Uma prosa poética de Grazielle Mendes
Grazielle Mendes é jornalista e mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas. É natural de Belo Horizonte (MG), onde mora. É servidora efetiva da Rádio Assembleia, da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Autora do livro “Notícias da velha nascida” (Edição da autora, 2022). Também publicou poemas nas antologias “Escrita de Si” e “Rotas de Fuga” (Edições e Publicações, 2021) e “Poesia contra a Barbárie” (Escola Cidadã, 2023), além das revistas Marítimas e La Loba.
@grazimendessoares
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Grifos
A quem (não) interessar possa.
Existem rastros de mim. Pistas de quem fui nas últimas quatro décadas. Tudo bem, é exagero, no máximo duas, porque, de fato, as primeiras senhas se perderam. Não sei onde começam, mas garanto que, de um ponto qualquer em diante, eles estão lá. Não, não em fotos, estão escritos mesmo, ou melhor, rabiscados. Pode esquecer, tem nada na ordem e está tudo picotado.
Pelo menos, as trilhas estão guardadas no mesmo lugar: em minhas velhas estantes.
Em cada livro que li, há trechos de minhas rotas. Nunca consegui resistir à tentação de sublinhar páginas, desenhar círculos, asteriscos, exclamações, interrogações, chaves e reticências. Às vezes, meto o bedelho com verbos mesmo.
Nunca me emprestem livros, sou incapaz de me conter, vou riscá-los. Até tento fazer isso com lápis, para ser menos profana, mas acontece de não ter um à mão. Já caneta, sempre ando com alguma, ainda que perdida num fundo falso.
Eu sei que já existem formas moderníssimas de se fazer isso sem sacrilégios impressos, mas não gosto de ler em tela. Não vou perder tempo de inventar que não enxergo ou que minha cabeça dói – não é verdade. Não gosto, ponto. Sim, sou daquelas saudosistas chatas que falam sobre a textura e o cheiro do papel. Pode revirar os olhos.
Também sou apegada às minhas manias literárias, como passar a página sempre pelo cantinho superior, esfregando com cuidado os dedos para verificar se só virei uma e, mesmo assim, baixar os olhos disfarçada- mente para checar os números e ter certeza de que estou no lugar certo.
Tenho consciência de que é uma patética contradição na minha débil dedicação em destruir menos o planeta. Já aceitei esse fracasso.
Por que eu grifo? Sempre digo que um dia vou folhear o livro de novo e me surpreender relendo o que sublinhei. Nunca fiz isso.
Poderia pensar numa resposta mais reflexiva e lembrar as minhas conversas animadas com autores e personagens, minhas dúvidas sobre suas certezas, minha inveja de suas decisões, minha sobrancelha levantada para seus mistérios, meu espanto diante de seus rompantes ou simplesmente, meus lábios repuxados para baixo, admirados com vocábulos tão inventivos para nomear belezas ordinárias.
Ou poderia ser um pouquinho mais poética e descrever a sensação de colher palavras pelo caule para enfeitar a jarra no meio da mesa e assistir o destino das pétalas que murcham na água turva ou voam para baixo dos móveis, onde talvez, um dia, serão redescobertas secas.
Mas isso não acontece. Nunca me lembro daquela frase perfeita que li, no momento que preciso. Minha memória é péssima e eu só me recordo do espírito da coisa.
A verdade sobre os meus grifos é boba: tenho compulsão por riscar o que eu gosto quando leio.
E não importa mesmo o motivo, o que interessa (ou não) é que andei confessando aos meus livros muito mais do que deveria. Deixei pegadas de derrapagens, curvas, encruzilhadas, ciladas, atalhos errados. Está quase tudo lá, como espectros de meus tempos.
Ainda que tenham se perdido, meus pensamentos começaram a mergulhar nas histórias dos outros junto com meus primeiros óculos, então, já há uma respeitável trilha para a tarefa inútil de decifrar o emaranhado de linhas da minha cabeça. É verdade que alguns trechos estão incompletos, por ter acabado a tinta, quebrado a ponta ou sobrado preguiça.
Talvez eu não devesse contar isso. Mas não vejo perigo. Caso alguém se interesse pelos meus grifos, não vai ter acesso à fonte – a não ser quem divide estantes comigo, claro. É que além de não pegar emprestado, também não empresto livros. Tenho um bocado de ciúmes deles.
Pensando bem, refazer esse caminho serviria para nada e ninguém. Nesse caso, fica aqui registrada a informação apenas como atestado. Quando eu virar a última página da minha vida (espero que seja fantástica!), já está protocolado:
deixo toda minha travessia para eles,
os únicos capazes de decifrar minhas pistas,
parceiros inseparáveis de vida inteira,
meus rabiscados livros.