Um conto de Maya Viana
Maya “Monstra” Viana é autora e colagista, publicou o livro de poesias Fera Ferida Made in Mauá (Ed.Penalux 2020), tem textos e colagens nas revistas: LiteraLivre, Germina e Ensaio. Participou da antologia Sangue da Urutau, da plaquete Microfone — Clipe 2019, Coletânea Carnavalhame 4º edição, Lutas e Lentes: Retratos da Resistência pela editora Hecatombe. Foi responsável pelas capas e projetos visuais com colagem dos livros Lacunas (Ana Galdino) e Terra dos Papagaios (Coletivo Andri Carvão). Ofereceu oficinas de colagem pelo CCJF do RJ e através de lives durante a pandemia.
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O tomador
Dia das Mães, 1987.
A panela de pressão chiava desesperada, os pássaros naquelas gaiolas apertadas pulavam de um lado pro outro, piando cada vez mais alto. Os cachorros latiam e tentavam se soltar das correntes, mostravam os dentes sedentos pelo ataque. Era dia de almoço na casa de Conceição, Nildo chegou primeiro e falava cada vez mais alto, tentando vencer todo o caos do ambiente e prender a atenção da mãe. José sentado no muro em frente à cozinha, sem camisa e com as costelas protuberantes, balançava as pernas, segurava o cavanhaque e resmungava sem parar, amaldiçoava o dois enquanto o pai ralava o coco para o ensopado de peixe e ouvia rádio AM, ignorando qualquer reclamação de Conceição sobre o único filho que ainda morava com eles.
– Oséias, me ajuda aqui! José tá fedendo e não quer tomar banho.
Entre uma escarrada e outra, Oséias respondeu indiferente:
– E você esperou até agora pra mandar ele pro chuveiro?! Ele tinha que ter banhado de manhã…agora já foi.
José encarou o pai e escarrou como um ato de cumprimento, tirou a camisa e foi até a ‘’casinha’’, onde ficava o tanque, as telhas eram velhas e as madeiras de base mofadas, mas tudo feito em uma tentativa de proteger Conceição do sol e chuva em dias de lavanderia, ela tinha um metro e meio, mas o restante da família era mais alta e sempre precisava se curvar para ocupar os espaços predominados por ela, assim José o fez e com a ajuda de um caneco plástico começou o que parecia um banho de gato, lavou somente os cabelos, braços e pés.
Conceição foi até a porta e ao ver as atitudes do filho, ensaiou um choro que foi brevemente interrompido por Nice gritando do meio da escada pedindo pra descer. A casa não tinha portões, então eles usavam cães de guarda em cada canto vulnerável do quintal, no total três. Eram todos vira-latas, mal alimentados e ensinados a esquecer qualquer doçura que a espécie trazia consigo, cheiravam a creolina e vinagre. Oséias dizia que isso impedia pulgas e carrapatos, mas, na verdade, só deixava os cães fedidos e irritados.
Ao ver a irmã de longe, José notou o quanto a última gravidez a havia engordado e então, com um olhar fixo, sussurrou:
– Olha, se os cachorros pegam essa mulher, eles comem melhor que todo mundo nesse almoço.
Nice chegou jogando as bolsas e pedindo ajuda com o carrinho. Ela segurava Rodolfo, um menino preto e rechonchudo, que vestia um macacão de flanela amarelo claro e uma toca que imitava orelhas de urso, e chorava sem parar quando ficava em lugares barulhentos e a casa da avó era o lugar mais barulhento que a mãe já havia o levado.
Conceição, por sua vez, encantada com o neto mais novo, o tomou nos braços e determinada a acalmá-lo, começou a sacudi-lo de um lado para o outro cantando:
– Vamô dança o bilim, vamô dança o bilim dondô, vamô dança o bilim…
Curiosamente Rodolfo gostava das maluquices da avó e, entre um sorriso e outro, ele bocejava. Nice assumiu a cozinha, Nildo e Oséias colocaram outra mesa e mais um banco, Cardoso chegaria logo mais com o filho mais velho do casal, enquanto isso José ficava de canto na varandinha perto da porta da entrada, apenas observando e falando sozinho.
Finalmente, a música de Conceição deu lugar a um embalo leve e Rodolfo pegou no sono:
– Olha, Nice, o nosso bibelô não resistiu e já tá na madorninha
– Coloca ele na sua cama mamãe, aproveita e traz os talheres
Nice percebeu que tinha falado demais ao ver a mãe batendo o pé no chão e levando o dedo na boca como quem pedia segredo. Afinal, todos os cômodos da casa tinham chaves e todos permaneciam trancados quando José estava por perto. Mas, naquela altura, o pedido era em vão, ele já tinha ouvido, apesar de manter o olhar perdido e desinteressado.
Conceição abriu a porta e colocou Rodolfo no canto da cama, fez uma barreira de travesseiros e garantiu que ele estivesse confortável. Deu um beijo no neto e percebeu que as velas do altar que mantinha no quarto estavam apagadas, aproveitou para acendê-las e seguiu com uma breve oração:
– Brigada meu padinho Ciço e minha virgenzinha por esse dia, por essa comida e abençoa meu filho José, entrego a vida dele em tuas mão pra que ele fique calmo hoje e todos os dias. Amém!
Finalizou com o sinal da cruz, trancou a porta e foi colocar a mesa. Na cozinha, ambas notaram a necessidade de mais talheres. Nice pegou a chave discretamente e a mãe assentiu com a cabeça. Ao entrar no quarto, Nice sentiu um desconforto, quase uma queda de pressão, sentou na cama e Rodolfo seguia dormindo, mas sonhava e balançava as perninhas como quem quisesse se soltar de algo, ventava no quarto. Nice encostou a janela e desta vez fez questão de contar mentalmente a quantidade certa de talheres para que ninguém mais entrasse no quarto e atrapalhasse o sono do menino.
Ao ouvir a voz do marido se aproximando, Nice tratou logo de correr e avisar ao pai que precisava segurar os cães. Em sua ansiedade, ela não só esqueceu a porta aberta como deixou o molho de chaves pendurado. José encontrou o momento perfeito para entrar na casa sem objeções, era como se tudo tivesse sido planejado para que sua missão finalmente fosse cumprida, seu momento havia chegado e nada poderia impedi-lo.
Os anos em que ele passou no Juqueri o transformaram em mais um Coletor, mas José estava em dívida com seu culto. Afinal, foram inúmeras tentativas de matar a própria mãe e ele havia falhado em todas, voltando sempre de mãos vazias a Franco da Rocha. O que ele estava prestes a fazer não só o colocaria entre os membros mais importantes do culto como o daria a chance de viver através de outros olhos no futuro.
Ele então caminha em direção ao quarto como um gigante, seus passos valem por dois e ele sente o poder nas mãos, o sol some, ele entra no quarto tranca a porta, a vela que a mãe acendeu minutos antes se apaga, José avança em Rodolfo como um predador e o segura pelo pescoço. Neste momento, seus olhos não são mais seus, são nublados como o céu, suas palavras são indecifráveis e rápidas como um tiro. Rodolfo começa a debater as perninhas e as lágrimas caem ligeiras de seu rosto, não há espaço para som vindo de sua boca minúscula, apenas a língua fica pra fora enquanto o Coletor não se esforça. Em puro êxtase, seu pênis fica ereto, os pássaros cantam uníssonos, Rodolfo para de se debater e desfalece. José goza a melodia da morte.