Um conto de Luciano Duarte
Alagoano longe de casa, Luciano Duarte tem 27 anos e atualmente é doutorando em Literatura pela Universidade de Brasília. Possui textos publicados pela Ruído Manifesto e pelo Portal Aboio. É autor do livro Os grilos que do oitão me chamam (Penalux), a ser publicado ainda em 2024.7
Instagram: @lucianomdjr
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FOGUINHO
“Acode, minha gente!”
Aninha mal podia ouvir sua avó Lúcia gritando por ajuda. Em sua mente, só conseguia enxergar a imagem do velho dando um pontapé em Foguinho. Enquanto isso, as chamas continuavam tomando conta dos caibros do quarto dos avós. Se não estivesse tão preocupada com o bichano, a garota teria tido tempo para admirar a combinação de vermelho, amarelo e laranja que o fogo criava e que ia subindo pelas paredes.
Mais tarde, diriam que o fogaréu teria começado por conta das velas que a avó costumava acender quase que todas as noites para a Nossa Senhora do Ó. As velas do altar teriam caído por cima das cortinas amarelas de linho e iniciado o incêndio.
Naquele momento, bem antes das chamas cessarem, boa parte dos moradores das redondezas tentava ajudar a Dona Lúcia a salvar a estrutura do incêndio, usando baldes, bacias, panelas e tudo mais que podiam carregar até a levada mais próxima e encher com água.
A garota ignorava tudo aquilo.
Ignorava os gritos da avó e dos vizinhos; ignorava os latidos dos cachorros que tinham acompanhado seus donos até ali; ignorava o choro do bebê da Galega, que era só uns 6 anos mais velha que ela. Por um tempo, ignorou até mesmo o corpo estirado a alguns passos de onde estava.
“O Foguinho já voltou, vó?”
“Que Foguinho, Sebastiana! Isso é hora de pensar naquele gato dos infernos?!”
Aninha não queria saber da casa. Não se importava com aquela construção antiga e feia, construída com blocos vermelhos e barro da beira do rio quando a avó ainda era quase da sua idade. Queria saber do Foguinho. O gato sempre a seguia para todos lados; escondia-se atrás da cômoda de madeira e pulava em suas pernas quando ela passava. Desde que chegara, Foguinho era a única coisa que a fazia sorrir.
Foi numa madrugada chuvosa que Aninha escutou um barulho agudo e repetitivo vindo da frente de casa. De início, assustou-se com aquilo. O que quer que fosse, era um som aterrorizante. Cobriu-se por inteira com o lençol de rede e esperou que seus avós, Dona Lúcia e Seu Geraldo, saíssem do quarto e fizessem o barulho cessar. Mesmo com uma das paredes do quarto dando para a frente da casa, Aninha não ouviu um som sequer vindo do cômodo deles; nem mesmo o barulho que as tábuas da cama de armação de ferro faziam quando um dos velhos mudava de posição. Será que eles não estavam escutando aquele barulho infernal?
Não conseguiu pregar os olhos por um bom tempo.
Mas a chuva foi ficando cada vez mais forte, e o lamento vindo da frente de casa foi sendo abafado pelo barulho da água caindo sobre o telhado. Deu por si acordando algumas horas mais tarde, já sem chuva e sem lamento. Sabia que havia amanhecido por causa da claridade no telhado. O avô já teria saído para caçar lebres e cutias na mata, e a avó estaria descendo a ladeira de terra vermelha que levava até o rio, com uma bacia de alumínio cheia de roupas na cabeça.
Perguntou-se se o barulho que tinha escutado durante a madrugada teria feito parte de um sonho, do tipo que costumava ter com serpentes e fogueiras. Ao abrir a parte de cima da porta do quintal e dar de cara com um sol reluzente em um céu azul limpo, também se perguntou se a chuva teria existido apenas como parte de uma alucinação.
Deu a volta pelo beco e chegou à frente de casa. Lá encontrou uma bola de pelo preta encolhida dentro de um dos baldes de plantas da avó. Notou o bicho por causa do seu ronronar que era incrivelmente alto. Num instante, Aninha sorriu e pegou o gato nos braços. Estranhou os pelos molhados que davam um aspecto terrível ao animal. Usou um pano de chão para enxugá-lo.
A reação dos avós quando chegaram não foi das melhores. A avó dissera que nunca havia visto um gato de pelugem tão preta e que aquilo não era bom sinal. O avô alegara que não cuidaria dele nem se daria ao trabalho de arrumar-lhe comida. Mas logo depois, Aninha os ouviu conversando no quarto. A avó dizendo que talvez o bicho ajudasse a menina a sentir menos falta da mãe, que tinha ido embora trabalhar na casa de uma madame rica na capital e nunca mais dera sinal de vida.
O avô fizera um barulho de resmungo e fora para o quintal tratar da cutia que havia matado, deixando claro que não queria o gato por perto quando estivesse em casa.
A partir desse dia, Aninha e Foguinho tornaram-se inseparáveis. O nome tinha sido sugestão da avó, que fazia piada dizendo que o gato era tão preto que parecia ter sido torrado numa fogueira. Em pouco tempo, o animal já respondia pelo nome. Miava com dengo sempre que Aninha o chamava. Alguns vizinhos diziam que o gato era uma figura curiosa, preto como breu e dissimulado feito cigano. Ia crescendo rapidamente, cada vez mais gordo e manhoso.
Mas não gostava da presença do Seu Geraldo. Ficava com olhos de ximbra e fugia sempre que o velho se aproximava, quer estivesse previamente acordado ou dormindo. Às vezes, durante as fugas, passava correndo entre as pernas do velho, prestes a derrubá-lo. Seu Geraldo praguejava sempre, mandando-o para os infernos e ameaçando cortar-lhe as patas.
Na última das vezes – na tarde daquele mesmo dia – Aninha fazia carinho no gato enquanto ele a massageava com suas patas dianteiras. Os dois muito bem acomodados na cadeira de balanço do quintal.
Foi então que Seu Geraldo surgiu com o mau humor de costume. Foguinho imediatamente pulou do colo de Aninha e correu para fugir do avô. Mas, dessa vez, o velho alcançou-lhe a tempo e chutou-lhe com o pé direito tão forte quanto possível para um destro maligno. Foguinho dera um guincho e Aninha um grito de horror. O avô, tomado de fúria, ameaçou matar o gato a golpes se ele tivesse mais uma chance, mas o bichano havia corrido para dentro do canavial aos fundos da casa.
Aninha havia passado o resto do dia procurando pelo gato. Gritara pelo nome e até balançara a pequena bacia de alumínio com comida, mas tudo em vão. Até que a avó a chamou para dentro quando o sol já estava quase que desaparecendo no horizonte.
“Não adianta procurar pelo bicho nesse escuro, menina. Amanhã ele volta.”
Foi com os olhos úmidos que Aninha convenceu-se a entrar. Já na cama, chorou a noite inteira, até adormecer.
Em sonho, viu Foguinho caminhar pelo telhado e fazer um som diferente do usual. O miado mais parecia com aquele que ouvira na madrugada anterior à descoberta do bichano na frente de casa. Os seus olhos eram negros como breu, mas possuíam vestígios de uma combinação de vermelho, amarelo e laranja.
“Foguinho, desce aqui.”
Aninha acordou com a avó agarrando-a pelos braços e puxando-a para fora da cama. Depois, para o vento gelado da noite. Foi então que a garota percebeu que uma parte da casa estava em chamas. O telhado do quarto dos avós ardia. De fora, pela entrada da porta da frente, ela podia ver o fogo subindo pelas paredes e consumindo os caibros, enquanto os vizinhos jogavam a água que ia sendo trazida por aqueles que iam correndo até a levada.
Foi então que ela decidiu prestar atenção na aglomeração de pessoas ao seu lado, depois que sua avó passou correndo com um pano molhado nas mãos.
Aproximando-se, sem muito interesse, a jovem percebeu que o grupo estava em volta do avô, com o rosto sujo e uma expressão carrancuda, mesmo desacordado. A avó havia colocado o pano em sua testa e começado a chorar. Aninha ouviu uma mulher que segurava o pulso do velho dizer para a avó que não sentia o coração dele bater.
“Mas cadê o Foguinho?”
Levou um tempo até que os vizinhos conseguissem controlar as chamas. No final, a vó gritava, lamentando o velho morto em seus braços, em berros que para Aninha eram assustadores. As mulheres ao seu redor tentavam consolar uma criatura inconsolável. Chorara até o amanhecer, com os gritos transformados em soluços e o corpo do velho já frio.
Aninha não chorara.
Não porque não quisera ou por insensibilidade, mas é que precisava encontrar Foguinho. E se ele estivesse tão debilitado pelo chute que recebera que não conseguisse andar? E se tivesse voltado para a casa instantes antes do fogo começar? Tivesse visto o fogo, a multidão, os cachorros e fugido assustado? Precisava encontrá-lo.
Por um instante, Aninha pensou ter ouvido um barulho vindo de dentro da casa. Podia jurar que era o miado de Foguinho. Pensou que conseguiria entrar a passos largos enquanto ninguém estava olhando; todos muito ocupados tentando consolar Dona Lúcia.
Mas quando se pôs a correr, um dos vizinhos a segurou pelos braços e a levantou no ar, dizendo que ela não podia entrar, que era perigoso, que os caibros e as paredes podiam cair.
Aninha gritava, pedindo para que a deixassem entrar na casa. Foguinho estava lá, poderia estar ferido. Precisava encontrá-lo. A algazarra chamou ainda mais a atenção dos curiosos que estavam em volta. O bebê de Galega voltou a chorar, os cachorros voltaram a latir.
Mas então Aninha parou. Todo mundo parou. Até o bebê de Galega e os cachorros dos vizinhos pararam.
Era um berro vindo de alguma parte da casa. Um berro rouco e alto.
Só não foi mais alto e assustador que o berro que Dona Lúcia soltou ao ver Foguinho, com seus olhos de ximbra brilhantes, de pé, no telhado do cômodo carbonizado.