Um conto de Iara Sydenstricker
Iara Sydenstricker (@iarasydescritora) é escritora, roteirista e arquiteta. Publicou contos em antologias e uma coleção de livros infantis sobre crianças e cidades e escreveu vários programas audiovisuais. É professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na Cidade de Santo Amaro. Nasceu em São Paulo, morou por muito tempo no Rio de Janeiro e hoje está em Salvador. Nos lugares por onde andou (re)conheceu muitas das Marias que compõem seus contos do livro Marias de pedra e mel (Penalux, 2023) e permanece encontrando inúmeras delas todos os dias, fora e dentro de si mesma.
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Maria da Conceição
Fidalga, nasceu para brilhar entre nobres de sangue azul. Nos salões era ladeada pelos pais, um par de condes, e arrancava de homens e mulheres suspiros de inebriamento e tesão.
Conceição poderia viver como quisesse, não fosse a guerra que a lançou entre as pernas de revolucionários. Embarcou num navio de carga graças a um marinheiro encantado por sua beleza. Em troca, pediu-lhe o corpo. Ela deu. Como das outras vezes, sabia que seu sagrado hímen se reconstituiria.
Assim para sempre virgem aportou no Brasil, onde encontrou maravilhas, brutalidades e fome. Decidiu fazer uso de seus dotes. Após servir a muitos homens, concluiu que tinha missão financeira e abriu um negócio. Com amor, pelo amor e para o amor, acolheu mulheres aptas a garantir-lhe a vida. Suas donzelas logo se tornaram conhecidas, ainda que o foco do bem-sucedido negócio fosse ela, a empresária cujas horas de dedicação aos clientes eram dez, vinte ou cem vezes mais caras do que as de tabela. Sem culpa, tinha como óbvia a diferença de preço, estabelecida pelas taras de clientes que fantasiavam possuir suas próprias mães e irmãs enquanto a descabaçavam. Conceição entendia de machos e de seus desejos reprimidos, dentre eles o de desvirginar mulheres de suas famílias sem maculá-las.
Nesse mundo dividido entre homens e funcionárias, gozo não encontrou. Limitava-se a servir e a ser servida enquanto dirigia sua casa do alto de um trono feito por um amigo ourives. Nas poucas vezes em que saiu de casa, observou que cresciam as aflições dos transeuntes e o número de automóveis, na mesma proporção em que escasseavam as abelhas. Notou, ainda, que as mulheres murchavam. À exceção de uma moça, pele marrom e cabelos engrandecidos por um turbante amarelo. Apaixonou-se e vendeu a casa de prazeres.
Uma vez juntas, plantaram flores, acolheram as abelhas e viveram à farta na excêntrica colmeia que ergueram. Um dia, a Imaculada Concepção deu à luz uma criança. O filho tardio de todos os homens com quem esteve? Não. Esse nasceu sem a mancha do pecado original, mas foi o único a desvirginá-la para sempre.
Um menino rei. O menino Jesus a enfeitar a vida do casal até o fim.