Um conto de Luis Bonfim
Luis Bonfim. Fui gestado na viagem entre as chuvas amazônicas e a seca cuiabana. Nasci crendo-me sem-terra e fiz-me eterno corredor. Pela literatura aprendi a alquimia dos lentos sabores. Corto cebolas e tomo café com açúcar. Como professor ganho o pão e sovo minha alma. Todo dia é para aprender.
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Contos das Tribos dos Homens
Tempo rei
Ninguém sabia do tempo ainda… só o vento movia a forma das nuvens e montanhas. O mar rebatia sobre os corais, a chuva alagava a planície, mas eram todos sentidos ocultos. Tudo se estirava na monotonia árida. Um pássaro piava uma estridência sintonizada à vibração do grande astro, a bola incandescente fervendo o horizonte. Havia aquela promessa de renovação, entre o clarão e o tempo, a espera de novos humores. Quem saberia!? Alguém pressentia quando disse:
– Está já muito próximo… pra acontecer! Entre os dentes solfejou enquanto olhava. Seus olhos de um azul muito apagado fixado numa folha esturricada sob o sol. A massa tremendo em brasa marcava sombras negras no glóbulo cinza de Op´met. Sombra onde seu pensamento navegava.
Desde que as forças estivessem postas, o sol nasceria mais forte. O ar aquecido furaria a bolha que bloqueava a umidade ao longe. O vapor condensaria a água vindo a cair sobre a secura da boca dos homens. Choveria, as plantas renasceriam regadas dos sais e minerais. Duplicariam os insetos com a fartura das folhas e dos frutos, roedores e pequenos animais pululariam na relva. Isso esperavam todo, espera imensa, como contar pegadas de formigas. Ninguém lembrava dos dias em que a vida estivera farta. Aqueles que lembravam, ofereciam a memória como um prato vazio temperado de nostalgia vangloriosa.
Op’met estava ali, agachado sobre o barro, olhos fixos na folha, corpo seco como a estação, cabelos áridos feito o vento. A testa franzida desviava o suor enquanto o pensamento se prendia na sombra morna estacionada. Era figura estranha, quieta, muitas vezes solitária, estranhamente influente. Recebia facilmente todos os adjetivos provocativos do vocabulário comum. Ao que se dava toda a sua influência. Sua fala escassa soava com que de evento. Falava de forma marginal, mas sem adereços especiais. Palavras cruas, fadigadas na exaustão dos sentidos corriqueiros. Assemelhava-se facilmente ao trabalho bruto e aos inconvenientes. O que rendia seu isolamento e influência.
Como os sapos que coaxam após a chuva ou como os pelos que se arrepiam Op’met pressentia. Talvez as fibras da folha seca contivessem a mensagem de um novo ciclo. Mas, persentir é contraditório. Por que o que é pressentir? A máxima do tempo é que se deixa ver apenas como imagem de espelho, como em uma tempestade de areia, ao abrir os olhos, os grãos cortaram seus glóbulos como navalhas. Vai chorar terra e sangue sem ter visto mais que um palmo de distância a sua frente. Aí está toda a loucura. As vezes você sente antes de acontecer! As vezes acontece aquilo que de alguma forma havia imaginado. Op’met pressentia. Quiça acontecia na sua cabeça magra a primeira experiência de d’javú na tribo dos homens. Uma revelação primordial dos signos que compunham as vestes do deus do tempo. Apresentava-se aos homens os primeiros traços daquilo que iriamos conhecer como destinação. Era a sensação de destino o estranho olhar de Op’met para a folha, a destinação da morte como anúncio da…
– O que é que tanto olha ai seu estranho? Falou Orinon, quebrando o silêncio onde o outro criava uma oração ao deus do tempo.
– Esse corpo seco aí parado! O que tanto olha? Só pode estar a fugir das suas obrigações? Fingindo-se de louco, seu fraco. Até quando vamos ter que te aturar como encosto entre nós.
Como de costume Orinon era seguido por um grupo de sete outros sujeitos. Sete, cada um com uma disposição, cada qual ao seu posto. Sobre esses exercia certa liderança advinda da sua postura impositiva e disposta.
– Vai-te daqui Orimon! Respondeu com uma voz pequena.
– Pois saia você mulambo. É nesse silêncio de preguiça que cultiva a soberba com que nos olha. E completou. – Ouça você que viemos apenas para perguntar qual maravilha descobriu neste chão?
Nas pequenas risadas que seguiram, abafadas entre olhares com a expectativa ardilosa do sarro, podia notar-se o interesse teatral do grupo. Haviam combinado antecipadamente de provocar Op’met até que se pusesse a falar em bravatas. Esse tipo de episódio sempre causava eforia de risos com longas horas de comentários indiretos.
Op’met percebia apenas parcialmente o desenrolar dos interesses. Sua cabeça sobre pressão ouvia o entorno em ecos distantes, sussurros que não podia rastrear a origem, menos ainda elaborar respostas. Estava assim desarmado para as provocações. Como bolhas de gás em água fervente as ideias vagas ebuliam para fora da sua mente e vazavam como arrotos da sua boca entreaberta:
– O destino da morte anuncia a vida!! – Aquilo que está por vir é o que se espera! Suas almas têm dono! Seus olhos serão cebolas flutuando na sopa que alimenta o deus do tempo! Soluçava Op’met.
A plateia que ouvia ebuliu em reposta imediata uma corrente de trocadilhos moldurados em coro de riso senil. Alguém gritou:
– Vou dar-lhe uma paulada na cabeça para que você possa vir a vida. – Você pode esperar por isso, completou. Em outro extremo uma nova voz continuou.
– Venha Op’met, eu que sou seu amigo levarei você até o alto daquela montanha, lá você poderá esperar a nova vida que a morte anuncia! Sabes que em mim podes confiar! Disse com os braços estendidos e um riso dissimulado.
Assumindo a frente do grupo enquanto se aproximava do velho mulambento, Orinom imprimiu liderança, com gestos sutis pedia o silêncio onde iniciava uma nova abordagem. Quando próximo, falou com uma suavidade que chamou todos a acompanhar.
– A verdade meu amigo é que te queremos agora na tribo! Sabes você que não temos passado bem com a agrura que racha nosso solo. Esse teu desalento também está no rosto dos nossos, basta vê-los quando chega a brisa da tarde carregada do cheiro de animais mortos. Somos irmãos nesse sofrimento e queremos ouvi-lo. Agora mesmo, todos reúnem-se na mesma expectativa. Ouvimos os anciões e os sábios, procuramos sinais nas tripas de pássaros, tragamos nosso fumo e ninguém pode formular uma resposta para nossa desgraça. Em verdade, estamos desesperados.
Falava enquanto se abaixava a altura do outro. – Veja bem Op’met, nosso sarro nada mais é que desespero por tua ajuda. – Você sempre tão pensante poderá dizer algo que trará esperança a nossa gente. Falou orquestrando pequenos sinais para que o grupo acompanhasse seu sarcasmo. Viu que acenavam e ouviu as validações.
– Sim, venha conosco e viveremos juntos a miséria até que ela passe…
E outro completou. – Não se acanhe, cá somos todos como você e somamos as mesmas preocupações que te afligem. E estendeu a mão para o homem acuado.
Op’met não esboçou reação a tentativa de levantá-lo. Perdido no vendaval da sua mente degustou as palavras que tangenciavam sua consciência. Notou o tom ardiloso que, contudo, rapidamente se perdeu entre os ácidos do seu estômago. Mas, havia entre aqueles sons algo doce a que era fácil se apegar. Desejava vivamente estar com os seus. Sentia que tinha algo a dizer, mesmo se com o silêncio ou com as palavras entrecortadas que eram seu discurso comum. Como eles sentia a agrura daquele tempo. E o que poderia ser mais relevante de dizer em sua vida do que aquela constatação trivial diante da folha ressequida. Quando essa afirmação lhe subiu a temporã frases audíveis escaparam da sua boca.
– Tenho que dizer-lhes, precisam saber que o tempo está se fazendo assim como tecemos nossas malocas e afiamos nossas fechas. – Como o fumo que tragamos e as árvores que lenhamos. O tempo se produz trivial pela vontade dos viventes de ser, ainda que nenhum deles possa domá-lo. Cresce a árvore marcando as preces do tempo nas ranhuras da sua casca. Desses sinais a semente retira o poder para originar-se em folhas de verde vivo e respiração equilibrada. Todo o conjunto desse destino será devorado na fome imensa do tempo. É um Deus sem figura, invocado pelo movimento. O mais permissivo ao contato do homem, por isso também o mais impassível. Todos os vivos podem vir a ele com sua vontade banal, e todos hão de vir a ele… – O destino da morte anuncia a vida! Repetiu o clarão de ideia que havia fustigado sua mente. Seus olhos se abriram um tanto mais. Levantou-se e olhou o grupo que o ouvia sem muita expressão.
– Vou com vocês Orinon, precisamos transformar essa espera pela morte em alimento. Temos oferecido aquilo que o tempo, de pilheria, agora renega. É preciso ser algo que o agrade, só assim a roda da vida poderá girar.
Em um primeiro momento aquela repentina mudança de postura desconcertou Orinom. Entretanto, a medida que assimilava aquelas ideias – a vontade e feitura do tempo, a oferenda e a roda da vida – gestava-lhe junto ao sentido um plano soturno: talvez pudesse fazer o próprio mulambo de oferenda ao ânimo da tribo. Afinal não era ele o espírito mais disposto, o mais íntimo desse deus que estava a anunciar. Então, seria razoável propor uma consagração para ofertar sua vida.
Tomaram todos o rumo da tribo. O caminho que outrora fora colorado por infinitas formas de vida, agora fustigava com corpos em decomposição uma uniformidade de laranjados e marrons ferrosos. A atmosfera oxidada reverberava com os planos de Orinom. O grupo sentiu o cheiro ácido que carregou a troça inicial à intenção de destruir Op’met. Embora nada tivesse sido pronunciado era possível sentir o peso que calava as vozes, caminharam no silêncio, as sombras do fim da tarde cobrindo a marcha. Quando o clarão do espaço aberto tremeluziu as vistas escuras um pequeno choque correu as ideias do grupo. O anúncio do lar afagava os corações. Ecoava longe a cacofonia de crianças correndo, braços trabalhando e diálogos comuns. O calor fervia os corpos, o vapor ebulia do suor frio dos espíritos perdidos. Alguém vai morrer. Diante do medo paralisante todos desejavam somente salvar seus ossos e tecidos particulares.
A velha mulher recebeu o grupo acompanhada de um cachorro magro que farejou Op’met e
Orinom na sequência. Ao cruzar a visão com a mulher ambos encontraram o vazio espelhado de olhos que descartam completamente os julgamentos e que por isso revelam egos sem os escudos de contraposição ao outro. Orinom de praxe a enfrentou mentalmente: “quem pensas que é”, “por que me olhas como se estivesse acima”, “eu sou poder, a dor e a irá”, pensava. A velha mastigou inaudível uma reza. Palavras não eram pronunciadas, havia som, mas ninguém compreenderia nada. Embora os arranjos não tivessem o menor sentidos para a comunidade, todos ouviam encantados aquele tipo de canto estalido, tão diversos da fala comum. Eram como acessos, vistos como místicos, que lhe davam a consideração de todos. Mastigou enquanto tomou a mão de Orinom. Seus dedos magros eram fortes e sua pele enrugada era grossa e lustrosa. Com o toque as armaduras de Orinom caíram. Seus pensamentos fluíram esvaziando as durezas nas expressões que carregava. Op’met sentiu a catarse. Agora, entendia exatamente o que Orinom pensava. Bastou olhar para o seu rosto. A velha fez uma ponte onde todos comungavam.
Com as mãos dadas caminharam todos juntos ao longo da tribo. O vento que chegou junto a reza inaudita, carregou a atmosfera de uma poeira densa que sombreou a aldeia. Os cachorros seguiram os três em cortejo. No centro do espaço, onde se acendia o fogo à noite, a velha abandonou os dois corpos espantados e passou a juntar paus e folhas secas e jogá-los no fosso de cinzas. Reuni-os em certa quantidade, tirou da cinta um pequeno graveto e se pós de cócoras a girá-lo com as mãos. No entorno alguém puxou um cachimbo grande e acendeu-o com ervas de fumo. As pessoas reuniam-se formando grupos particulares. No vento que soprava, poeira e fumaça misturadas eram lançadas cada hora em uma direção. Intercalava-se nesse rodízio a passagem do fumo e a reflexão sobre a cena que acompanhavam. À direita um grupo de três pensou ao mesmo tempo: “o que é que está havendo?” … e sobre a atenção da dúvida puderem notar que o teto de suas casas precisava ser reformado. A dor que até então as impedia de perceber dissipou-se, deram-se conta do trabalho a fazer. De frente para esses três, na parte oposta do círculo um grupo maior estava absorto. Pensavam em sequência: “que situação desoladora”… “temos que partir daqui”… “temos que selar essa vida e começar uma outra”… “é esse espaço, nosso modo de viver árido”… “nossas sementes velhas e o modo como as plantamos”. Quando as primeiras chamas tremeluziram entre os ramos secos e as mãos da velha esse grupo se levantou e saiu. Juntaram suas crianças e suas redes rumo a nuvens escuras que se mostravam ao sul. Próximo ao fogo estava aqueles que seguiam Orinom. Sentiam nesse semicírculo o aumento rápido da temperatura a medida que o fogo consumia a cera e as cascas. Neles a luz das chamas derretia suas antigas convicções. Transformava a vibração sarcástica que os unia em um vazio que os recolocava na busca.
O fogo e a fumaça, os cães inquietos, a velha fixa sobre seus murmúrios, olhos eloquentemente vazios, um círculo de cinzas. Os dois em rusga estavam petrificados por fora, viajavam um mundo interno particular. Seus olhos revirados, viam um mundo interno, como um sonho. Lá navegavam um escuro denso onde podiam remar conforme fixavam o olhar em um horizonte. Era confuso já que não havia luz. Mas, a medida que retomavam os acontecimentos até ali, que pensavam em si e no grupo, podiam aspirar luzes distantes, que ao fixar com olhos fazia-os mover. Sentiam com o movimento o tremular da escuridão como ondas, resultante de outros navegantes… baleias, homens, répteis, cetáceos, peixes… quem sabe? Orinom sentia-se perdido, porque havia feito da dominação um farol único. “Eis minha grande luz”. “Com ela tudo se alumia”. “Nela todos posso ver”. “Vem a mim clarão sem limites”. No breu, sua fixação o empurrava velozmente para o nada que o engolia tão ferozmente quanto aquela luz ampliava-se. Ao rever, Opmet notará a vastidão da escuridão e os limites moveis ao navegar. “Eis você mar do tempo, com sua face negra”. “Desafio do caminho ao cansaço de cada ser”. “Nossa perca em sua imensidão”. “O sonho das luzes distantes”. “O tremular do que se move sob suas águas”.
Não se sabe exatamente quanto tempo se passou. Mas, depois de um tempo, talvez um dia, visto que agora uma leve neblina deitava umidade fria transformando sobre a poeira, transformando-a em barro. A velha que dormirá sentada levantou zonza rumando indisciplinadamente por uma trilha na mata. Outros pontilhavam o que restou do círculo. De certo ângulo poderia se dizer que figuravam a imagem de uma clepsidra.
Próximos ao centro do fogo Op’met e Orinom subiram as pálpebras revelando os glóbulos completamente cozidos. O calor havia desnaturado seus olhos, consumido seus cílios e marcado seus rostos com ranhuras que lembravam as nervuras de uma folha decomposta. De pé suas íris esbranquiçadas varreram em vão as formas do entorno. Para eles o esforço de olhar trazia de novo aquela sensação de navegar o infinito mar rodeado por pequenas faíscas de luz. Orinom ergueu a face ao céu ao ponto do sereno acumular-se em suas rugas. A água gotejou ritmicamente do seu queixo sobre sua mão. Op’met pode ouvir aquele som e contar sete gotas ao pronunciar, primeiro bem baixo – “tempo rei”, “tempo rei” -, depois alto e aos quatro cantos: “TEMPO REI”. Todos se aproximaram à ouvir o aparente dialogo travado entre os dois cegos:
– O tempo vestido de águas escuras
– Nunca mostra a face sua
– Sua pele exposta é como o espelho
– Reflete o rosto de todo aquele que o olha
– Como um fantasma
– Nas suas vísceras, nascem e nadam, todos os viventes…
– Só aos homens, com suas canoas, deu-se o poder de fluir sobre suas costas
– E dirigir-se aos seus olhos, sem nunca alcançá-los.
– Nós o vemos tempo rei… você nos vê?
Assim, nascia na tribo dos homens (que era como a aldeia se chamava) a tradição dos destinos, os dons divinatórios e as preces do futuro. Poderes magníficos seriam revelados nos ritmos que dobravam a pele do tempo e sobre a qual os homens podiam navegar. Tantos poderes teriam efeito em uma guerra colossal. Com o auxílio dos homens, o tempo contestaria eternidades. Uma batalha épica onde os titãs colossais que corriam sob as águas do tempo emergiam para guiarem-se com a direção dos homens.