Um conto de Mariana Vogt Michaelsen
Mariana Vogt Michaelsen (1994) é graduada bacharel em Psicologia, mestra e doutoranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nasceu em Ijuí e cresceu em uma confeitaria. A cozinha é a origem de tudo o que faz hoje. Recebeu menção honrosa no Prêmio Zahidé Muzart de Teses, Dissetações e TCCs em estudos feministas, pela sua dissertação intitulada “(N)o verso das receitas, uma página em branco: a escritura, a litura e a leitura de livros de receitas”. Ministra oficinas de escrita criativa de receitas culinárias. Faz parte da comissão editorial da revista Anuário de Literatura. É autora do romance “Eu te sonho: cartas do confinamento”, escrito com Fábio Brüggemann e do livro “Segredos sussurro enquanto a ambrosia cozinha”.
***
OVOS NA CASCA
A mulher não tem memória. Ela escreve todas as receitas todos os dias, porque não tem memória. Esqueceu todas as receitas que sempre soube de cor, por isso escreve. As receitas são a sua memória.
A mulher não tem memória, por isso ela come ovos todos os dias de manhã. Ovo faz bem para a memória. E dá ovos para a cria. A linhagem vem e carrega na boca toda a memória escrita de uma mulher sem memória. A mulher come o ovo. A cria come o ovo. O ovo não tem memória.
A mulher que não tem memória certo dia quebrou um ovo e muito sangue escorreu do ovo. Calmamente jogou o sangue na privada e deu a descarga, depois se esqueceu disso e quebrou outro ovo. Comeu. Deu o ovo para a cria. A linhagem que vem comerá o mesmo ovo escorrido de sangue e despejado na privada. Mas o ovo não tem memória.
A mulher não tem memória, por isso ela tem a cria. E dá ovos que fazem bem à memória. A cria come os ovos calmamente, ela gosta e gostará para sempre. Quando não for cria, se lembrará daqueles ovos servidos dentro da casca. Moles, bem moles. Moles como o sangue que desce todo mês pelas privadas e ralos do chuveiro.
A mulher não tem mais sangue. Nem memória. Por isso tem a cria. A cria vê desenhos nas letras da mulher e reconhece a repetição de quem não se lembra mais. O som da casca quebrando volta em sonhos de mulheres que já comeram os doces de ovos da mulher sem memória. As imagens não são de ovos nem de cozinhas. Certa vez, uma sonhou com grilos e gafanhotos coloridos, ela própria era um grilo laranja, e no fundo o som dos ovos quebrando.
A mulher segura as gemas em concha. A cria imita a mulher, embora de mãos vazias. A mulher passa a gema para as mãos em concha da cria. A gema enche toda a mão e isso dá uma vontade enorme de chorar. Mas a mulher não tem mais choro. E toda vez que a cria crescida segura ovos com as mãos em concha, pensa que segura as mãos da mulher.