Um conto de Isabela Sancho
Isabela Sancho (@isabela.sancho) é escritora, ilustradora e psicanalista. Autora das plaquetes Quem fala em seu nome, Encavalave e Urna de pólen (com co-autoria de Flora Nakazone), do livro infantil A invenção das Isabélulas, dos livros de poemas As flores se recusam, A depressão tem sete andares e um elevador, Monstera, Olho d’água, espelho d’alma, e do livro de contos A nudez extinta.
O conto abaixo integra o livro A nudez extinta.
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Da mesma família
Era uma missa longuíssima, como eram longuíssimas todas as missas a que Joca era arrastado pela sua mãe. Não importava se tinha nascido um priminho ou se tinha morrido um tataratataravô: aquilo que o padre dizia parecia servir para ambas as coisas e ambas as vezes nunca ter fim.
Dessa vez, havia um homem e uma mulher se casando — “É sua prima Marcela!”, explicou a mãe entredentes, quando o filho coçou os olhos e falou que não conhecia aquela gente e não sabia por que queriam ficar lá na frente de todo mundo e nem por que ele mesmo tinha que ficar ali olhando.
Sentado no banco por oitenta horas seguidas, o menino balançava as pernas, intercalando-as cada vez mais rápido, como se assim pudesse fazer o sermão apressar o passo, até levar um tapa no joelho — “Sossega!”.
Mas ele continuava testando várias táticas de aceleração do tempo: pisar nos próprios laços do sapato para precisar amarrá-los de novo e poder olhar a igreja de ponta-cabeça; ficar unhando o assento, bem juntinho da sua perna — não aquela que encostava na da sua mãe, mas a do corredor —, até conseguir riscar um jota quadrado na madeira; virar, hiper veloz, a cabeça para trás, e pegar no pulo quem tinha espirrado; olhar os siriris zanzando nos lustres com lâmpadas que não eram velas de verdade, apesar de imitarem o formato; ver se encontrava algum velho que cochilava, soltava um ronco ou dava uma pescada e voltava para o prumo depois de engasgar com o próprio pigarro; contar quantas velhas usavam um xale preto ou cinza ou bege por cima do ombro e o mesmo penteado de topete para trás, até, enfim, parar e prestar atenção àquela que estava fincada bem na sua frente.
A vó Mercedes também tinha sido vestida de convidada. Apesar de ter quase duzentos anos, seu cabelo continuava preto. Os fios penteados ficavam todos duros e grudados entre si. Se a cabeça virava para um lado, todos viravam com ela e voltavam com ela para o seu lugar, bem-comportados.
Se Joca tentasse grudar ali um chiclete, talvez a goma escorregasse. Se cuspisse uma bolinha de cola e papel, como fazia com a caneta oca do Lucas na escola, talvez acontecesse a mesma coisa. Agora, ia imaginando se dava para quebrar aquele cabelo — o Lucas tinha ensinado como fazer um estilingue, e era fácil arranjar pedrinhas —, até perceber que o pescoço da avó tremia. Sim, sim, tremia.
A cabeça da vó Mercedes parecia estar ligada a uma tomada.
Devia ter alguma coisa acontecendo lá dentro. Chegou com o nariz perto da sua nuca — tão perto, mas tão perto que dava para sentir o cheiro do fixador de cabelo, uma mistura de florzinha com veneno. Prestes ao peteleco, com a ponta do dedo indicador engatilhada no polegar, sentiu seu cangote ser puxado de volta pela mãe. “É que a cabeça dela não para de mexer!”, e levou um tapa na boca. “Fica quieto, ela toma um monte de remédio!”
Joca queria retrucar: “Grande coisa! Eu também tomo infinitos!”, mas a mulher já se levantava e o fazia se levantar, para depois se sentar de novo e fazê-lo se sentar de novo.
Na missa, todos também se ajoelhavam juntos e enfileiravam juntos e falavam juntos. Joca aproveitou um dos “Graças a Deus!” para agradecer, bem grandão, quando achou que a missa tivesse finalmente chegado aos segundos finais. Mas demorou mais um milênio até a mulher e o homem casados começarem a andar pelo corredor entre os bancos, puxando atrás de si o cordão de pessoas que ficaram em pé ao longo de toda a missa, e depois o resto dos convidados.
Não fosse o pouco espaço entre o garoto e as outras pessoas, apostaria corrida sozinho até em casa. Queria chegar e fazer qualquer outra coisa, nem que fosse só ficar andando e conversando com os pés, ou então assistir ao Fantástico Mundo de Bobby.
Ele não fazia ideia de que, quando a missa acabava, o casamento não acabava: agora vinham as fotos.
Do lado de fora da igreja, sua mãe levava a vó Mercedes até um dos cantos próximos à porta de entrada. Não queria que ela ficasse no meio do caminho, e a foi empurrando com uma mão em cada ombro, como se fosse uma cadeira. “Segura firme a sua bolsa. Fica aqui e não se mexe.” Então, para baixo: “E você não desgruda dela! Eu vou tirar a foto lá e já volto”.
“Por que a sua cabeça fica assim tremendo?” — perguntou Joca. A avó estava virada na direção das pessoas da foto, mas parecia que as olhava sem ver de verdade. Como quando uma das irmãs da mãe deixava a tela ligada na TV Aparecida e a punha sentada na frente a manhã inteira, depois a tarde inteira, até dar o horário de colocá-la para dormir.
Mas Joca tinha certeza absoluta de que sempre estava passando outra programação bem no fundo do seu cérebro.
Na verdade, naquele exato minuto, a cabeça dela não estava mais tremendo, só ficava fazendo que sim e que sim, bem devagar, que sim e que sim. “Com o que você fica concordando, concordando, concordaaando?” Mas ela nada respondia. Por uma única vez, pareceu prestes a pronunciar alguma palavra, mas acabou apenas mordendo o próprio lábio.
Desistindo de puxar outro assunto, o neto segurou uma franja de seu xale, badalando para um lado e para o outro: “Dóóón! Dóóón! Dóóón!”. Aí sim ela se voltou para o menino: “Você pode me fazer um favor… benzinho?”. Tinha uns olhos esbranquiçados. “Só uma coçadinha aqui na minha canela. Aquela mulher me deixou aqui com essa meia, e pinica que é um horror… E eu não posso agachar, por causa do meu joelho.”
Perto do chão, Joca achou as duas pernas muito amarelas e meio esburacadas e com cheiro de quartinho do fundo, mas coçou, coçou mega rápido e, com um pulo, zarpou de volta. “Que belezinha, você é mesmo… filho de quem?” Olhava para seu rosto, piscava, até algo bater no cocuruto do menino, bagunçando o seu cabelo de um jeito chato: “Joca, você não para quieto um minuto, hein?”. Era uma prima mais velha — Mirela ou Mariela, o nome? A garota mal tinha fechado a boca, e já foi acotovelada por uma tia — devia ser a mãe dela —, que cochichou alto: “Shiu! Ele tem déficit!”.
Joca lembrou que, numa noite daquela semana, ficou achando que, se a mãe pudesse, abaixaria o volume dele até o último pauzinho ou, mais fácil, apertaria o mute, ou mesmo desligaria o filho inteiro com um zap! do controle remoto. Tinha mandado que ele parasse, por um minuto, de ficar fazendo perguntas, ou melhor, que chispasse da sala para o quarto, que àquela hora ele nem devia estar acordado. Mesmo assim, o garoto tinha conseguido ver por último, de rabo de olho, algo no Especial de Natal que o encafifou.
“Você acha que Deus é tipo um Papai Noel?” — sem esperar pela resposta da avó, ele foi explicando o seu ponto: “Eu acho, o Lucas acha, o Vinícius não sabe se acha. Tem toda uma lógica: com os dois a gente tem que ficar agradecendo e pedindo e obedecendo. Um mora no alto do céu, o outro mora longe no Polo Norte e voa no céu. A Lourdinha da catequese disse que, antes de dormir, é pra gente imaginar um velhinho bondoso, de barba branca. Eu imagino com um daqueles camisolões azuis. Eu acho que só a cor da roupa deles que deve variar”.
A cabeça da avó seguia os recém-casados, que agora acenavam enquanto entravam em um carro comprido, e, sem tirar os olhos da despedida, ela perguntou: “Você acha que eles são da mesma família?”.