Um conto de Flávio de Araújo
Flávio de Araújo, caiçara, filho de uma família de pescadores da Praia do Sono – Paraty/RJ. Em 2008 publicou pelo Selo Off Flip seu livro de estreia (Zangareio) participando como autor convidado em diversos festivais no Brasil e exterior. Tem poemas publicados em coletâneas, sites e revistas literárias, entre elas Jornal de Poesia, Germina, Washington Square Review (EUA), Jornal de Poesia, Revista Mānoa – Hawaii e e Fleurs des lettres (República Popular da China).
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Paradoxo matrioska
Somos Svetlana, abissais, filhas de capitão de submarino, portanto não atentemos a Nikolay fazendo cara de náufrago diante da comoção da turma toda vez que a professora Consuelo Cubana cita o acidente. O idiota não sabe o que é ter o pai sem flutuabilidade, e logo Nikolay que sempre se mostrou diluído de importância, um rapaz leve, jamais imersível, praticamente uma pedra-pomes. A gente sabe, ele quer nos tornar cativas por detrás daqueles dentes esverdeados, cheios de serrilhas. Precisamos apenas mensurar um fato: não sabemos lidar com idiotas bonitos e porosos.
Não permitiremos que nos definam, sobretudo porque até agora não perdemos o pai definitivamente, embora assentado no leito marinho há oito dias, exatamente a cento e vinte e sete metros de profundidade no gelado mar de Barents, o que explica toda essa gente ensopada nos abraçando, deflagrando nossos cabelos. Eu sei Svetlana, já conversamos, mas seja franca, assim que soubemos do pai afundado você foi a primeira a se vitimar, e sei lá eu se para se autopromover ou não, enfim, já passamos por isso, lembra? Hoje teremos aula de física, estamos curiosas para saber por que a mando de um novo professor a professora Consuelo Cubana pediu para que Milenka, a dulcíssima, trouxesse um gato para a classe. Ora, certamente para mostrar quantas vidas o bicho possui.
Você me força a lembrar, o curioso de termos o mesmo nome se deu quando nossa mãe havia decidido Svetlana, crente que viríamos numa versão única de nós duas, entretanto ela só veio a descobrir que estava grávida de gêmeas após o parto. Ela teve complicações e, enfim, só você sobreviveu assumindo oficialmente o nosso nome. Foi confuso, agora até interessante, mas certamente seria esquisito escolher um nome diferente apenas pelo espanto que se deu; por outro lado ficaríamos pasmas se do nada eu me tornasse Natasha ou Valova apenas para nomear o metro quadrado do meu sepultamento, por isso pense na sandice de “temos que escolher o nome de quem enterraremos”, enfim. Já conversamos, eu não abro mão do seu nome, eu também sou Svetlana. A que ponto chegamos hein, trazer um gato para a sala de aula…
Veja agora esse sujeito apalitado, nem esperou ser anunciado e vem entrando com essa caixa enorme que deve caber uns quarenta quilos de arroz e não sei você, mas no fim da aula bem servirá para encaixotar Nikolay. Não ria como os outros, qual a graça em carregar uma caixa de papelão? O professor nos prende a atenção por seu silêncio, possivelmente quarenta e poucos anos, certamente um desses abnegados que enxugam o degelo de Kruschev. Após física o que teremos, aula de tiro? Sim, tiro. Veja por exemplo esse nosso país, Svetlana, não somos apenas mais um entre os estados-satélites de Moscou. Sim Svetlana, nosso protagonismo não se fia mais nas kalashnikovs, e se a revolução cheira a pólvora a nossa não mais. Prestemos atenção ao professor, ele difere dos demais, aliás, precisamos entender a vida sem nos chocarmos com o muro que nos cerca, e há sim um muro fora do muro, compreende?
O professor pegou o gato de Milenka com jeito, o bicho gostou do trato. Você gosta, de afagos não, Svetlana, de gatos? Não muito, eu sei. Ele fala de mecânica quântica e aparentemente não quer se estender em mil explicações, certamente é para isso a caixa. Ouça-o, ele começou a falar do Paradoxo do gato de Schrödinger, é para isso o gato, entende? O que é um paradoxo, você está se perguntando e eu lhe digo que é a possibilidade de ser e não ser ao mesmo tempo. Como as bonecas matrioskas, uma dentro da outra.
O professor tem sorte, nunca vimos um gato tão dócil. Ele nos mostra um frasco com um líquido verde, quase fosforescente, afirmando ser um tipo de gás altamente tóxico, e faz o tipo engraçado fingindo jogar o conteúdo em nós. É característica sua, minha não, de rir de gente sem um pingo de graça. Há coisas sim em que somos exatamente iguais, mas obviamente não combinaríamos vermelho com vermelho ou coisa parecida. Acontece que para entendermos o paradoxo é necessário nos aprofundarmos, falo da gente, esqueça o gato, Svetlana, o gato gato.
Ele nos convida a fazermos um semicírculo em torno da caixa. Não, Svetlana, não foi o destino que pôs o idiota risonho na sua frente, pura aleatoriedade. Teatralmente, com cuidado e perícia, colocou ele sobre a mesa um pequeno estojo, e com uma pinça retirou uma pequena pastilha de cor grafite. Numa torção de dorso nos apresenta o elemento radioativo, como você já havia entendido ao ver no estojo o símbolo de um ventilador preto de três pás sobre um fundo amarelo. Eu também acho Svetlana, isso está cada vez melhor.
Veja, ele também trouxe um contador gêiser, e vem você perguntando o que é isso, ora Svetlana, estamos em plena Guerra Fria, basicamente é o termômetro do nosso país. Também retira um pequeno martelo de sua pasta, como no experimento de Schrödinger. Você notou que há um encaixe no contador gêiser para a ferramenta, o professor explica que é peça de um gatilho que, quando acionado, faz o martelo desferir um golpe. E assim ele segue explicando ao colocar a pastilha radioativa, o detector de radiação, o frasco com gás venenoso e o martelo dentro da caixa, e claro que inclusive o gato. É apenas um experimento mental que eles encenam, Schrödinger quando o idealizou não fez mal a bicho nenhum, o que teoricamente pode não ser bem assim e você precisa ser desprendida, sobretudo sóbria, Svetlana, papai tem relação direta com isso tudo.
Você desconfiava que o gato fugiria na primeira tentativa de encerrá-lo dentro da caixa, não é? Eu sei, a liberdade é da natureza dos vivos, você é bem esperta. Quem conseguir pegar Marx acabará com essa bagunça, e tente rir um pouco contra a dureza das coisas, veja a mim; agora se observe. O nome do gato? Ora, poderia ser Lênin, Andropov, mas Milenka preferiu Marx, um nome não precisa dar significado exato a todas as coisas. Já havíamos combinado, não vou chamá-la de inconsequente dessa vez, já foi o tempo que discutíamos, mas quando pensar em se dissolver em choro por não ter sido a natimorta da história, leve em consideração se é isso mesmo que eu quero, enfim. Conseguiram colocar o gato e agora o professor explica que a caixa deve ser selada hermeticamente. Claro que no interior há oxigênio, diferente de mim ninguém vive sem ar. Agora fica fácil entender o experimento do físico húngaro e não seja estúpida Svetlana em antecipar qualquer determinação de causa e efeito, não é sobre poder respirar ou não.
Assim que o detector de radiação identificar qualquer partícula subatômica no ambiente da caixa, automaticamente alavancará o martelo que golpeará o frasco com a substância letal que por fim matará Marx. Trágico? Não. O curioso é que ninguém sabe se isso acontece ou não, ou seja, o que determina se o gato está vivo ou morto é a verificação de um observador fora da caixa, portanto Marx está vivo e morto ao mesmo tempo. Milagre? Mecânica quântica, Svetlana, apenas um prosseguimento do absurdo das coisas. Controle-se, não deixe que percebam que há relação direta conosco, mamãe não tinha como saber de suas Svetlanas.
Por outro lado, se pelo menos tivesse existido o observador, que poderia estar presente na simples aferição de um exame que nos identificasse dentro da mãe, certamente eu estaria viva, como se não bastasse agora papai dentro do encouraçado. Portanto diante disso terei uma opinião contrária à sua sobre o destino do nosso capitão, e se pelos caminhos escusos do desígnio você permaneceu com mamãe, parte que apenas lhe coube, agora pela parte que me cabe eu quero que papai esteja morto dentro daquele submarino. Capitão Blavatsky sempre falou entre sussurros sobre o último projeto do império soviético e o sucateamento da frota no norte, a que mais sofreu cortes orçamentários, e possivelmente esteja nisso o ponto em declive na relação entre mim e papai apenas, ele sempre foi dado a abalroar-se. De outro modo o que você preferiria hein, ficar a vida inteira contando míseros copeques e condenada a mastigar okroshka eternamente? Mas você nunca ligou para isso, eu sei, se importando em ter mamãe ao lado, sempre incapaz de perceber a diferença entre escola e gulag. Mas eu me importo e é por isso que espero que ao abrirem o submarino, joia da classe Oscar, o comandante singre aos mares de cá.
Diante do exemplo, o professor abre para perguntas e o tosco do Nikolay promove sua imbecilidade perguntando se o gato consegue miar dentro da caixa; talvez Nikolay consiga latir, o timbre frouxo de sua voz bem facilita, por que o que é um gato senão um gato? E não há mais o que desvendar: a caixa fechada, o submarino; as ogivas, como realmente são, o elemento nuclear; o contador gêiser, lógico, o sistema de detecção de radiação a bordo; o martelo pode ser qualquer parafuso oxidado sob pressão não calculada e o gás venenoso é a água inundando todos os compartimentos.
Você está pensando no papai ou no gato? Eu sei bem, me desculpe, não farei mais esse tipo de abordagem, entretanto a gente acaba pensando em ambos, nosso capitão sempre teve muitas vidas. Disfarce, o professor nos olha e nos olhando assim fará com que todos nos olhem, tarde demais, resta então sermos firmes e sóbrias ao responder o que quer que seja. Provavelmente ele é mais um desses comedidos que relacionam esperança a piedade, o que é por demais piegas. Diga você, Svetlana, por acaso temos um periscópio saindo por detrás da nuca? O diretor-geral entra na sala como um pavão informando que a elite de mergulhadores da Marinha está a ponto de romper a escotilha principal e assim resgatar os sobreviventes, e é no exato momento em que Milenka questiona sobre termos uma elite que você surta e desmaia.
Acorde, estupidez alguma Svetlana, eu também considerei a melhor saída. Abra os olhos, se ice, você está segura na enfermaria. Abra os dois olhos Svetlana, temos uma questão imprescindível e tampouco você pode forçar qualquer distanciamento. Considere a mecânica quântica, nosso pai é um morto-vivo.
O grande problema é que os mergulhadores, cumprindo a função do observador, desencadearão uma série de cataclismos apenas pelas simples constatação. Ao abrirem a “caixa” se darão conta das causas diversas, e para nós pouco importantes, que levaram o submarino ao fundo, por exemplo: a alta concentração de peróxido de hidrogênio usado como propelente dos torpedos teria provocado o vazamento, e em contato com o oxigênio essa substância gerou uma explosão de vapor de altíssima temperatura, causando pane energética e pondo o submarino em profunda escuridão e pior, com escassez de ar. Sendo assim sinto lhe dizer Svetlana, papai estará morto.
Mas, considerando o paradoxo do gato, mesmo que a alta temperatura tivesse reduzido drasticamente os níveis de oxigênio, a tripulação daria início ao protocolo Kamenev de sobrevivência, convencionando o uso de cápsulas de superóxido de potássio que geram oxigênio através de processo químico de absorção de dióxido de carbono. Nesse caso é uma questão óbvia de poder ou não respirar. Como sabemos disso? Papai tinha nos falado quanto tempo um submarino pode ficar submerso.
Sim Svetlana, os mergulhadores encontrarão o capitão vivo agarrado à última bolha do escafandro.
Não irmã, papai estará morto assim que os mergulhadores observarem pelas entranhas do colosso que as cápsulas de superóxido estavam contaminadas com água salgada, desencadeando uma explosão que acabou por consumir o pouco oxigênio que restava aos sobreviventes.
Mas agora deixe de pensar nisso, se ajeite, a enfermeira entediada com seu desmaio sinaliza que se levante ligando a televisão. Viu, não há como fugir, o assunto do noticiário é sempre o mesmo. Mas veja agora, estão prestes a abrir a escotilha distante do silo de mísseis. Não dê ouvidos Svetlana, você se lembra daquela vez na velha casa quando, para nos assustar, papai se pôs a miar feito um gato escaldado?