Um conto de Natalia Timerman
Natalia Timerman é escritora, médica psiquiatra pela Unifesp, mestre em psicologia e doutoranda em literatura pela Usp. É autora de Desterros – histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017), Rachaduras (Quelônio, 2019), finalista do prêmio Jabuti na categoria contos, e do romance Copo Vazio (Todavia, 2021).
O conto abaixo foi publicado na antologia Contos de Quarentena 2, organizada pelo Mauro Paz, Camilo Gomide e Marcos Vinicius Almeida.
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Francês
A primeira coisa que notei ao reconhecê-lo foi sua altura, eu não imaginava que ele fosse tão alto, nem que seu corpo fosse tão volumoso, tão grande, imenso. Ou talvez o que me pareceu superlativo tenha sido o simples acréscimo de volume à figura que, para mim, até agora era bidimensional, ainda que a máscara preta que ele usava não me permitisse chegar enfim a uma ideia de totalidade.
Demos oi de longe. Não era possível saber se sorria, seus olhos não me deixavam dizer. Talvez nem meu próprio sorriso eu conseguisse reconhecer, álcool gel depois de apertar o botão da faixa de pedestres. Ele me olhava com o canto do olho, talvez estranhando que eu fosse tão pequena, ou tão bunduda, ou simplesmente que tivesse gestos, que minhas pernas se movessem, que a câmera detrás da qual nos conhecemos escondesse tanto de mim.
Não tínhamos para onde ir, eu não tinha coragem de ir a um bar, não tinha coragem de tirar a máscara para beber nada, e tudo o que eu queria era um pouco de normalidade para amparar a ansiedade daquele primeiro encontro. Bares, meus velhos conhecidos, agora me inspiram medo. Mais medo do que ir para a casa dele?
Ele andava com passos grandes que pareciam pequenos. Para onde tinha ido toda a intimidade que as nossas longuíssimas horas de conversa, primeiro por escrito, depois por vídeo, nos fizeram crer existir entre a gente? Como será que eu ando?
Eu o agradeci em meu silêncio por ter nos tirado do nosso perguntando algo sobre o meu trabalho, tentando fazer uma ponte entre o que de fato éramos e o que por meses críamos ser, e com alívio percebi, engatando um assunto em outro, que as nossas trocas não tinham evaporado. Era só uma questão de ajuste, de conseguir engatar um mundo no outro, o virtual no real. Como quando a gente vê alguém ao chegar numa festa e não tem ideia de quem seja aquela pessoa, mas depois de dois drinks a memória volta de repente, cenas inteiras, conversas, como se cada estado tivesse seu próprio mundo e fosse necessário um portal ― o álcool ― para conectá-los. Agora nosso portal não é o álcool, que saudade de festas e de encontrar desconhecidos que se tornam íntimos depois de dois drinks, agora talvez baste a diluição do desconforto e um pouco de tempo, enquanto ele fica esbarrando no meu braço e eu sinto choques pelo contato.
Ele disse que a gente estava perto da casa dele e eu, para minha própria surpresa, quase implorei para irmos para lá. Falávamos então das aulas de francês que ele continuava fazendo todo sábado de manhã, e amanhã era sábado e hoje era sexta à noite. Fazia tempo que minhas sextas não eram uma pergunta. O porteiro era simpático e o elevador ficava dentro da garagem e eu nunca conseguiria chegar sozinha diante da porta dele porque havia um labirinto de portas e corredores pelos quais ele foi, enorme, me guiando.
Quando ele abriu a porta e tirou a máscara e eu tirei a minha nos abraçamos, como se todo o perigo tivesse ficado lá fora, e já no abraço senti o pau dele endurecer.
O beijo também é um portal, a gente fecha os olhos e alguma outra coisa parece se abrir, o movimento encaixado das línguas e o gosto e a textura são o todo de alguém, o ponto de convergência de gestos, de vigor, talvez da alma, o beijo é o acesso à alma, no escuro, sem pensamento algum, e a gente agarra a cabeça da outra pessoa para que a alma não se vá, para que continue aberta se fazendo existir junto da nossa, para que aquilo nunca acabe, para que a gente continue convergindo, inteiros e desesperados, para aquele lugar dentro das nossas bocas onde não tem mais nada além da gente, completos, representados só pelas nossas línguas. Todo beijo é um lugar de chegada.
As máscaras ficaram penduradas na maçaneta da porta.
Eu avisei minha mãe que estava tudo bem e no dia seguinte ele faltou à aula de francês.