Um conto de Davi Boaventura
Davi Boaventura é doutor em escrita criativa pela PUCRS e graduado em jornalismo pela UFBA. Publicou Talvez não tenha criança no céu (2012) e Mônica vai jantar (2019), livro finalista dos prêmios São Paulo de Literatura, AGES e Minuano. Trabalha com tradução, leitura crítica, edição de texto e fotografia. Nasceu em Salvador, em 1986.
Conto publicado no livro: Outro livro na estante: contos inspirados em músicas de Raul Seixas, da editora Mondrongo, 2015.
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Nem sei mesmo qual foi aquele mês
Os dois homens de paus flácidos nus deitados sobre o tapete enquanto fumam, respiram e se afagam e até brincam com os pequenos hematomas multicoloridos pelo rosto de um como quem diz eis um delinquente – pois é o que ele é: um de-lin-quen-te –, eles se gostam e são afáveis, e eles riem, embora a brincadeira seja meio apressada, e enquanto alcança um segundo cigarro o moreno mais novinho retoma a ladainha de querer saber o que o outro está pensando, ele quer muito saber o que o outro está pensando – a mão no cabelo para um cafuné, carinho pelas bochechas inchadas do amigo – eles só fumam quando estão no apartamento – mas o outro não responde, ou não responde de verdade, ele mente, e desconversa, trabalha em um cartório, é escrevente, e está preocupado com a burocracia da nova lei quinze ponto zero três, ele pergunta o que é que há de comer, mas ele pensa é no policial, ele pensa em cassetete, em bala, fuzil, exército, esperava o trem na Estação da Lapa – mesmo sabendo que estava sendo vigiado – quando o policial o abordou, pediu documento, dinheiro, ele não tinha, esqueceu, e então infinitos tapas no rosto, o policial não parava de bater, a pistola na mão, o policial queria era um boquete, e os dois se arrastaram ao banheiro com cubículo de lixeira suja melada, com ele ajoelhado no mijo, com o gozo com gosto de sorvete, depois ele correu para a casa do amigo, e não para a casa da namorada, e eles transaram, como transam ininterruptos há cinco meses, e deitaram no tapete para fumar, ele nunca vai contar para a namorada – não consegue sequer compreender o porquê de estar ali, um paradoxo, uma vergonha, um vício –, o moreno mais novinho sabe, sabe mas não entende, está apaixonado, oferece pão com mortadela ao outro, talvez tenha uma sopa, o moreno mais novinho se levanta sem pressa enquanto o outro continua deitado observando o apartamento que, claro, poderia ser um pouquinho maior e não ter uma cozinha tão estreita e mal ventilada, quer o pão?, quero, o moreno mais novinho sabe mas não entende, tem os seus próprios problemas com crises de insônia e ansiedade pois suas quatro últimas charges foram censuradas por conter conteúdo ambíguo apesar de serem bastante simples, piadas inofensivas, quer manteiga no pão?, ele passa a manteiga no pão com dificuldade porque a manteiga endureceu dentro da geladeira mas também porque seu cansaço é tal que o cérebro parece um cérebro servido à vinagrete – ele de fato desenhou, para a edição de domingo, miolos em uma bandeja de banquete, quase que descrevendo um sonho no qual os convidados devoram sua cabeça, esse sonho se passa em uma sala de jantar babilônica, no centro uma mesa redonda, uma mesa grande, lisa e limpa, de madeira sob um tampo de vidro, ao redor estão os pais e a irmã e o ex-namorado, o amigo também está, as paredes são chamuscadas, apesar de serem claras, são cheias de candelabros, luminárias, velas, os pratos brancos circulares de contorno dourado, os garçons, as garçonetes todas vestidas de fraque servindo vinho tinto, comem-se os nacos de seu cérebro em tigelas de porcelana chinesa e ele mesmo se mastiga até se sentir enjoado e se perceber decapitado, e imediatamente os convidados se levantam para um brinde, cujo movimento é interrompido pelos garçons, que se transformam em sofás azuis-retangulares deslizando até portas duras gigantescas com um orifício quadrado no alto por onde as bebidas saem, caindo como almofadas, para serem transportadas em seguida, com o maior cuidado, até uma banheira de gelo, enquanto sua cabeça oca observa a cena toda de dentro de uma lixeira na cozinha, que é como ele se sente quando suas charges são censuradas, cabeça oca, frustrado, recebendo o salário sem publicar desenho algum, a última – sobre um Mago – está afixada na porta da geladeira, ele abre a geladeira, guarda a manteiga, abre o armário, retira uma bandeja, a bandeja vai ao fogão com os dois pães recheados de mortadela, o outro está cochilando com o rosto dolorido inchado apoiado em uma almofada murcha, eles transaram – como transam, na verdade, há seis meses e meio –, mas desta vez foi diferente, meio tenso, insípido, porque os gemidos foram todos mudos silentes e os movimentos beiraram o mecânico exceto quando o moreno mais novinho pressionou as mãos contra o pescoço do outro, que é o que ele se imagina repetindo agora, ele se imagina ajoelhado por cima do amigo, as suas pernas prendendo os braços dele, o peso do próprio corpo imobilizando o corpo do outro, os dedos entrelaçados firmes pressionando a traqueia, asfixia, a vítima se debate, morre, o moreno mais novinho no entanto se senta bem quieto no sofá, com seu pé acariciando o pau já não tão flácido do dorminhoco, ele vai deixar o pão queimar de propósito até torrar por inteiro para o cheiro assustar os vizinhos e alguém tocar a campainha e encontrar os dois ali, o amigo acorda, não sabe o quanto dormiu, dormi muito?, não, só tirou um cochilo, o moreno mais novinho deita de novo no chão e eles se beijam, eles se gostam e são afáveis, apesar das reticências de um, apesar do ressentimento do outro, acho que sonhei contigo, é?, é, mas não sei, a gente estava no metrô sete quatro três, do resto eu não me lembro.
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(Fotografia de Yaniza Maputo)