Um conto de Monalisa Lia – Coluna Escrevivências
Nessa nova fase de sua vida, Ariel estava sendo quem realmente era. Seus primeiros dias de aula foram tranquilos. Escola nova, cidade nova, e, ao contrário da maioria da sua idade, sentia que tinha os melhores pais do mundo. Mas as coisas não seguiram como ela tinha imaginado, e agora estava chorando em seu quarto depois que seus pais haviam ido dormir. Sua mente tentava buscar soluções nas quais não precisasse mais incomodar seus pais. Apesar deles nunca terem reclamado, ela achava que tinha deixado as coisas mais difíceis para eles, “não posso causar problemas”, pensava.
O roteiro de Peter Pan estava em sua cama, quando o pegou para ensaiar, estava tão ansiosa… Não teve dificuldades em decorar as falas da Wendy, personagem que tanto queria interpretar na peça da escola, porém, toda vez que batia o olho naquele monte de papel, seu misto de sentimentos negativos a deixavam mais triste.
Cansada de chorar, e sem saber o que fazer, tomou banho, e se preparava para tentar dormir. Ela secava seus cabelos, quando alguma coisa entrou pela janela entreaberta de seu quarto. Não se preocupou tanto, já que seu quarto era no primeiro andar e do jeito que a janela estava, nada muito grande passaria por ela. “Deve ter sido um inseto”, pensou. Ela estava prendendo o cabelo, quando alguma coisa bateu em sua janela.
— Psiu. — Uma pessoa sussurrou pela parte aberta da janela, Ariel queria correr, mas a porta estava trancada, então não daria tempo. Pensou em gritar, porém lembrou que algumas paredes da casa eram a prova de som. — Não precisa ter medo, sou eu, seu vizinho. A gente se viu algumas vezes.
— João? — Quando ela chegou mais perto da janela, pôde ver seu vizinho em pé no telhado, e com parte do rosto na janela. Ela se aproximou e abriu o objeto, deixando ele entrar. Eles haviam se visto poucas vezes, João também era novo na vizinhança, mas nunca passaram do “oi”. — O que está fazendo aqui? São 11 horas da noite.
— Meu Gato…— disse, um pouco ofegante por ter escalado aquela altura. — Eu esqueci a janela do quarto aberta, e vi ele entrando aqui.
— Ah, eu ouvi alguma coisa entrando, achei que era um inseto. Pode olhar pelo quarto, eu vou me deitar. — Ariel fungou algumas vezes e se deitou na cama, enquanto seu vizinho olhava o quarto.
— Você está bem?— Ele perguntou, enquanto olhava embaixo da cama. — Não muito.
— Vai apresentar Peter Pan? — disse o garoto, pegando o roteiro que tinha caído no chão.
— Não.
— Por isso que ‘tá triste? Você atua mal? — Ariel levantou a cabeça, e encarou o garoto seriamente.
— Sim, é por isso que eu ‘tô triste. É lógico que eu não atuo mal, passei no teste, mas eles não querem que eu faça a Wendy.
— Por quê?
— Por qual motivo você quer saber? — João era um ano mais novo que ela. Seus pais viviam viajando, então ele nunca conseguia fazer amizades. Dessa vez, eles iriam ficar naquele bairro, então não custava nada aproveitar a situação para tentar fazer amizade com Ariel.
— Por nada, eu só estou tentando ser seu amigo. — disse, ainda procurando o gato. — Gato infeliz, como ele consegue sumir assim?
— Olha no banheiro. — Ariel disse, se sentando na cama com as costas na cabeceira. João fez o que ela disse, e foi até o banheiro.
— Então, vai me dizer porquê não querem você como Wendy? Você machucou outras garotas para conseguir o papel?
—O que? Não! — respondeu, rindo pela primeira vez desde o ensaio da tarde. — Você bateu na Sininho quando ela mandou lançarem flechas em você?
— Claro que não! — As opções de João eram absurdas e engraçadas, deixando a conversa mais leve, e fazendo Ariel se sentir mais à vontade.
— Bateu no Peter Pan? No Diretor? Mas nesse caso, você teria sido expulsa da escola…Você foi expulsa da escola? — Ele colocou a cabeça para fora do banheiro, fazendo Ariel ter uma crise de riso.
— Por que todas as suas alternativas envolvem eu batendo em alguém?— Ela questionou, tentando parar de rir.
— Seria o único motivo plausível para te tirarem da peça. — proferiu, começando a ficar impaciente com a busca pelo gato.
— O protagonista se recusou a contracenar comigo…— disse, ficando triste novamente após lembrar do que aconteceu mais cedo.
— Então, por que não mudaram de Peter Pan?
— Acho que todos concordam com ele…Você vai para qual escola?
— Nenhuma…Tenho aulas em casa. Minha família se muda muito. Posso deitar na sua cama para descansar um pouco? — Ela assentiu e ele se deitou próximo ao fim da cama. — Pode confiar em mim, eu quero ser seu amigo. As únicas coisas que me impediriam disso é se você não quisesse falar comigo, ou que maltratasse meu gato. — Ariel sorriu novamente. — Melhor assim, quando você sorri.
— Ok, eu realmente queria contar a alguém, mas não quero mais incomodar meus pais. — Ela respirou fundo. — Ele disse que não seria par de um garoto.
— Mas você não é um garoto. — João disse, sem perceber que Ariel estava tremendo de nervoso, ela estava suando e esfregava suas mãos sem parar.
— Não mesmo…É que… eu me vestia como um antigamente, sabe? — João olhou para ela, e percebeu sua voz tremendo ao ter que falar aquelas coisas que tanto a machucavam. Ele segurou a mão da garota, surpreendendo-a.
— Eu tenho certeza de que essa peça vai ser um fracasso sem você e com aquele otário que tem medo de gente linda.
— Você me acha bonita? — perguntou mais calma, ainda segurando a mão dele.
— Claro, eu só quero ser amigo de gente bonita igual a mim. — disse, se levantando e voltando à busca pelo gato.
Ariel levantou e se abaixou na frente do sofá próximo à janela, pegando a bola de pelo que dormia em uma das entradas do sofá. Ele o entregou ao vizinho. — Aqui.
— Nossa, há quanto tempo você sabia que ele estava aí? — João perguntou sério.
— Há muito tempo, mas queria ver quanto tempo você demoraria para achá-lo .— respondeu, voltando para a cama.
—Hum…Obrigado, e sabe… Aquele Peter Pan não merece você, se quiser, eu posso ser seu Peter Pan. — Ariel começou a rir. — Por quê você está rindo? Eu até entrei na sua janela igual ao Peter Pan. Só não posso te fazer voar, mas amanhã posso te levar à Terra do Nunca, mais conhecida como minha sala de jogos . — disse animado.
Ariel ficou interessada com o convite, ela realmente queria ir. João possuía uma grande habilidade de fazê-la se sentir bem, mesmo em apenas uma fração de segundos.
— Vou falar com meus pais sobre isso, eles provavelmente irão deixar.
— Aproveite e fale sobre seus colegas, se você quer falar com alguém mais velho…Conte a alguém que confie. Eles te fizeram mal, ninguém quer ver a Wendy sofrendo, eles vão te ajudar mais do que eu.
—Eu vou pensar. Obrigada, Peter Pan.
— Tenha uma boa noite, Wendy!
João saiu pela janela, e Ariel conseguiu acompanhá-lo com os olhos até que ele entrasse em casa pela janela do seu quarto, que ficava um pouco distante da dela. Ela acenou e ele retribuiu, logo fechando suas janelas.
Finalmente! João conseguiu uma amiga da forma que sempre imaginou: sem querer. nunca agradeceu tanto por Sombra ter fugido, e Ariel agora poderia ser a Wendy que tanto queria.
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Sobre Monalisa Lia: Ser fã é um traço grande da minha personalidade, foi onde encontrei minha escrita realizando todas as fanfics que se passam na minha cabeça.
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A Gestão Escrevivências (2022-2023) é composta por representantes dos 04 cursos de Letras ofertadas pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Tendo licenciandos dos respectivos cursos: Letras com Português, Letras com Português e Inglês, Letras com Português e Espanhol e Letras com Português e Frances. O movimento que teve o seu inicio no ano de 2019, articula durante todos os anos a tríade de seus ideais: Renovação, Resiliência e Resistência.
A “Coluna Escrevivências”, realizada na Revista Ruído Manifesto, provém de um movimento dedicado e aberto aos estudantes dos cursos de Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), é fruto da inquietação levada para o Diretório Acadêmico, pela estudante e poeta Nina Maria, apoiada pelo estudante e contador de histórias Felipe Lisonjeado. Vivemos tempos difíceis e tenebrosos em função da pandemia, que ainda hoje enfrentamos, mas numa escala aparentemente menor. Esse cenário corrobora ainda mais à importância de um Diretório Acadêmico (D.A) que, de maneira artística, crítica, política, propague e incentive as diversas multiplicidades artísticas de toda a sua comunidade. O termo que abrilhanta o nome da Gestão e da coluna, faz jus ao que a querida escritora Conceição Evaristo emprega em sua vida e obra: escreviver, além de demarcar a historicidade de um povo, contribui para que sua vida, sua arte e a r(e)sistência falem. Esse é o nosso objetivo com esta coluna, ser o lápis que remete o lugar de onde pertencemos ao escreviver para propagar.