Um conto de Laura Marafante
Laura Marafante. Atriz, escritora e revisora de textos. É mestra em Letras (UEL), especialista em Literatura Brasileira (UEL), especialista em Arte e Educação (Esap), bacharel em Artes Cênicas (UEL) e licenciada em Letras Português-Inglês (Unicesumar). Lançou seu primeiro livro, Navegando pelo Lixo, aos 12 anos e teve dois contos infantis selecionados para compor a Coletânea Sesc de Contos Infantis do Paraná, sendo eles: Caminho de passarinho (2018) e Quem é que quer café? (2021). Em 2020, sua crônica A sós com o vampiro foi publicada na Revista Cult. Em 2022, teve o conto Lindonéia adeus dará selecionado pelo projeto Relatos de Mulheres para virar filme literário. Nesse mesmo ano, publicou o conto Sede no livro Cidade Fria.
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VENDE-SE
Não era a primeira vez que eu estacionava naquela esquina e encarava aquela placa com dizeres estridentes sobre a terra nivelada, anunciando a procura por um novo proprietário e por uma nova construção. Vinha acompanhando cada estágio de putrefação de um corpo que já foi casa e passou a ser apenas memória em cima da terra. Era mais um dia de um confronto aparentemente silencioso, mas por dentro eu vasculhava formas de devolver, no mesmo tom, a ofensa para aquilo tudo.
Aquele espaço coberto de terra habitando a esquina era absurdamente ridículo, de tão pequeno. Não era possível que, naquele ambiente minúsculo, cabia tudo aquilo que já vivenciei com minha mãe um dia.
Em outros tempos, como os que vivi ali, eu certamente estaria cavando com minha pequena pá amarela o meu próprio e secreto portal para o Japão. Acreditei piamente que chegaria lá. Até que, em uma manhã de maio, experienciei minha primeira frustração da vida (pelo menos a de que me recordo): uma terra de tom arroxeado se meteu entre minha pá e meu sonho de criança. A cor da dor, do golpe, da surra, da pancada. O Japão e a pá foram abandonados. Jamais minhas unhas se encardiram tanto quanto nos dias em que me agarrava à terra como se tivesse poder sobre ela, uma disputa que sempre foi em vão. Sempre achei admirável a inocência das crianças e o modo como elas abraçam causas perdidas e creem veementemente na capacidade de reanimarem muros cinzas com suas pequenas mãos coloridas de tinta.
E lá estava eu outra vez. Imóvel e pensativa diante da placa e sujando os sapatos na terra, numa disputa incabível, disso eu sabia, com toda a lucidez da vida adulta de tom arroxeado.
Nada mais era possível retornar àquele lugar. Não só paredes e móveis se foram, mas memórias também transitavam por um universo desconhecido e inacessível, como todos os mortos. Não importava o quanto eu agarrasse à terra, o fato é que o passado é sempre um território inabitável e inalcançável.
Uma cadeira velha, imponente e debochada atreveu-se em existir bem ali no meio. Seu estofado era esverdeado, e a espuma saltava pelos rasgos. Completamente deslocada de qualquer contexto de que eu conseguia me lembrar. Busquei reconstruir cada canto em minha mente, usufruindo do meu talento de arquiteta. Redesenhei os azulejos floridos da cozinha, a lata de bolachas amanteigadas escondidas no alto do armário, o taco solto no chão da sala, o mofo no lado esquerdo da penteadeira do quarto, uma mancha de sei lá o que dentro da banheira, o rodapé quebrado no corredor, a marca do vaso de planta na varanda. Mas não. Nada. Nem sinal de uma vaga lembrança desse objeto dividindo o mesmo espaço que minha mãe e eu. Definitivamente, aquela cadeira não sabia o que estava fazendo ali. Era uma intrusa em nossa história.
Aos primeiros sinais da garoa, decidi partir, lembrando-me do que Dalton Trevisan escreveu sobre a chuva dar de beber aos mortos… Entrei no carro e fui embora, deixando todo aquele nada a sós.
Já fazia parte da minha rotina, há muito tempo, assistir a minha antiga casa definhar e apodrecer… um cadáver que ficou a céu aberto. Trezentos metros cúbicos de terra e absolutamente nada, nem ninguém, capaz de enterrá-la.