Um conto de Joana Rocha
Joana Rocha nasceu na ilha Terceira, Açores, em 1980 e vive em Lisboa. Licenciada em Serviço Social, pós-graduada em Migrações, Transnacionalismo e Etnicidades e em Mediação Familiar. Trabalha na área social e de saúde desde 2004, exercendo funções de coordenação, assistente social e supervisora.
Apaixonada por literatura, tem publicado contos em plataformas e revistas digitais. Em 2023, foi uma das vencedoras da 3ª edição do Prémio Literário Luís Vilaça, com o conto “O céu de Gracinda”.
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Incenso
Alberta não aguentava mais rezar ao Santo António e à Nossa Senhora de Fátima, nem acordar sobressaltada durante a noite e olhar-se ao espelho para ter a certeza que estava viva. Muito menos podia continuar a refugiar-se em casa da amiga Florinda. O homem estava ali e não havia meio de ir para outro prédio, para outra rua e de preferência para o país dele.
Depois de um ano de rezas, o homem continuava a viver no 3º andar, mesmo por cima do seu apartamento. Sentia suores frios e arrepios na espinha, sempre que de sua casa o ouvia falar numa língua que não entendia. Com quem poderia falar se vivia sozinho? Com quem tinha tanto para falar naquela língua estrangeira? Sabia perfeitamente que chegava sozinho, pois espreitava-o todas as noites pelo buraco da fechadura. O que fizera até aquela hora? Com quem se encontrara? Que desgraça espalhara por Lisboa? O que podia ainda fazer de noite? Era por isso que, depois de o ver passar, Alberta ajoelhava-se em frente aos Santos. Rezava cinco ave-marias e um pai-nosso para assegurar proteção para a noite que a esperava.
Nem mesmo a carta anónima que Alberta enviara ao senhorio, alertando para uma ameaça terrível dentro do prédio, surtira efeito. O senhorio nem pusera lá os pés para perceber o que se passava.
Uma vez, mesmo com o coração a querer saltar pela boca, subiu até ao 3.º andar, encostou a orelha à porta, atenta a algo suspeito. Ouviu o vizinho a dizer coisas estranhas e quando sentiu um cheiro quente, explosivo, correu pelas escadas ofegante, fechou-se em casa e ligou para a polícia, mas não tardou a desatar aos berros “Sr. Agente porque é que quer saber o meu nome? Não basta dizer-lhe que temos no prédio um daqueles homens perigosos, daqueles que usam uma toalha enrolada na cabeça e que usam vestidos compridos. Daqueles que aparecem na televisão a matar pessoas e a roubar os nossos trabalhos?” Sentiu-se tão indignada que desligou o telefone na cara do agente.
Para Alberta bastava! Passara um ano desde que vivia naquele inferno e não aguentava outro ano igual. Depois de muito puxar pela cabeça encontrou uma solução. Não queria resolver o assunto daquela forma, mas não via outra alternativa. Já que nem os santos, nem o senhorio e nem mesmo a polícia a ajudavam, tinha de se desenrascar por outras vias.
Sempre se considerara uma boa pessoa, crente, mulher de armas e boa cozinheira. Fiava-se nisso para ganhar coragem e por em marcha o plano elaborado. Estava decidida, ia fazer uso das suas armas e fazer um bolo para adocicar o vizinho e, tentar recolher provas da sua atividade criminosa.
No dia seguinte de manhã pôs o avental e agarrou-se às tigelas, à batedeira antiga, e ao fogão. Cantou como quando tinha vinte anos e até deu um passo de dança pela cozinha. Estava um dia bonito, não se lembrava da última vez em que se sentira tão bem.
Ao início da tarde o bolo estava pronto. Sentou-se no sofá. Ligou a televisão e adormeceu. Acordou com a saliva a esgueirar-se pelo canto do lábio inferior. Abriu os olhos e no pequeno ecrã viu polícias, luzes e o barulho das sirenes. Desligou a televisão, queria aproveitar aquele novo dia sem ver as notícias aterrorizadoras do costume.
Abriu o álbum de fotografias e deliciou-se com as recordações de quando o seu José era vivo, do casamento de ambos, dos filhos pequenos, dos filhos grandes e dos netos.
Lavou, estendeu e apanhou a roupa da semana. Limpou a casa ao som de um CD que comprara no bailarico do Santo António do ano anterior. Modernices que até lhe davam jeito. Sempre gostara muito de dançar, mas desde que o seu José se fora, só ia a Alfama no dia do Santo António.
Às seis da tarde em ponto, hora a que o vizinho chegava a casa, estava de olho arregalado atrás da fechadura. Quando o viu passar com a toalha enrolada na cabeça e o vestido branco comprido estremeceu.
O coração bateu aflito, mas estava decidida em levar o seu plano até ao fim. Tirou o avental com florzinhas, penteou-se em frente ao pequeno espelho da casa de banho, borrifou-se com um perfume velho que tinha guardado e pegou no bolo.
As escadas de madeira rangiam com o peso do medo que carregava junto com o bolo. As pernas tremiam, o suor desaguava no pescoço. Pensou mais do que uma vez que deveria voltar para trás, que era errado, que iria arrepender-se. Mas uma parte dentro dela, obrigou-a a continuar.
Já em frente à porta do vizinho, de onde emanava o mesmo cheiro quente e estranho do outro dia, só pensava onde raio se tinha ido meter! Mas inspirou e expirou com força. Tocou à campainha.
Ouviu uns passos aproximarem-se devagar e por fim a porta abriu-se. O queixo caiu-lhe até ao pescoço. Tinha à sua frente, o homem, sem toalha na cabeça, com umas calças de ganga e uma t-shirt azul bebé. Parecia uma pessoa normal. Moreno, de olhos verdes, grande e bonito. Sem conseguir articular uma palavra, Alberta entregou-lhe o bolo e o homem agradeceu. Em português o homem convidou-a a entrar. Ele falava português! Alberta estava abismada, receosa acedeu, era a oportunidade de descobrir provas que o incriminassem.
Entrou atrás do homem que sorria. “Nem parece um homem perigoso”, pensou Alberta. Sentiu o cheiro quente mais forte e mesmo com medo da resposta perguntou o que era. O homem explicou que era incenso.
Sentaram-se à mesa. “Já a tinha visto aqui no prédio, mas à hora que chego raramente encontro vizinhos. Fico muito feliz por ter vindo oferecer-me este bolo. Tem um aspeto delicioso!” Depois de dizer isso o homem levantou-se, foi à cozinha preparar chá e Alberta percorreu a sala com os olhos em busca de algo que confirmasse as suas suspeitas. Estantes recheadas de livros, mantas coloridas cobriam o chão, fumo que saia de uns pauzinhos, uma televisão numa mesinha, fotografias do homem com uma mulher bonita. “Provavelmente a esposa”, pensou um pouco aliviada. Mas rapidamente esta sensação foi substituída por outra que lhe provocou um nó na barriga. Um livro com letras esquisitas. Levantou-se e dirigiu-se à estante. Só podia ser uma prova. Pegou-lhe. Não entendeu nada do que estava escrito, mas era um livro bonito. Folheou-o em busca de algo e nada. Colocou-o na prateleira e resolveu espreitar debaixo do sofá.
Quando já estava ajoelhada de rabo empinado e com a cabeça enfiada debaixo do sofá, o homem entrou. “Precisa de alguma coisa?” Alberta deixou escapar um grito abafado. Com o coração na boca levantou a cabeça. O cabelo todo despenteado fez o homem sorrir. Ela riu nervosamente. “Foi o meu brinco que caiu!”. Alberta não usava brincos. “Se calhar perdeu os dois.” Afirmou o homem. “Posso ajudá-la a procurar.” E nisto afastou o sofá. Alberta fechou os olhos com força, com medo do que podia descobrir. “Como eram os brincos?” Perguntou-lhe o homem. Ela abriu os olhos e nada viu além de mantas bonitas. “Se calhar deixei-os em casa. A idade não perdoa. Posso ir à casa de banho?” O homem indicou-lhe o caminho.
Uma vez na casa de banho, suspirou e tentou acalmar-se. Abriu o único armário e encontrou cremes, perfumes e outros produtos masculinos. Olhou em volta e nada de suspeito.
Desiludida, regressou para junto do homem, que a aguardava com um chá quente. Sentou-se na mesa e juntos beberam-no, comeram bolo e conversaram em português. O homem afinal era português. Nascera em Aljezur e para seu espanto, era filho e neto de algarvios. Perguntou-lhe porque usava aquelas vestes. O homem explicou que se convertera ao Islão, para poder casar com o amor da sua vida.
“Onde está a sua mulher?” Perguntou Alberta cada vez menos tensa e mais entusiasmada. O homem ainda não casara com a mulher. Ela vivia com os pais. Iam casar no verão. O homem sorriu.
Alberta falou-lhe do falecido José, dos filhos e dos netos. O homem falou-lhe da infância no Algarve, contou-lhe que viera para Lisboa à procura de emprego e agora trabalhava numa mercearia Iraniana em Arroios. Ajudava a família da sua futura esposa, para que percebessem que era um homem de valor. Rezava mais do que Alberta, cinco vezes ao dia, sempre virado para Meca. Alberta estava excitada e curiosa com aquelas novidades, quis saber mais sobre aquela religião e o que era Meca.
Quando viu as horas nem queria acreditar. Eram dez da noite! Como podia ter passado tanto tempo, desculpou-se por ser uma fala-barato. Despediu-se do homem e agradeceu.
Desceu as escadas sentindo-se ridícula e incrédula com tudo o que vira e ouvira. Como tinha sido tonta. Como podia ter-se deixado levar pelo terror que invadia as notícias todos os dias, só porque não conhecia o vizinho, que pelos vistos era bem simpático. Passara um ano com medo de algo que não existia. Mas agora pelo menos estava aliviada. Voltou para casa feliz e dormiu o sono mais descansado daquele ano.
Os primeiros raios de sol acariciavam a face de Alberta, que deitada pensava ainda na conversa insólita da noite anterior, quando ouviu bater à porta. Um pouco zonza levantou-se, vestiu o robe e arrastou as pantufas até à porta. Abriu-a. Dois jornalistas, microfones, câmaras de televisão e perguntas. Alberta ficou em choque, fechou a porta com força. Estaria ainda a sonhar? Logo quando decidira não ver mais notícias, o que estava a fazer a televisão em sua casa?
Encostada à porta conseguiu ouvir. “É verdade que fez queixa do bombista à polícia? É verdade que não vieram cá ver o que se passava? Também nos disseram que avisou o senhorio da ameaça aqui no prédio, deram resposta?”
Alberta não queria acreditar no que estava a acontecer. Como é que aquilo estava a acontecer? Ligou a televisão na esperança de perceber algo, quando viu o seu prédio nas notícias e de seguida imagens do vizinho do 3º andar a ser enfiado no carro da polícia. Não queria acreditar.
Ligou para Florinda a contar-lhe o que acabara de acontecer. A amiga pareceu feliz por ouvir a voz de Alberta. Contou-lhe que no dia anterior, às oito horas da noite rebentara uma bomba no metro. Tinha-lhe ligado várias vezes para a avisar, mas como não atendia o telefone, decidiu por em marcha o plano que tinham feito juntas durante aquele ano no caso de uma emergência.
Alberta estremeceu, mas nada disse. A amiga continuou. Contou-lhe que foi até à esquadra e esperou até de madrugada para ser ouvida. Disse-lhes tudo sobre as coisas estranhas e suspeitas que ela, Alberta, lhe confidenciara ao longo daquele ano sobre o vizinho.
“Contei-lhes tudo e aos jornalistas também, que o homem era marroquino e que levava pessoas suspeitas para sua casa e até disse que tu tinhas visto algo que parecia uma bomba em sua casa. Sei que nunca lá foste, mas nestas coisas é como ir à urgência no hospital, se não exagerares ninguém te dá atenção. Só podia ser ele Alberta. Ninguém quis saber mas eu disse-lhes e desta vez apanhamo-lo.”
Sentindo-se desmaiar, Alberta sentou-se no chão e com o telefone caído no colo acendeu um pau de incenso que o vizinho lhe oferecera na noite anterior.