Um conto de Matheus Guilherme Antunes
Antes de tudo e de mais nada, um poeta. Matheus Guilherme Antunes tem 22 anos, é cuiabano, aquariano e teimoso. Trabalha com correção de textos e redação. Começou a compor músicas aos nove anos e a poesia iniciou aos doze graças à Helena Maria Cortez, sua professora-heroína, que o apresentou aos grandes: Drummond, Hilda, Vinícius, Clarice e Cecília. Quando vai à prosa, sente que está diluindo seus versos. No momento atual, está no último ano do curso de Letras Português e Francês na Universidade Federal de Mato Grosso, sendo um dos idealizadores do sarau artístico do Instituto de Linguagens, atual projeto de extensão SarArt – Entre Línguas e Letras, do qual faz parte da Comissão Organizadora. Além disso, é bolsista FAPEMAT, dando os primeiros passos na iniciação científica, seu foco, sob orientação pelo professor Vinicius Carvalho Pereira, é acerca da instapoesia mato-grossense, a qual faz parte do guarda-chuva da pesquisa “Crítica e preservação da poesia digital mato-grossense” de seu orientador. No mais, teve poemas e haicais publicados na revista Ruído Manifesto, além de ser selecionado em 3° lugar na categoria poesia no primeiro Concurso Rodivaldo Ribeiro de Literatura com o poema Margens Secas, como também, possui um livro-perfil no Instagram e no Twitter, o @poemasdealuguel, no qual propõe espaços poéticos alugáveis em seus poemas corriqueiros.
***
Albergue
Há um albergue na cidade, ele vive vazio o ano inteiro, exceto em datas comemorativas, tal como no natal ou no dia de São João. Entretanto, os andarilhos, como eu, preferem as ruas e os becos do calçadão, preferem a ilusão das namoradeiras coloridas e entreabertas, o caos de dentro pervertido pelos vícios e o caos de fora comprado pelo cartão de crédito. A capital ensolarada ganha nuances de catástrofes com esses abandonos no centro histórico, a vida foi deixada pra depois.
O tédio me toma a cabeça e em um impulso sobrevivente, vou ao Albergue, lá sempre vou a procura de sossego e me vejo invisível a cada passo dado no caminho, somente na frente daquele portão alaranjado, que eu encontro, pelo menos, alguns olhos que me cerram o ar e me confortam com a triste presença minha. Mais adiante, me dão um papel e uma caneta esferográfica azul.
Eu fui à escola? Não me recordo de muita coisa, lembro de um uniforme amarelo e de algumas mesinhas de madeira com ferros verdes e havia uma quadra, toda gasta e sempre suja pelas pombas. Eu respondo questionário gélido e robomaníaco com uma caligrafia que não me lembrava como adquiri, não sabia que sabia escrever e, pior que isso, qual era o meu idioma? Meu país eu sei… é do futebol e minha cidade é essa, que faz calor e inundam as praças de lixo, é a capital do estado que nutre o mundo e desnutre os seus filhos, ouvi isso na praça de um vendedor de cocada, momentos antes de me praguejar morte e me tecer elogios alvos.
Depois de me lembrar desse alvoroço diário, que hoje passei novamente, mas dessa vez foram os alunos do colégio militar, eles deram o aviso prévio de que irão surrar quando se tornarem policiais, achei de uma delicadeza insuperável. Enquanto o adentro o lugar fétido e asqueroso, que se assemelha a uma tumba de deus egípcio, por algum motivo, tive a sensação de ouvir passos, será que são os meus?
Na esperança de uma sopa ou de um pão dormido, vou calmamente adentrando essa masmorra desgraçada, minha barriga range os dentes que não tenho na boca, arrepio-me com o forte odor de mijo e de canja de galinha, um contraste requintado e saboroso da vida corriqueira. Isso tudo por que a prefeitura teve a brilhante ideia de fazer banheiros em cima da cozinha, o que acho muito interessante do ponto de vista logístico e arquitetônico, uma mensagem subliminar do tipo: VOCÊS TÊM MERDA NA CABEÇA ou apenas a sabedoria do prefeito, ciente da péssima qualidade da refeição, pois facilita a correria aos vasos e mictórios públicos, que mal importam, já que dentro do banheiro, tudo é vaso e mictório.
O que dão de mais saboroso são as mangas e, nas noites natalinas, servem corotes de morango. Só que hoje tirei a sorte grande, me deram um pouco do que sobrou do Natal passado e bem, agora me lembro de tudo, depois do primeiro gole, a memória passou como um trem bala. Meu aniversário foi há 3 dias, comemorei com um pão quentinho, que o padeiro Tadeu me cedeu pela manhã, o dividi com Apolo, meu camarada de guerra, que se foi ontem à noite, atropelado como um papelão em frente à Taquara, mulher essa que já namorei e a levantaram uma estátua, morar aos pés da ex eternizada é de um mau gosto divino e de uma ironia machadiana. Quem escreveu minha história se esqueceu dos altos e baixos, focou apenas na ideia fixa: quem é do chão não se trepa!
Mesmo assim meu aniversário não foi ruim, conversei com um garoto interessante, um desses que carregam água na peneira, ele me deu um chaveiro, era o que tinha de sobra ele me disse e, na praça Ipiranga, este estava triste, muito mais do que eu, seu coração estava às tripas e eu via nele algo que me lembrava de mim, era como me ver… Após o último gole na garrafa outrora rubra, recordei-me de mais detalhes. Nessa vida eu me acostumei a perder e dói tudo até hoje, a perda de Apolo ou de Maria, tanto faz, meu coração palpita a sacrifícios há muito tempo! Como aquele menino, meu coração se partiu em milhares de partes e eu perdi o rumo de casa, não foi Taquara, ela tinha outro nome, chamava-se Saudade, eu era apaixonado por essa moça, que segurava meu peito muito forte e me dizia: tudo passa…
Os passantes passam e eu fico. Eles vão à rua e vivem à procura de dinheiro e nós, que somos confundidos muitas vezes com a própria rua, só procuramos uma mão para apertar ou um par de olhos que mostrem que existimos… Sabe, essa vidinha me mostrou a maior verdade de todas, a não certeza de existir é a pena mais severa para os vivos, pois quando se sabe que existe, viver é o próximo passo e quando não se sabe, não há como pensar no próximo passo, então, somos mortos-vivos até que nos quebrem o delírio com uma trovoada. Cabrum! Esse som me tira a alma do corpo e que se dane o pequeno poeta, uma tempestade chegará em breve.
Eu avisto no horizonte pelo vitral trincado, há nuvens maciças que escondem o morro de Santo Antônio e o Albergue irá lotar, todos temem o temporal, o bairro porto alaga e ninguém quer nadar nessas águas. No entanto, essa ideia me inquieta e eu decido sair daqui imediatamente, mesmo que eu enfrente a correnteza faminta das bocas de lobo. Odeio dividir o ar com esses vagabundos que vivem nas ruas, eu não sou como eles, sou um mendigo de negócios, cuido de carros e até os oriento à garagem. Isso, claro, graças a papai, que me ensinou o valor do trabalho muito cedo, quando me deixou com sete anos dizendo que era um grande presente. Me disse: cuide da mamãe, você é o homem da casa agora.
E hoje não há mamãe. E nem casa. Sou o homem da rua.