Um conto de Leila Guenther
Leila Guenther é autora de Partes homólogas (Reformatório, 2019); Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial, 2015), selecionado no Programa Petrobras Cultural e finalista do Prêmio Jabuti; e O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial, 2006), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e editado também em Portugal (Nova Delphi). Participou de antologias dentro e fora do Brasil.
O conto “Romã” foi publicado pela primeira vez em 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial, 2012), traduzido para o inglês para a Wasafiri Magazine, volume 30 (2015) e integra o livro de contos Partes Homólogas (Reformatório, 2019).
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Romã
Lia descansa o copo de uísque sobre a mesinha de canto. Contempla suas mãos, que o seguram, suas unhas de formato quadrado, apesar da delicadeza dos dedos, pequenos, as manchas incipientes. E contempla também uma coisa, como se estivesse refletida nas paredes da sala, que vagamente poderia chamar de amor. Ou conceito de amor. Acha que isso vem à sua cabeça por causa da música que pôs no aparelho de som, uma música antiga, que Lia julgava, quando jovem, enigmática: falava do amor como uma coisa concreta, que se podia vestir, lavar, passar adiante. Há uma meia hora, quando procurava uns documentos, deparou com uma carta. Uma carta que não enviou. Na verdade eram várias cartas nunca enviadas a um mesmo destinatário. E a música era a que gostaria de ter lhe cantado quando ainda podia. Porque há certas sensações, pensamentos, vislumbres que só se fazem claros quando referidos por imagem, ou por som, num poema ou numa letra de canção.
Foi por causa das cartas, do destinatário e da música que se ela se lembrou do uísque.
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Tentou disfarçar o amargor e a vontade de contrair o rosto numa careta quando ele lhe estendeu o copo. Aos primeiros goles já se sentiu zonza e com vontade de vomitar. Assim seria durante a maior parte de sua vida. No entanto nada disso a impediria de ceder ao apelo da entrega profunda que só o álcool proporcionava. Era o preço que se pagava por desejar estar sempre o mais distante possível de si mesma. Mas ali, naquele dia, o que Lia fez foi apreender progressivamente o apelo dos sentidos, de uma forma contraditória: ao mesmo tempo em que tudo se tornava mais intenso, seu corpo ficava mais insensível. Sozinha consigo, que era como sempre estivera, ela o observava e tentava descobrir se o que via era um truque ou ele mesmo. Por um momento, desejou que ele estivesse mentindo, porque estava farta de sinceridades. De pessoas falando a verdade.
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Lia passava a maior parte do tempo enfurnada em livros sobre os mais diversos assuntos e desinteressada de tudo que fosse real, prático, funcional, inclusive das aulas. Era capaz de ser arrebatada pelos mistérios de Uma breve história do tempo e passar os cinquenta minutos da aula de Física entediada, mal conseguindo disfarçar o alheamento.
No último ano, estava decidida a não tentar nenhuma faculdade. Não suportaria ter de estudar por mais quatro ou cinco anos algo de que não gostasse, disse, na classe, quando perguntada sobre os planos futuros pelo professor de Psicologia numa aula sobre orientação vocacional. E, também, acrescentou, não tinha talento. Os alunos à volta não compreendiam. Todos ali falavam de metas, de carreira, de futuro, esse tempo que Lia não tinha a menor ideia de onde se localizava. Talvez apenas ainda não tivesse descoberto do que realmente gostava, conjecturou o professor.
Talvez nunca descobrisse, ela respondeu.
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O professor de Psicologia pedira que escrevessem um texto no qual se identificassem com uma fruta. Lia escolhera a romã pelo que acreditava ser negativo: algo desprovido de graça quando se olhava por fora, e o que poderia ser belo, por dentro, se revelava apenas um amontoado de caroços sem sabor.
Quando ele devolveu sua redação, ela veio com um comentário: “A romã não é propriamente uma fruta. É uma infrutescência. Na Grécia, simbolizava o amor e a fertilidade, e era consagrada a Afrodite. Estava nos jardins do rei Salomão, pela beleza de sua flor. Não se deve desdenhar da romã, de sua conformação difícil, dividida, e do que deixa, a custo, entrever em seu interior.” Por último perguntou se ela sabia o que era um anagrama.
Não. Ela não sabia. E ela, que lia tanto, também não sabia nada disso sobre o que escrevera.
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Depois da aula, Lia ficou a postos em sua mobilete, esperando que o carro azul, estacionado na rua atrás da escola, partisse. Então ele passou, e ela o seguiu. Por vinte minutos ela rodou pela cidade sem perdê-lo de vista. Quando ele parou em frente a uma casa térrea sem garagem num bairro residencial, ela também parou, a uma distância segura, e esperou até o motorista do carro entrar pelo portão baixo do pequeno jardim da frente.
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Ali mesmo à porta, ela pediu que lhe falasse mais sobre a romã.
E assim tudo começou. Lia já estivera com garotos antes, mas nunca deixara que eles fossem muito longe. Agora, que estava pela primeira vez com um homem de verdade, era ela que se adiantava a qualquer movimento dele. Depois, mais tarde, quando estivesse a sós, ela não acreditaria na coragem que teve de abordá-lo assim, ela, que nunca abordara ninguém, e de falar a ele da estranheza e da solidão de ser o que era, ela, que nunca se expusera a ninguém. Não acreditaria que bebera todo o uísque que ele, pelo desconcerto da situação, tomava e lhe oferecera com as próprias mãos, que a ela pareciam ora trêmulas, ora firmes enquanto ela mesma tremia.
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A casa do professor era o lugar em que ele, também psicanalista, clinicava. Tinha sido apenas seu local de trabalho até ele se divorciar da mulher e passar a viver ali. O espaço era exíguo – dois quartos pequenos, um deles com uma poltrona, um divã e uma estante de livros; o outro, com uma cama de casal, outra estante de livros, menor, um guarda-roupa e a foto da filha sobre o criado-mudo. Nos fundos, uma edícula com um sofá-cama onde a filha preferia dormir quando vinha visitá-lo. Ela devia ter a idade de Lia e foi por ela, disse, que ele adiara tanto o fim de um casamento já acabado. Ela e Lia, como esta foi percebendo das informações que aos poucos foi recolhendo do que ele lhe falava, tinham várias semelhanças: a mesma compleição, pernas com panturrilhas firmes, quadris pequenos, um corpo reduzido, um sorriso um pouco assimétrico, com o lado esquerdo dos lábios superiores mais levantado, e olhos que pareciam, à primeira vista, ligeiramente estrábicos.
E foi ali, no espaço do amor, que Lia conheceu também pela primeira vez um desconforto que só o álcool parecia abrandar, algo sobre o qual ainda sabia tão pouco quanto sabia da romã.
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Na biblioteca lia um livro que o professor lhe recomendara. Só havia ela e um garoto do segundo ano, na mesa ao lado. Ele tinha o rosto cheio de espinhas, o cabelo, na altura dos ombros, engordurado, e parecia se coçar. Lia continuou com os olhos fixos nas páginas de O que ela encontrou por lá, embora sua visão periférica a advertisse sobre alguma coisa de que ela não tinha certeza. Lia se levantou e fingiu ir buscar um livro numa estante. O garoto não se coçava, ele se masturbava, ela constatou, com horror e calma. Lia saiu dali como se não tivesse visto nada.
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O professor a recebeu constrangido, porque um paciente chegaria em meia hora. Ele a levou para a edícula nos fundos da casa, onde Lia chorou, sem conseguir se controlar, enquanto ele tentava acalmá-la. Ele passou as mãos por seu cabelo, pelo seu rosto úmido, e uma vontade de preservá-la, de cuidar dela, se apoderou dele. Acomodou-a no sofá-cama e a cobriu com uma colcha de crochê, enquanto lhe sussurrava baixinho uma canção de amor, até que ela dormisse.
Depois da sessão, ele a acordou deitando-se ao seu lado, envolvendo o corpo pequeno de Lia com o seu, e pediu que lhe dissesse tudo. Ela disse que tinha uma cicatriz, algo escrito em seu corpo, de que não sabia como se livrar, um aviso, uma placa que informava ao mundo que ela não era digna de respeito. O sinal de Caim, ele pensou. Era essa a marca que a trouxe para ele, o professor disse, e o desejo o invadiu, um desejo paradoxal de resguardá-la e, ao mesmo tempo, de dilacerá-la até a destruição.
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Na edícula, onde com frequência Lia o esperava, ela examinava peças de vestuário feminino com um interesse quase científico. Um dia uma camiseta com estampa de urso, esquecida ao lado do sofá-cama, no outro um vestido curto de alcinhas. Um par de chinelos cor-de-rosa que tinham o seu número. O único pé de uma meia soquete puída. Certa vez encontrou uma calcinha. Ela a cheirou, a esticou, ponderou sobre o peso do algodão e sobre sua estampa miúda de flor, e, constatando que era do seu tamanho, por fim a vestiu e se postou na frente da janela fechada cujo reflexo lhe servia de espelho, quando ele chegou e beijou sua nuca, suas costas, agarrando-a por trás, esfregando com violência seu corpo contra o dela. Sentiu como se o desejo dele passasse por ela e se dirigisse a outro ponto. Como se ela fosse o vidro da janela e ele olhasse através dela, sem poder atravessar.
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Às vezes eles só conversavam, entre um gole e outro de uísque. Sobre livros. Sobre o amor. Sobre Lia. Sobre o futuro dela. Outras não falavam nada. Apenas se contemplavam. Ele, à juventude dela, à experiência teórica que tentava demonstrar em tudo; ela, aos indícios de uma maturidade forçada, de pelos, cabelos brancos e rugas, dele. E, em algumas delas, quando Lia pedia que ele a possuísse no outro quarto, sobre o divã, apenas ele falava. Falava um nome no ápice do amor, sussurrado, um nome que não era o de Lia. O nome da filha. E porque não sabia se ouvira mesmo o que tinha ouvido, Lia lhe pedia que fizesse mais uma vez, e mais outra, tantas vezes quanto durasse sua dúvida.
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Alguns dias Lia não podia ir à casa do professor. Era quando ele tinha pacientes ou quando a filha ia visitá-lo. Nesses dias ficava na biblioteca da escola, que era onde dizia aos pais estar quando não estava, o que não deixava de ser verdade. Na biblioteca, sozinha, escrevia cartas. Confissões, dúvidas, acusações, sobre a sensação pungente de ter sido cortada em partes, roubada, arrastada pela correnteza de um rio sem margens. Sobre a capacidade dele de descobrir talentos e vocações. Cartas que nunca enviaria ao seu destino.
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Numa das últimas aulas do ano letivo, Lia chegou atrasada à escola. Tinha esperado por ele na rua onde costumava estacionar, e onde todas as manhãs se viam sem se sem aproximar, como se fossem desconhecidos. Assistiu às aulas com desinteresse. A última era a de Psicologia, mas o professor não viera e os alunos foram dispensados. Lia então ficou sabendo do acidente.
Ela não soube como dirigiu, que manobras teve de fazer até atravessar corredores brancos e iluminados que desembocavam numa recepção asséptica, onde, antes de pedir para vê-lo, perguntou à atendente se algum parente próximo estava ali. Não soube tampouco como deixou o hospital. Apenas se lembrava da sequência: a atendente lhe mostrou uma senhora, sentada com ar desolado no saguão; Lia se aproximou, dividida entre o medo e a curiosidade; ficou sabendo dos detalhes do acidente; que se tratava da sua única parente viva; que ele era muito reservado e mesmo a ela raramente procurava. E sobretudo se lembrava do último ato, de quando, confusa, perguntou pela filha dele e, antes que pudesse ouvir a resposta chocante, Lia a adivinhou, pela expressão de espanto da velha senhora.
Betto ferreira
Belo texto.