Um conto de Enzo Fuji
Enzo Fuji é escritor e nasceu em São Paulo (2000). Publicou o livro de poesia depois que seja tarde antes que seja nunca (Editora Patuá, 2018, finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura) e O pretérito poético da casa invisível (Editora Patuá, 2022). Fez parte da antologia Adolescência e seus temores (Editora Jogo de Palavras, 2019). Venceu o Edital Cultural da Calourada UNICAMP (2020). Tem poemas nas revistas literárias Mallarmargens, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, entre outras. Participou das Oficinas Literárias do Marcelino Freire (2021) e do Assis Brasil (PUCRS, 2021). Agora publica o seu primeiro livro de contos, além de estar escrevendo o seu primeiro romance sobre a mestiçagem japonesa-brasileira.
O texto abaixo faz parte do livro de contos O pretérito poético da casa invisível.
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Socos ocos que não veem
“se duas criaturas de repente se desligam de tudo o
que é terrestre e voam para o inusitado, ou pelo
menos uma delas, e antes disso, voando ou
morrendo, vai à outra e diz: “faz-me isto e aquilo”, algo
que ninguém jamais pediu, mas que se pode pedir
apenas no leito da morte – será que o outro não faria…
sendo amigo, sendo irmão?”
Fiódor Dostoiévski
para Guilherme Kawachi e
Maria Victoria Vivacqua,
os dois primeiros leitores e me
ensinaram o que eu não enxerguei.
1. Verás, Pedro, ou não verás mais; assim como para enxergar é necessário: os olhos, a limpidez dos olhos e a imundície dos olhos; enquanto também para não enxergar é necessário: os olhos, a limpidez dos olhos e a imundície dos olhos. Amigo, é urgente arder com a sujeira do mundo, mas te admiro que, como sem entender as penalidades dele, você é alguém que buscou sua própria advertência e penitência na última vez que comemos açaí, sem granola, em promoção, o remorso estava lá, em Limeira. Eu te louvo de perto, Pedro, mas te digo: para você que alcançou a felicidade, você precisou entender foi de ti e, há pouco os segundos tão escassos, você precisava entender era de ti no tempo, com os olhos já cansados e frêmitos. Meu amigo, não precisamos nos render neste precário mundo, enquanto a gula dos humanos é extrema, e teus cabelos eram como riachos, eternos fios que, no ínterim dos fluxos encorpados, entendiam a curva dos teus desvios; e todos aqueles fios largos da tua adolescência, despencaram da tua cabeça, iguais às roupas do nosso varal e nas presilhas dos cabelos. Sem suspeitar disso, eu nunca soube: eu me separei de ti, você teve filhos lindos, e sua esposa Ana é elegantemente imensa de coragem. Apesar disso, eu quero te dizer, Pedro: não quero que você se vá, com esta tua doença.
2. Devo é te dizer, Pedro, que para cada palavra que tu me disseste, você me pegava as mãos: os pés, os sonhos e os medos; abraçava-me e protegia-me e restaurava-me, não me excedia: alertava-me quando eu te dizia: “Pedro, a vida não me interessa, a vida é só um objeto inútil que seduzimos outros; e esse é um dos meus dogmas”. Tu afirmavas, afinal, propalado de comedimento que, na vida, tudo nos interessa: “o que nos interessa é que, a partir de entendermos a morte, seríamos felizes”, objetos felizes; e, sobretudo, mensurava sua recusa à única verdade, enquanto, eu, indissociável, certa vez te odiei, pela nossa contradição, arrebitado com o nariz, acompanhando tua erudição. Hoje, eu enxergo, Pedro, o que eu não via: é de que você me ensinava o silêncio da vida, nas sacolas descartáveis e nos frangos baratos, alimentando a glória dos nossos passos; e eu te ensinava o marasmo do estigma, o ultrapasso de uma geração, como se a minha dor, e as minhas derrelições, fossem então o que nos unia. Essa vida que tu tinhas e essa força a que vinha eram só aspectos meticulosos de ti; Pedro, hoje eu enxergo: na vida, você foi o meu melhor amigo. Hoje eu enxergo que, embora a vida seja nossa inimiga, ela nos deu: eu e você.
3. Nos tempos de faculdade, nós urgíamos na casa alugada: amigo, a aula vai começar. Dizíamos: “que aula chata esta”. Eu dizia: “a Gisele é incrível”. E você dizia: “o Jorge é péssimo em didática”. Você, ali, Pedro, me dizendo: “o sofismo é só um vago arremesso”; e eu te dizendo: “não faças isso de alcançar a bola, mesmo que tua paz dependa disso, mesmo que você deseje mais que tudo somente segurar o mundo entre os teus dedos” e, eu ali, revendo o que dizia: “amigo, vá, porque só o arremesso na vida é o que nos interessa”. Meço este depoimento, nesta carta, imensuravelmente farta, e venho aqui é para te dizer, e veja que não devo nada: não devo nada a ninguém e não devo à razão e não devo à ciência. Afinal, com todo o meu cientificismo, eu vejo o seguinte: a arte da vida não é segui-la à risca. Devo é a mim e a quem me misturou dentro: quem me costurou as beiradas, em florescimentos. Por isso, somente devo a ti, Pedro, como um broto da alfazema da floricultura, derrubando gentilmente a nossa casa de Limeira, junto ao Pet Shop, com os cães mais solitários do mundo. Nossa casa de Limeira, construída no amarelo ermo. Construída com o céu quente. Igual ao inferno.
4. Eu te digo: eu não fui alguém inutilizável, meu amigo, em que a simbiose da vida com o tempo entorna o enjoo, aos elementos daquele ultraje, daquele teu soco no meu peito, quando me dissera que estava morrendo. Era teu gosto por UFC ali pungente. Não obstante, não apenas esse teu soco secundário, ainda houve o teu primário: socou-me quando eu te disse da glória de não ter tido filhos. Para ter paz ante às inconsequências da vida é inquestionável a perda do juízo com os filhos; quando te xinguei quando resolvera dizer-me em casamentos, já com a tua respeitosa Ana, e em uma vida equilibrada, argumentando que os anos se passariam ali, com quem tu vivias. Anos de bosta, meu amigo. E, ali, você socou-me, te dizendo a verdade; um sofista contra um dogmático entre, socos. A verdade é essa: um sofista nunca aguenta a alavanca trepidante da verdade. Eu nunca retribuí esses teus socos: a mim sempre me coube a realização de um fato, como o feto da ideia. Platão nos meus cotovelos, nas minhas mãos. O dono da casa alugada já dizia: “quando irmãos, sempre irmãos”. Eu completo: quando irmãos, sempre distintos, famintos entre socos ocos, eu usava roupas escuras, e você brancas.
5. A verdade, Pedro, é essa: eu te dava o que eu achava senil, as carcaças e os ossos: as espinhas do peixe; o feixe, nunca a luz, apesar de tu ser o meu melhor amigo, eu acreditava nisso, como se fosse a minha superioridade a você, mesmo se meu pai ardesse em febre eu nunca te contaria isso. Por que eu não te diria se você era a única pessoa que eu confiava? Lembro que eu anunciava: “amigo, quando formos adultos, tudo será equilibrado, e você poderá me abraçar, como um abrigo”. Agora, somos amigos-inimigos, divergentes e revelados. Você me deu: uma ecobag de escritores, ainda [guardo], um sanduíche de mortadela e uma tapioca de omelete. Eu te dei: um pote de requeijão, um lápis que precisava, e apenas uma mão. Eu te dei mais, mas agora não me lembro: Pedro, você continuava a dizer sobre o sofismo inadvertido e, ali, toda a tua obra de vida, embora fosse uma ação irreversível estar embalsamado nas ideias de uma juventude: a urgência das feministas, a esquerda juntando energias em nome da alegria das comunidades, a luta do povo em questões absolutamente banais, até na faculdade então e, agora, tu não enxergas: é possível encravar os dentes apodrecidos de um velho, a partir dessas ideias de um povo mesquinho, com pertences de descortínio e pronto, ainda quando se forma, na boca, o hálito racional. Está lá, revigorante. Diga-me, Pedro, então, se tu encontraste o teu fascínio, diga-me se isso não é a boca do hálito nacional, sempre falso. Diga-me se encontraste a efervescência espumante ante à clarividência de que o mundo vai excessivamente mal.
6. Devo é te dizer, quando você pôs uma serena verdade nos teus pés, e me disse: “para enxergar o que vê, é preciso querer também o ver”, igualmente ao copo favorito que tu trouxeste à casa alugada, copo do passado, muito transparente; Pedro, veja, temos que renunciar o corpo de nossos prazeres para, enfim, buscarmos outros. No fim da vida, depois de tantos anos, você entende que não houve outros, nem para mim tampouco para ti que nunca se revelou: não houve nenhum prazer quando eu cresci, quando eu te disse, que seríamos felizes, na época da faculdade. E por que você se casou com a Ana? Não éramos felizes, Pedro? O resto se quebrou. Vai ver ainda não me chegou à idade, meu amigo, de ver algum novo prazer se inaugurar entre a esperança e a dor.
7. No meu curso de matemática, e no teu de filosofia, eu deveria te dizer que encontrei uma solução, mas só hoje a entendo, depois de vinte e cinco anos: Pedro, se tu quiseres ser feliz, tu precisarás enterrar os teus mortos. Quantos? Você enterrou sua tia Marta querida, que andava com as mãos atrás e os ombros à vigilância. Além disso, eu sou um desses outros mortos; não os teus pais que viverão mais dez ou quinze anos, aguentando a agonia do filho só ter partido tão cedo. Não te digo, Pedro, que, para ser morto, é preciso estar enclausurado na terra ou esvaecido em poeira: te digo, amigo, que, para ser morto, é preciso apenas a força de sonhar que eu não existo. E isso: é verdade, Pedro, o pardieiro das tuas sombras, o encosto dos teus gritos e o leve odor de uma revolução: Pedro, para ser feliz é preciso sonhar com força.
8. Enquanto eu estiver pecando, lembre-se de mim: e, lembrando, reze por mim. Reze como o dono da casa alugada, em Limeira, com a bíblia à mão. Reze forte a Deus. Garimpe a coluna do descaso e a acidez do aviso. Borrife um monumento, sobre toda a minha lápide e, nela, estará escrito: “um morto sem verdade, como o meu amigo Pedro”.
9. Foi-se o tempo em que eu me considerava sedento por verdade; hoje, eu entendo o que você arremessava na parede: uma bola com força de viver. Que revelia sadia. Não é justo? Eu vivi com parcimônia, para em nenhum instante, desperdiçar essa bola. Amealhei a vida e eu a perdi. Qual é a conta que se fecha, entre mim e você? Quem viveu mais, sendo um sofista e um dogmático? A vida não é a mesma para os que andam salvos e aos que pecam? Eu pequei e você alguma vez me perdoou naquelas festas de faculdade, com os meus lábios beijando pessoas, mas os olhos sempre admirando somente você?
10. Eu sei que não será preciso mais me entornar de redemoinhos das tuas ideias, nem de empopar as tuas obsessões com a razão dos sofistas, nem das pressas contrárias à água do bebedouro da faculdade, nem de espoar o desejo, mas é que, nas precipitações, nos derretimentos e nas evaporações, eu já encontrei um equilíbrio, meu amigo, e foi através de ti que, em todas aquelas discussões, nós construímos um abrigo. Para sempre.
11. Lá, depois de formados, Pedro, sonhávamos que era o momento de sermos, de fato, mais amados. Você me abraçou, afinal, todo o teu abraço era esbanjador, como um relicário entre dois amigos, hasteando a pobreza da merda da morte, entre nós. Disse-me: “parabéns a nós, amigo, formados”. Depois de lá, empregos, artifícios, tempo cozido, você tendo os teus filhos, o Arthur e o Lorenzo, eu, velho professor, mal vezes relacionei-me, e o meu temperamento complicado com a família, a fuga dedicada, e o museu injustificável. Toda a minha verdade é essa: corra, se for necessário. Corra, porque, mesmo cansado, vai terminar. Você correu? Seus filhos correm porque o Lorenzo é um atleta nato. O Arthur tem cara de sapato, mas vai chutar bem a vida. Depois de lá, quantas vezes conseguimos castigar a monotonia dos dias e retornar à agressividade das nossas alegrias, enquanto arrepiávamos os pelos dos braços e sovacos?
12. A vida é a mais pura verdade, Pedro. A morte é a mais falsa irrealidade. Ela existe, meu amigo? Ela não existe para nós. Podemos vê-la, ela não existe para nós. O que quero te dizer é que, para ser um excelente sofista como tu és, tu me ensinaste que é preciso ser somente a tua verdade dentro da tua vida, pois ninguém é capaz de ser por ti. E isso eu também aprendi, alçando o arremesso na minha bola – de que, ao todo, todo mísero desespero é uma socapa, portanto, nós nos escondíamos da verdade por ter sua convicta lonjura, encharcados de sol em Limeira, aquele sol dos infernos, onde derretia até meu pão com mortadela, em que gostaríamos sempre de estarmos sem roupas, sem nada, transparentes, suados, mais pertos um ao outro. Os ovos estragados. As bicicletas enferrujadas. Os braços soltos. É que, para ser por ti, teria de ter a tua doença medíocre que, infelizmente, sem um desvio, ninguém seria como tu és. Ninguém: nem mesmo eu, que tanto te machucou.
13. Não é uma análise filosófica, Pedro, nunca eu fui filósofo, apesar de toda a minha bagagem acadêmica ter inferências aplicáveis em Sócrates, Aristóteles, Descartes. Para um sofista como tu és, ainda não sei como te dizer, se no passado ou no presente; para um sofista que tu és, com um pequeno pedaço de loucura é necessário articular uma vitória, em que renunciaríamos toda a decência e, desse modo, apanharíamos todas as falsidades em uma só verdade. Vejas lá: o racismo venceu em determinadas áreas brasileiras, o feminismo decolou menos na igreja, em que diziam, tratar-se de pecado; sobretudo, o fascismo nunca será derrotado. Por quê? Como fascista e como dogmático, nos basta entender que, mesmo distintos, ainda somos a mesma ânsia no vômito esparramado da instância da heresia. Fomos amigos pelo mesmo motivo: nos sentíamos sozinhos, e entendíamos que o Brasil poderia melhorar. A questão é no fascismo, pois é o único absolutismo de que, assim como um dogmático e um sofista, tudo se prende a única verdade: nas suas mensagens egoístas.
14. Quando me disseram, após a carreata movediça, do teu agravo, Pedro, do teu revolto choro e dos teus cabelos fugindo, eu ressabiado, compreendi: Pedro, ainda espero que o mundo entenda que, entre mim e você, existirá uma fumaça, entre o isqueiro e o cigarro, lá na casa alugada de quinhentos reais, em que tanto fumávamos, afugentando qualquer registro de silêncio; como qualquer névoa, entre épocas, é um artifício das pessoas, é um artifício de solidão navegar nas sombras, então, amigo, te peço, como um único gesto: me perdoa. Me perdoa, mesmo que nunca mais você leia esta carta.
15. Me perdoa, por não ter engrossado o caldo de cebola que comprávamos, por ter dilatado o mamão no tupperware, por ter empelotado aquele mousse de chocolate, e ter assado, ali, pela primeira vez: a oportunidade de eu ser feliz. Era que, para cada sorriso que você brilhava, eu só mantinha a falta de coragem; era que para esse sorriso infernal eu tinha toda a indiferença da minha família, na época que eu disse que eu gostava de homens. Me perdoa, por mais que nisso eu me torne o eterno pedinte, como um mendigo nas pernas de um patrício, por mais que me doa, mas nada me afunda mais na dor do que isso: o ardente chapinhar da tua febre, entre o nobre e o pobre, quando um dos dois apenas morre.
16. Veja, Pedro, ou não veja mais; assim, como para enxergar é necessário: os olhos, a limpidez dos olhos e a imundície dos olhos. Eu corri ao hospital, num breu, e, você, agora com os teus fios de cabelo raspados; como ainda era espaçoso o seu rosto magnífico na minha retina!, mesmo careca, você descortinou as nossas memórias: e eu não te disse! Como eu me exaltava e minhas mãos suavam frias, os meus lábios eram /pêndulos\. Verás, Pedro, que eu nunca te disse o quanto eu te amava, no chão e entre jalecos reduzidamente brancos, iguais à nossas roupas na Universidade. Quem as perdeu? Essa brancura não se dissipou quando o médico me disse uma porção íntima de palavras. Quem realmente perdeu os nossos cheiros misturados entre a vida e a morte?
17. Não verás, Pedro, nunca mais: o quanto eu te disse que te amava!, depois! que! o! médico! anunciou! de! que! o! sofrimento! havia! passado!. Pedro: corra, a bola já foi arremessada. Ana: corra, a bola já desapareceu. Lorenzo e Arthur: agora a bola está com vocês. Quando recebi o testemunho calmo, eu nos ouvi agitadamente em Limeira, você gritando, “corra, a bola já foi arremessada, Guilherme, venha me driblar”. Como cabia o meu nome na sua boca!, que, agora, em silêncio, afundava uma cova; então a morte era exatamente isso, como perder uma bola, igual chutávamos e isolávamos no vizinho pouco entusiasmado. Dessa vez, o seu nome que se enroscava nos arames do vizinho também perfurava a minha pele: “traga a bola logo, P-e-d-r-o”, abraçando momentaneamente o Arthur contra o meu peito, que descanso no silêncio lívido!, não me faltava habilidade, faltava-me apenas eu.
18. A verdade fracassada mais falsa é essa: Pedro, para partir, eu já te disse, é como não enxergar, então é necessário: os teus olhos, a limpidez dos teus olhos e a imundície dos teus olhos.