Um conto de Paulo Leitor
Paulo Leitor é mineiro, poeta e está envolvido com a literatura há muitos anos. Gosta dos causos mineiros e gosta muito de contar histórias. “Aconteceu em Ouro Preto”, publicado pela Editora Viseu, é o primeiro de uma série que homenageia a cidade de Ouro Preto, patrimônio cultural da humanidade. Atualmente vive em São Paulo e está aposentado, sempre sonhando com as montanhas de Minas e relembrando as incríveis histórias que só os mineiros sabem contar.
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OGM – Galinha esquisita
Para minha amiga Valéria, que ama galinhas.
Não sou de todo um sujeito prejudicado. Eu estudei. Fiz até mesmo uma universidade, de modos que me considero uma pessoa com certo esclarecimento e alguma cultura, mas entendo que, na maioria das vezes, tudo que sei, aprendi, não é suficiente para quase nada. Sei disso.
Já passei da metade da vida. Imagine. Tenho, portanto, certa experiência de fazer coisas e interpretar o que vejo e sinto, pois fui obrigado a trabalhar, aprender com os solavancos e as necessidades mais comuns do viver, como acontece com quase todo mundo. Nunca sabendo tudo que gostaria e devia saber. Um inconformado com o parco conhecimento.
Gostaria de exemplificar contando um caso. Tenho um filho adolescente, e por gostar muito dele, estou sempre tentando impressioná-lo, como qualquer pai faz. Percebo que há certo mistério na relação pai e filho que faz com que ambos tenham que causar impressão especial um no outro, creio mesmo que isso deva vir com a genética, para facilitar a criação humana, pois é de se perceber isso em todas as culturas.
Assim, decidi, para me exibir, que deveríamos criar galinhas no quintal, uma atividade leve, sem muito comprometimento nem grandes responsabilidades. Consultei o garoto e ele topou, sem muito entusiasmo. Mas creio que ele também queria me impressionar como um bom filho e assim fingiu interesse. E perguntou como se começa a criar galinhas. Expliquei-lhe que primeiro faríamos um galinheiro, quis dizer, o pedreiro faria um abrigo coberto, com os poleiros, local para os comedouros e caixas para os ninhos. E compraríamos as galinhas iniciais. E onde se compram galinhas, ele me perguntou.
Procurei informações aqui em Ouro Preto e me disseram para ir à Casa do Fazendeiro, em Mariana, onde tem a loja própria para o nosso propósito. Fomos para lá, encontramos a loja, entramos e fomos direto ao balcão onde uma senhora baixinha, gordinha, de óculos de aros grossos e expressão muito severa nos recebeu:
– Pois não?
Percebo aqui uma relação especial: a do balconista com seus compradores. Quando chegamos ao balcão, nós, os compradores, já estamos em desvantagem, pois quem está do lado de lá tem certo tempo para nos analisar, e experiência quanto a isso, porque estão recebendo gente a toda hora e já educaram o olhar para perceber minúcias no comportamento de quem se aproxima para comprar. Estão de prontidão. Assim, perguntei de chofre:
– A senhora tem galinhas?
Ela, com olhar de fingido interesse, ignorando que não fiz o cumprimento de praxe, respondeu:
– Sim, quantas o senhor quer?
Dessa forma já estabelecemos que não haveria falsa cortesia entre nós, apenas uma relação comercial seca e sem rodeios. Respondi:
– Quero cinco galinhas e um galo.
Aí começou minha encrenca, pois ela, olhando fixamente para mim disse, com certo ar de desdém:
– Galo para quê?
Com a paciência que eu não tenho, avaliei imediatamente que deveria explicar àquela senhora minhas nobres intenções. Eu lhe disse, então, feliz de ter uma explicação pronta e fresca para dar, que queria as galinhas para criar, não para comer. Mas ela insistiu insolentemente, como se estivesse fazendo uma afirmação formal da constituição federativa do caralho a quatro:
– Estas galinhas não precisam de galo!
Fiquei um tanto desconcertado e surpreso, pois jamais me passou pela cabeça uma coisa daquelas.
– Como assim? – então repliquei. E com autoridade na voz, insisti: – Minha senhora, nós queremos criar galinhas, entende? – Dei bastante ênfase na palavra “criar”. – Levamos as galinhas, elas vão botar os ovos, o galo vai fertilizar os ovos e vão nascer os pintinhos, é isso!
A mulher alterou um pouquinho e voz e, colocando um dos cotovelos no balcão, tentando me intimidar, eu acho, explicou:
– Meu senhor, estas galinhas não criam pinto e, portanto, não precisam de galo! – e deve ter pensado, “tomou, seu papudo!”.
Muito desconcertado, olhei para o meu filho e ele, com aquele olho arregalado, falou baixinho para mim:
– Galinha esquisita!
Olhei de novo para a mulher do balcão que me fitava com um finíssimo esboço de sorriso. Ela perguntou:
– Então, vai levar?
Foi por isso que eu, utilizando da minha prerrogativa de comprador, soberano nas minhas decisões, disse-lhe:
– Vou pensar um pouco e depois volto.
Eu saí dali num estado de incômodo difícil de explicar. Queria uma coisa simples, comprar galinhas. E, no entanto, estava impossibilitado, porque me faltavam informações. No íntimo, parecia-me que estavam faltando dados sobre um assunto que não deveria ter nada de complicado. E eu não compreendia muito bem a situação, ou melhor, as coisas não estavam acontecendo como eu previra e justamente pela minha ignorância. Meu filho também ficara com uma expressão de deboche; por dentro, ele estava rindo, porque achou engraçado aquela situação. A expressão dele era de “meu pai não entende nada de galinhas, hahaha!”
Mas eu fui à luta, claro! Acionei o Google e então soube que a galinha em questão era um ser híbrido, criado em laboratório e, acredite, “patenteado”. Chama-se ISA BROWN e realmente não procria!* É uma máquina de botar ovos marrons, suas entranhas foram geneticamente preparadas exclusivamente para isso. E se você quiser mais galinhas, tem de comprar o bicho vivo da empresa que o criou! Realmente, é uma situação que deve ser típica desse meu tempo, as coisas mudam rápido, tão rápido que você perde a confiança que sabe alguma coisa. Galinha híbrida! Fiquei imaginando quanta coisa “híbrida” deve ter por aí que eu não sei! Mas tenho que estar à altura do meu tempo, tenho que conhecer.
Confabulei com meu filho que, de posse dessas informações, ficou empolgado:
– Então teremos uma galinha artificial em casa?
Ponderei que não era bem assim, que era uma galinha real, viva, só tinha sido alterada geneticamente etc. etc. Talvez fosse até melhor, pois teríamos os ovos e não precisaríamos nos preocupar com pintinhos, seria mais fácil cuidar. Racionalizei bem.
Decididos e voltamos à loja de venda de galinhas. Fomos diretos à senhora que nos atendera antes, que estava com um semblante mais descontraído, como se tivesse ganho uma batalha e, agora, seria condescendente comigo. Não me importei. Disse a ela que havíamos decido levar as cinco galinhas e ela respondeu:
– Ótimo, vou preparar uma caixa, com furinhos, e assim fica melhor para carregar. Aliás, o senhor vai gostar destas frangas, estarão prontas para botar em três ou quatro semanas – acrescentou como querendo nos conquistar com detalhes.
Agradeci e perguntei sobre a ração, agora eu já sabia que estas galinhas só devem comer ração própria, e a senhora disse que separaria uma embalagem de quinze quilos para eu levar junto. E acrescentou:
– Elas já vão preparadas para o senhor, pois já queimamos o bico delas.
Alarmado, perguntei:
– A senhora fez o quê? A senhora queimou o bico das minhas galinhas??
– Sim, tem que queimar o bico delas – ela retrucou, com certa impaciência na voz.
Inconformado, falei ríspido:
– Mas por que a senhora foi fazer uma maldade dessas?
Ela então fez um muxoxo e respondeu, como se eu fosse o maior ignorante do mundo:
– Essas galinhas precisam ter o bico queimado para reduzi-los, senão elas bicam umas às outras até sangrar e matar!
Olhei para o meu filho e, nessa hora, eu é que estava com os olhos arregalados. Ele então repetiu, baixinho:
– Galinha esquisita!
Fiquei mudo. Olhei dos lados e havia mais duas pessoas no balcão, elas estavam me contemplando com um ar de quem diz “coitado!” E eu, me sentindo a caquinha do cu da cobra arrastando pelo chão, não dei mais atenção a eles, não tinha mais nada a falar, nesses casos é melhor ficar calado. Levantei o queixo e aguardei minha caixa com furinhos, minhas cinco galinhas e o saco de ração. A senhora colocou tudo em cima do balcão e perguntou:
– Algo mais?
Eu, de pirraça, falei:
– Sim, vou levar um galo também, caipira! – Enfatizei o “caipira”.
A minha ignorância é imensa! É o que eu digo: essas situações constrangedoras só acontecem porque sempre o conhecimento é insuficiente. E o mundo está girando mais rápido que qualquer pessoa possa imaginar, sim. OGM, organismo geneticamente modificado, quem diria!
*Segundo o Wikipédia
ISA é a sigla para Institut de Sélection Animale da França, a empresa que desenvolveu esta galinha em 1978 para a produção de ovos. Em 1997, o Grupo ISA fundiu-se com a Merck & Co., formando a Hubbard ISA, de modo que esta galinha híbrida é às vezes chamada de Hubbard Isa Brown. Em 2005, o Institut Sélection de Animale (ISA) e o Hendrix Aves Criadores (HPB) foram fundidos. O Institut Sélection de Animale SAS, da França (ISA SAS) é agora um centro operacional da Hendrix Genetics. Em março de 2005, Hubbard foi comprado da Merial Ltd. pelo Grupo Grimaud La Corbière, SA.