenas pelos punhos posicionados para trás é bastante interessante. A aparente mobilidade traz uma certa esperança que vai aos poucos se transformando em frustração e ampliando a dor. Facas, alicates, serrotes funcionam bem, mas os dois astros destas sessões de tortura são a boa e velha marreta e o maçarico. Este último é imbatível, pois a dor da queimadura persiste mais que todas as outras. Os cortes sangram, trazem bom impacto psicológico, mas a dor não é tão duradoura. As pancadas logo se tornam hematomas latejantes e os inchaços também impactam psicologicamente, mas a dor aguda logo é substituída pelo incômodo. Já as fraturas e queimaduras são soberanas. O fogo sempre impôs respeito e fascinação aos seres vivos. Basta ligar o maçarico e as lamúrias, gritos, urros, tentativas de escape e todo tipo de manifestação começam imediatamente. Quando a chama toca a pele, o pavor e o desespero já alcançaram níveis inimagináveis.
O cômodo tem cerca de cinquenta metros quadrados, somente uma porta e uma janela basculante no alto de uma das paredes, com uma viga firme o suficiente para que as cordas façam o seu trabalho. Pelos cantos estão os instrumentos, nenhuma arma de fogo, e diversos ossos humanos dos que por ali já passaram. Nas paredes, as fotos mostrando rostos sorridentes de corpos que foram desmembrados naquele espaço. Caixas torácicas inteiras, fêmures, crânios, úmeros, ossos representativos o bastante para saber que são humanos e verdadeiros. O ano é 2082 e estamos na Fazenda Ranchim, distante apenas sessenta quilômetros do centro de São Paulo, em direção a Campinas. Essa é a sede da Liga Pedagógica de Alta Influência – LIPAI. Acreditamos na Alta Influência como única alternativa possível para cessar a violência crescente contra grupos historicamente oprimidos.
A tecnologia é a base das ações, exceto as sessões de tortura, que são tão rudimentares quanto eficientes. O modo de ação é bastante simples, apoiado principalmente no dispositivo desenvolvido pelo nosso líder. Um tecido invisível totalmente desenvolvido enquanto o conceito da LIPAI ia se formando e nossos colaboradores se integrando. Depois de uma startup fracassada, a formação da LIPAI deu concretude e finalidade àquela ideia genial. Um tecido inteligente, revestido por sensores e displays articulados que captam e reproduzem fielmente o ambiente do entorno de qualquer objeto, produzindo a camuflagem perfeita para a cidade. Capas para carros, mantas para os colaboradores e potentes sedativos são a sustentação para centenas de sequestros e desaparecimentos sem qualquer chance de elucidação pelo Sistema Central.
O branquelo amarrado, que agora sente o calor do maçarico na barriga, é o número 127. Ele já tinha visto nossos vídeos mostrando como se trata gente como ele, mas não deu bola, achou que era lenda, montagem. Acordou amarrado naquele cômodo bem decorado, com os nossos colaboradores portando belos e sonoros instrumentos. Devidamente apresentados, assistiu ao seu vídeo espancando dois meninos que andavam de mãos dadas, para entender por que ele estava ali. Depois, assistiu alguns outros para conhecer a nossa grande panela, em que cozinhamos os 126 anteriores, e os porcos que nos garantem ossos limpos para continuar decorando o cômodo. Quando começamos a trabalhar, ele já sabia para onde iria e, assim como todos os outros, começou a desejar profundamente virar comida de porco, mas a gente avisa que esse alívio leva tempo para chegar. Eles sempre têm esperança de que não dure tanto, mas acaba demorando, porque tem que se registrar tudo e, para que a Pedagogia de Alta Influência funcione e os vídeos fiquem bons, eles precisam gritar bastante.
Como eles ficam agitados no início, a marreta serve para quebrar logo os dois tornozelos, assim a mobilidade diminui e eles logo ajoelham. Aí entra a furadeira, que assusta mais do que machuca, os alicates, as facas e o senhor de todas as dores: o maçarico. Eles sempre acabam desmaiando, aí a gente espera acordar para continuar. Em geral, depois de três dias eles já estão com os cortes e queimaduras começando a apodrecer e vão ficando desacordados por muito tempo. Desorientados, já não gritam tanto, aí precisamos terminar o serviço. Corte na jugular e geralmente fazemos isso com eles desacordados para que não tenham nem este momento de alívio. Depois panela, fervura, desmembramento, mais umas 12 horas e a comida chega para os porcos. Quatro dias entre a captura e os ossos prontos para decoração, mais dois dias de edição do material e um para divulgar no cyberspace a partir dos nossos dispositivos descartáveis. Sete dias trabalhando para produzir material pedagógico de alta influência com boa qualidade.
Sabemos o que estamos fazendo. A violência precisa ser unidirecional, pois o Sistema Central jamais ruirá e nos manterá eternamente oprimidos. Entorpecidos pela superficialidade das relações, mantendo o consumo da mais diversificada indústria que já existiu e segmentados em frações sociais, cujo conflito retroalimenta o poder central, a violência contra grupos minoritários e incapazes de reação passou a ser uma necessidade para manter a estabilidade do conflito e do poder. Somente a guerrilha urbana pós-contemporânea pode desequilibrar a correlação de forças e inverter o sentido do medo e da violência. Os modelos indicam que os resultados são promissores. O ritmo de serviço está adequado e as agressões contra grupos minoritários estão cada vez menores. Confirmando-se as projeções, podemos dar um tempo entre 200 e 250 capturas. Já adquirimos uma sede no Rio de Janeiro, lá tem menos trabalho e uns três a quatro anos devem ser suficientes, depois vamos para Belo Horizonte e os cálculos indicam algo em torno de um ano e meio a dois anos. Uma década de trabalho que vai provar a potência da Pedagogia de Alta Influência e, enquanto isso, vamos alimentando nossos porcos. A qualidade proteica não é grande coisa, mas dá para o gasto.