Um conto de Enzo Santana Macedo
Enzo Santana Macedo nasceu em Teresina (PI), passou a infância no Maranhão e atualmente reside na Bahia. Sempre apreciou a leitura, e por isso não demorou a querer escrever também. Tem contos publicados na coletânea “Cyberlogia: histórias cyberpunks” (Editora Cyberus, 2021), na plataforma digital Portal Aboio e vários outros guardados na mente. Pode ser encontrado no Instagram: @enzo_santana_macedo.
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Modo Acelerado
Ela demorou um pouco para perceber que vivia a vida mais rápido do que deveria. Não havia outro jeito, de qualquer forma. Os prazos dados pela escola onde estudava eram mais curtos que a paciência dos professores. Ela se sobrecarregava. Com as provas, e também com seminários-sobre-conteúdo-muito-úteis, trabalhos-impressos-e-não-mais-em-folha-de-pauta, feiras-de-ciência-avaliadas-por-gente-importante, avaliações-do-governo-cheias-de-oportunidades, excursões-até-deus-sabe-onde, atividades-avaliativas-sobre-as-excursões-porque-a-escola-nunca-dava-nada-de-graça-nem-mesmo-o-ensino, e etc. Um baita etc.
Os pais a puseram na escola mais difícil, queriam deixá-la o mais preparada possível para a vida, seja com a fórmula de Bháskara ou a data exata quando ocorreu a Revolução Francesa. O comprometimento foi tão grande que não só a matricularam na particular, como escolheram a mais cara, daquelas cujo nome começa com “Santo” e são tão arcaicas que ainda obrigam as meninas a usarem saia. E desde que ela estava no primeiro ano, disseram a ela, com voz bem séria, que era caro, mas era bom, e por isso ela também precisava ser boa. E ela, com o cabelo repartido entre duas tranças apertadas, obedeceu. E continuou obedecendo até depois de crescida, ao deixar o cabelo curto, com uma franja na testa pequena a um dedo de tirar sua visão.
Ela logo compreendeu que os pais não exigiam que ela fosse apenas boa. Um oito poderia muito bem ser um nove, e um nove poderia muito bem ser um 10. O que estava acontecendo? Estava prestando atenção nas aulas? Os livros não eram bons? Debatiam muito sobre isso, mas a conversa terminava quase sempre com o celular na sala de estar e sua dona estudando no quarto, em silêncio absoluto. Talvez fosse por isso que os loucos gritassem no hospício, nada para fazer, presos em camisas de força.
A mãe, tão bem intencionada, tinha feito uma agenda que comportava toda a sua infância. Escola sempre no turno matutino; de tarde, cursos de balé e inglês; de noite, fazer atividades, jantar e assistir 30 minutos de tevê, isso se não estiver muito tarde. Não perguntou se ela queria, talvez não tivesse tempo para isso, apenas chegava com o documento da matrícula e um pequeno panfleto sobre os cursos, nem nunca perguntou se ela queria sair um pouco do quarto para descansar.
E como toda criança, ela fez o que o instinto fazia melhor: absorveu. Tomou as cobranças da mãe e fez delas as suas. Quando ela tinha seis anos, sua mãe cobrou pela primeira vez: “Débora, você precisa melhorar sua letrinha”, e desde então não parou mais. As cobranças, próprias e dos seus pais, se mesclavam em sua cabeça. Era difícil saber o que ela queria e o que os pais queriam. Mas, afinal, toda pessoa, decente não quer ser boa? Os melhores são os que mais se esforçam.
Ao chegar em seus tempos de ouro, sequer saía de casa para garimpar, pois os estudos estavam mais árduos que nunca. Não era só questão de vestibular, porque garantir o próprio futuro era obrigação; os prêmios eram diferentes, eram uma vitória concreta, perfeita para ser exposta numa parede ou numa estante. As pessoas que entrassem em sua casa olharam para eles, com admiração, inveja, desdém ou insensibilidade. E, independente do que sentissem, pensariam algo. Sobre ela.
Ela traçou uma estratégia, distribuiu os prêmios em prioridades. Poderia começar com os prêmios da escola, isso lhe daria espaço para os prêmios do governo. Prêmios. Para isso, só precisava manter um cronograma de estudos e usar sua capacidade máxima.
Nem isso bastava.
Mesmo ocupando todas as suas horas livres com estudos, revisões e exercícios, não conseguia sair de segundo e terceiro lugar. Alguém saía na frente. Como conseguiram? Será que estudavam mais ainda? Parecia que, quanto mais árduo o esforço, mais fácil de ser superado. Ao esconder o celular, alguns alunos poderiam pesquisar as respostas na internet. Malditos.
Tudo bem, então. Ganhar já é bom; ganhar de alguém que trapaceia, usando apenas a própria capacidade, só afirma que a pessoa está num nível diferente. Mas ela também precisava de um novo estímulo. Trapacear, em alguns casos, é uma forma de justiça.
Foi aí que ela entendeu a utilidade da indústria farmacêutica: o que o ser humano não melhorava naturalmente, melhorava com um comprimido. A saúde, o corpo, a mente.
Quando passou a compreender como lidaria com isso, era meio dia, fim das aulas. Os estudantes estavam todos apinhados no pátio. Esperavam os pais, mas Débora já havia chegado na idade de ir e vir sozinha, tal como foi dito a ela. Apenas da escola para casa, é claro. Naquele momento em específico, decidiu que não iria para casa tão cedo, não até fazer negócios. Saiu da multidão de alunos até a parte de trás da escola, suja e sombreada. O tipo de lugar que não tem reformas a alguns anos e a coordenação nunca mostra durante o tour da matrícula. Dependendo do momento em que você aparece, pode encontrar menores de idade fumando, se pegando ou, nesse caso, traficando.
Ali, na frente dela, um cigarro de nicotina na boca, estava Klebinho, cujo nome verdadeiro era Carlos Lacerda. Ele usava um apelido para que as freiras não descobrissem quem vendia drogas e acabou transformando em alter ego com o tempo. Morava no bairro mais rico da cidade, mas se vestia e falava como alguém da periferia. Até seu uniforme de escola particular era customizado de forma mais tralha possível. Por muito tempo, foi alvo do desdém de Débora, até ela precisar dele. A coitada nem sabia por onde começar, e desenrolou o seguinte diálogo:
— Débora? Não sabia que tu era fumante.
— Não, credo. Tô aqui pra falar contigo.
Ele abriu um sorriso
— Aaaaah, quer fumar outra coisa, né?
— Não, né isso não.
— Tu não parece do tipo que usa droga pesada… — ele parou de fumar, pensou e se aproximou, um sorriso no rosto — tu quer o quê?
Ele devia ser uns 20 centímetros mais alto que ela. Ela não podia demonstrar medo.
— Ritalina.
Ele parou, confuso dessa vez.
— Que porra é essa?
— Um remédio.
— E eu tenho cara de farmacêutico?
— Se tivesse, saberia o que é.
Ela o irritou, não foi difícil perceber.
— Ah, vai à merda. — Ele virou as costas. Depois de uns passos, não tardou em voltar e agarrar seu braço. — Cê tá na maldade, né? Certinha assim…
Ele olhou ao redor. Quem sabe não estava com medo de que alguma freira lhe desse uma chave de braço e o arrastasse até a prisão.
— Eu tenho dinheiro. Me arranja a ritalina.
— Pra quê?
— Pra eu usar. Você é traficante, né? Achei que dava conta, menor.
Ela se sentiu meio idiota falando assim, mas precisava entrar no jogo dele. Klebinho a largou, para seu alívio, e saiu de perto.
— Vou ver o que eu faço.
Uma semana depois, ele estava com a ritalina, porque o pai de um amigo de um amigo era dono de farmácia, e esse tal amigo, por acidente, poderia pegar uns comprimidos por engano e colocar no bolso. O negócio era silencioso. Ela chegava, dava o dinheiro em troca da mercadoria e ia embora.
Então, todo dia antes de estudar, ela tinha um comprimido na mão. Na primeira, olhou por um tempo, até o pôr na boca junto de um generoso gole d’água. Depois disso, seu cérebro ficou a mil, e ela estudou sem sentir que estava estudando. O mundo todo era um vácuo, e só havia ela e os estudos. Conhecimento. Fluindo. Nela. Os dias passavam muito rápido, mas era bom, porque dava a sensação de estudar mais rápido. A gente aprende o que vive, e ela fazia ambos a toda velocidade. Não sabia com que frequência tomar os comprimidos, e também não tinha interesse em pesquisar. Um por dia, então. Ela engolia, junto da água, às vezes bebia tanto que se engasgava. Então limpava a boca na manga e se abaixava entre os livros. As únicas partes do corpo que se moviam eram os olhos e a mão, segurando um lápis ou uma caneta. Permanecia nessa posição até ser chamada para a janta. Depois, voltava para o quarto. Quando a mandavam dormir, botava uma toalha na porta, para que não vissem a luz acesa; tão rebelde. Às vezes, com o cérebro tão desgastado, ela bebia energético, depois café. Às vezes, ela misturava os dois. O impacto era forte, mas ela também tinha que ser. A cada dia, sentia que a vitória estava mais próxima. É isso que acontece quando temos certeza do nosso esforço.
Quando fez o Simulado do Melhor Aluno, se sentiu segura. Lembrava-se de tudo que havia visto. Em sua mente, não havia nada além das questões.
Esperou o resultado, e teve o prazer de não ficar surpresa. Ali estava ela, no primeiro lugar. Aluna mais esforçada.
Haveria uma premiação, onde ela poderia usar um vestido caro, o cabelo com um novo penteado, e passar alguma maquiagem elaborada. Os cuidados de uma adolescente num fim de semana qualquer são os mesmos feitos por Débora ao receber o Prêmio de Melhor Aluna. O uso contínuo da droga por meses a fio deixou seu organismo agitado, mas também confortado. Ela sentia um enorme incômodo no dia em que não punha o comprimido na boca, seguido daquele gole de água que fazia descer com leveza. Ainda que com dores na cabeça, uma orquestra de barulhos nos ouvidos, os poros sempre exalando suor, a secura na boca e tudo ao redor em constante giro, o remédio a fazia se sentir melhor.
Quando punha o comprimido na boca, era porque sabia que precisava-daquilo-aquela-coisa-a-agitação-o-calor-no-peito-as-batidas-constantes-no-coração-a-respiração-acelerada-a-sensação-de-que-poderia-correr-pelo-mundo-a-vontade-de-gritar-o-frescor-os-gritos-internos-tudo-isso-dentro-dela-de-uma-só-vez.
A única vez em que esse sentimento falhou foi no dia mais importante.
Pode até parecer ridículo. Um prêmio de escola, todos reunidos na quadra, ouvindo a ladainha de diretores, coordenadores e professores e os ganhadores em pé, no ponto de ir embora. Débora não tem essa visão. É uma espécie de iniciação para ela, o primeiro prêmio de muitos. Você poderia achar péssimo, mas ela se sentia muito bem com o próprio esforço. Sim, era só a arquibancada da quadra, várias pessoas impacientes, mas ela era a mais arrumada, e todos iriam vê-la no centro, onde ela iria proferir um discurso sobre seu esforço e incentivo. Algumas fileiras embaixo, estava Klebinho. Ela começou a gostar de chamá-lo assim, era uma ótima forma de debochar. Ele nunca ia entender ela. Seu nome foi chamado, seguido por uma salva de palmas enquanto se levantava. Fez o seu discurso tal como imaginou e aproveitou a festa com triunfo.
Essa foi a fantasia perfeita criada em sua cabeça. Na realidade, a ritalina a deixou tão alterada que ela desmaiou. Sua mente parou junto com a salva de palmas, e ela sentiu a dureza do chão antes mesmo de abrir a boca. Nem conseguiu segurar o prêmio.
Acordou numa cama de hospital. O pai estava trabalhando, mas a mãe não saiu de seu lado. Mesmo atordoada, percebeu que não ficou inconsciente por muito tempo, já que a mulher ainda estava com a roupa da premiação. Percebeu também que era vista com pena, o que é quase um sinônimo de decepção.