Um conto de Irka Barrios
Irka Barrios (@irkabarrios) é Doutoranda em Escrita Criativa. Venceu os Prêmios Brasil em Prosa (Amazon/Jornal O Globo, 2015) e Odisseia da Literatura Fantástica (2022). Seu romance Lauren foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020. Escreve para a Revista Ventanas, Ministra Oficinas na GOG, atua no Coletivo Mulherio das Letras e é mediadora do Clube de Leitura Escuro Medo. Organizou as coletâneas O Novo Horror, Vigílias, Tudo soma zero e In Corpa
O conto abaixo integra o livro Júpiter Marte Saturno (Uboro Lopes, 2022).
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Flores domesticadas
Há uma cidade, mais ou menos igual às diversas cidades que conhecemos, de vista, de imaginário, de lembrança. É de pequeno porte e abriga, em seu perímetro urbano, casas pequenas e grandes, algumas um pouco maiores, com segundo piso, sacada e uma área externa que circunda toda a construção oferecendo vista do nascer e do pôr do sol. Em frente às calçadas das casas há ruas largas que se cruzam em ângulo reto. Nos canteiros, crescem arbustos com galhos altos o suficiente para tocar a rede elétrica e os proprietários das casas ostentam jardins com flores domesticadas. Plantas selvagens não são permitidas. As mais rebeldes, que insistem em ultrapassar cercas e invadir espaços privados, são arrancadas pelas raízes e descartadas. As varandas são limpas, limpíssimas, e o hábito de lavar as calçadas está disseminado. A terra fininha e tão vermelha, típica do solo local, deve ser expulsa todos os dias. Na área central da cidade, há uma construção maior, com uma porta dupla de madeira e diversas janelas com vista para a praça. É o lugar da lei. Do lado oposto, também com vista para a praça, há a igreja de torre única e campanário. Duas vezes por dia, o padre convida a comunidade a conduzir suas esperanças e súplicas até ali. À direita da torre, existe outra construção, maior e mais espalhada. É o lugar da cura.
Dez e quarenta e cinco da noite, a maioria das janelas está fechada. Uma, entretanto, permanece com a veneziana aberta. Os vidros dessa janela, um conjunto de oito, separados por caixilhos de madeira, estão abaixados. Nada se ouve, tudo se vê. Há uma sala, não muito grande, com uma mesa branca e duas cadeiras. Ali dentro, um homem conversa com uma adolescente. Ela chora, ele se mantém distante. Ele fala, ela ouve. Com gestos incisivos, ele explica, rasga um papel timbrado, desenha, mostra, desenha mais. Ela olha, abaixa a cabeça, encolhe-se. Ele se dirige até uma estante de livros, pega um atlas, mostra as figuras. Explica mais coisas, outras coisas, gesticula, aponta para o desenho. Ela arregala os olhos, de onde saltam as lágrimas. Ele para, se afasta. Alcança um lenço de papel que retira do bolso. Olha para o relógio de pulso e para o da parede. Abre a porta e grita para o lado esquerdo, onde deve ter um corredor. Surge uma senhora ossuda com o quepe da enfermagem. Eles conversam, apontam o dedo para a garota, sem se preocupar com o choro intenso que convulsiona seu corpo.
Só então enxergamos o trajeto de um animal rastejante, um molusco de corpo viscoso e a carapaça pesada demais, enorme demais para sua base. Ele trafega pelas sobrancelhas do médico (agora, sim, sabemos que o homem é médico) e desce até os bigodes. Demora-se um pouco, desliza para a lateral da cabeça, circunda a orelha e entra. Permanece oculto enquanto o médico raciocina e fuma e raciocina. E é então que o equilíbrio se altera. O médico se torna irritadiço, como se uma dor de cabeça dos infernos o atingisse de repente. Ele dá tapinhas nas têmporas, tantos e com tanta insistência, que uma coisa voa para fora de seu ouvido oposto. É o bicho. Mal aterrissa, ele reprograma sua rota. Dirige-se para o pé da enfermeira. Sobe através do salto fino do sapato (tudo se passa numa época em que enfermeiras trabalhavam de salto), arrasta-se pela lateral da perna, pela barriga bem espremida dentro da saia justa, aninha-se no peito. Parece que vai ficar ali, mas não. Dá meia volta e retorna ao piso pelo mesmo caminho. Arrasta-se, por fim, em direção à garota. A gosma que seu corpo produz deixa uma trilha cintilante. O bicho se adere ao tornozelo da mocinha, ponto de partida para a nova exploração. Sobe pela perna, mete-se embaixo da saia e desaparece. É a vez dela se inquietar. Remexe o corpo, ajeita-se na cadeira sem encontrar posição confortável. Estica e encolhe as pernas, levanta e encara os dois. Do movimento de seus lábios, uma palavra é perceptível. Ela diz veneno. Toca no ventre, pressiona-o e repete: veneno.
Médico e enfermeira param de conversar e a olham com expressões de surpresa e desgosto. A mocinha se impõe, encara os dois. Lê-se a palavra “filho” em seus lábios. Os lábios da enfermeira também se movem, produzindo a palavra “embrião”. “Bebê”, a garota diz em resposta. Alterado, o médico ergue a mão e a cena se congela.
O médico sai, o bicho retorna. Ele escorrega pela perna da garota, desce ao piso e se posiciona no centro da sala, próximo ao pé da mesa.
A garota desaba num choro diferente, sentido, envergonhado. A enfermeira se aproxima, agora com a intenção de acolhê-la. Não é um acolhimento sincero, não há afeto. A enfermeira abraça e se deixa abraçar, mas mantém a postura altiva e o olhar vazio durante todo o tempo em que permite o contato. Olha para o relógio de parede e se desvencilha do abraço. Sentam-se, as duas. A enfermeira abre um caderno ou apostila ou livro de contas onde há planilhas com preços. Acende um cigarro enquanto dá novas explicações. Há um cinzeiro de cristal, sextavado, mas a enfermeira pouco o utiliza. Descuida-se o tempo todo e a maior parte das cinzas cai no chão, perto do bicho.
Chorando, a garota, retira um bolo de dinheiro da bolsa. O olhar da enfermeira se ilumina por um instante mínimo. Logo ela readquire a postura profissional, conta o dinheiro, dobra as notas e as guarda numa gaveta à chave. Vai até a porta e grita. O médico ressurge, aparentemente recomposto. Ambos tocam os ombros da garota e se deduz a palavra “certa” no ar.
Saem da sala, a enfermeira na frente, o médico depois, e a garota por último.
Logo atrás, o animal rastejante e seu visco pegajoso.